Capítulo 2

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Andando desengonçada, mas com uma boa batida tocando nos ouvidos eu sigo meu caminho. É um bom sábado ensolarado para passar vergonha. Enquanto me aproximo do matadouro calculo mentalmente o quanto eu odeio meus irmãos, especialmente o Marcos por ser amigo do idiota do Chris. 

Ouço um assobio. Ai não, já vai começar.

Apresso os passos e tento aumentar o volume da música, mas não há o que eu faça, eu escuto a voz deles gritando nos meus ouvidos.

— Você estoura o limite do cartão do seu pai comprando shampoo pra amaciar o cabelo foi? – gritou trazendo uma enxurrada de risadas junto. Conto até dez, respiro fundo. 

— Mesmo que ela compre o estoque dos melhores produtos, nada funciona no cabelo dela. Olha só – um outro cara, que eu não sei nem o nome, grita lá do meio deles. 

Para cada comentário babaca e preconceituoso que é feito, a plateia de neandertal ri. Dentro de mim uma bola de gigante se forma, sinto meu peito ferver e a vontade de parti-los ao meio cresce.

Empurro o carrinho mais rápido iniciando uma corrida. Às vezes ele perde o controle e raspa nos muros, caí em buracos, mas nunca para. Acontece da mesma forma que os demônios que atormentam minha vida. Eles vêm, assombram uma vez, me coloca pra correr e mesmo eu implorando ajuda eles não me deixam escapar. É uma droga como nessas horas a vontade de parar de existir parece ser minha única saída. Porque ninguém nunca percebe as suas características positivas, eles só vêm os seus erros e suas imperfeiçoes. E eu não estou falando isso pelo meu cabelo cacheado que poderia ser liso como os dos meus irmãos. Estão falando de quem eu sou, do que sei fazer. Eles fazem tudo em mim parece uma enorme perca de tempo.

— Oi irmã! – Calebe, o irmão mais novo, abre o portão e me recebe com um abraço apertado. Por um instante me esqueço do que aconteceu.

— Oi lindeza, como está? 

— Eu estou bem –  ele diz e sai correndo para o jardim dos fundos.

Calebe é a energia dessa casa, é o único que fala comigo sem gritar, faz todos ri e consegue animar qualquer um. Ele é um presentinho.

— Já cheguei – digo puxando o carrinho pra dentro da sala.

— Aí meu Deus! O que é isso? – ele mal pergunta e já gargalha alto. Marcos desce correndo pra ver o que é.

— Você pirou Jéss? Não pode trazer o carrinho do mercado pra casa – Marcos tenta explicar sem rir como se eu fosse uma retardada e não soubesse disso. 

— A mamãe vai te matar, e eu só consigo imaginar você empurrando isso pelas ruas como uma maluca – Tiago continua a falar alto e rir muito. Ele me irrita tanto.

— Se está reclamando, porque não foi lá e fez melhor – digo mais alto que as risadas deles. — Vão vocês dois para o inferno.

— O que é isso? – a sala silenciou. Todos nós olhamos para a entrada da cozinha, minha mãe está em pé segurando um pano de prato. — Você está pensando o quê? Tenha mais respeito com eles, são seus irmãos.

Arregalo os olhos perplexos. Como é que é? Eles tiram sarro de mim, que fui obrigada a passar vergonha pra trazer comida para eles comer, e eu ainda tenho que ter respeito? Oh não, essa família só vai ladeira a abaixo.

— Tô nem ai pra eles – murmuro dando as costas e indo pra cozinha.

— Você não podia ter trazido o carrinho do supermercado — ela diz me seguindo.

— Não? E queria que eu trouxesse como? – viro-me esperando por resposta. Estou sendo grosseira, eu sei, mas ela pensa que sou sua escrava. — Lembro-me bem de ter feito meu ouvido sangrar semana passada só porque paguei pra trazer as coisas.

— Fala direito comigo, não sou as suas coleguinha idiotas – esbraveja.

— Devia ter mandado seu filhinho mimado buscar então – engulo minha raiva e a vontade de falar mais um monte. Coloco o cartão na bancada e saio.

— Ei, por que não guarda as coisas? Faça serviços direito – ouço a voz do mais velho. Viro-me lentamente, olho no fundo dos olhos dele e sorrio.

— Não sou a empregada. E se quiser alguma coisa com excelência, levanta esse esqueleto que você chama da bunda daí, e faça você.

Minha vida é assim, às vezes muda umas coisas e outras, mas todo dia ela tem que se chocar contra alguma coisa. Queria eu viver em um lugar onde eu pudesse ser feliz, nem que fosse por experiência. Porque aqui, nessa vida e nesse lugar, tudo que eu faço se resume ao fracasso. É na escola, na igreja, em casa, no cursinho, junto dos amigos e até nas redes sociais. Nada para mim dá certo, e eu juro que tento ser melhor, fazer diferente. Mas simplesmente não vai.

Queria encontrar aquele botão que aperta pra reiniciar, eu só preciso de uma chance pra reiniciar. Eu provavelmente voltaria um dia antes do meu nascimento, e eu daria jeito de parar com a farra e nem aparecer aqui. A vida dos meus pais seriam bem mais calma sem mim, certeza.

E os meus amigos, bem, eu nem sei se posso chama-los assim já que ninguém naquele grupo se importa. Mas só para registrar eu costumo andar junto com Jacqueline, Pedro e Jonathan. Jacque e eu nos conhecemos no primeiro ano ensino fundamental, desde então somos inseparáveis na escola. Mas não é nada como uma amizade intensa que nos levaria a fazer festa do pijama e sair para tomar sorvete, por outro lado, somos amigas apenas na escola. 

O Pedro faz questão de ficar junto de nós todos os dias porque ele é caidinho pela Jacque. E o Jonathan é o que não sai do meu pé. Além de me conhecer desde a igreja, ele ainda adotou a missão de que precisa ser meu conselheiro. Jona é filho do diácono da igreja que todas as mães o querem como filho, as meninas querem como namorado, e os pais querem como genro. E eu, a exceção, só quero que ele pare de andar atrás de mim e de dizer coisas que ele pensa que vai ajudar. 

Enquanto repenso sobre minha vida, observo a mata fechada que começa nos fundos da minha casa. Há um bom espaço entre a sacada do meu quarto e a divisa onde está o muro de tijolos, depois começa o matagal. Olhando daqui e imaginando todas as surpresas que eu poderia encontrar, uma vontade de correr para lá cresce no meu peito. Seria bom se de repente eu me perdesse na floresta sendo iluminada pela clara lua.

Naquele silenciou ouço os sussurros da minha alma cantarolando a cação “Carry you”, ela diz;

— Eu sei que dói. É difícil respirar às vezes. Essas noites são longas. Você perdeu a vontade de lutar.

Eu ergo meus olhos para os céus e imagino como seria se as noites fossem eternas, se um dia não amanhecesse. Eu ficaria debaixo do meu cobertor, com minha solidão e o medo. Porque é mais fácil se esconder do que encarar o mundo.

— Tem alguém aí fora? Você pode me guiar até a luz? Diga-me que tudo vai ficar bem.

Sussurro o restante da canção sentindo os meus lábios tremerem. As lembranças de como a música era a minha respiração me faz arfar. Eu queria conseguir dominar os meus talentos, mas aqui estou eu, sussurrando para ninguém ouvir minha voz outra vez.

Sonhar Os Sonhos De Deus Hikayelerin yaşadığı yer. Şimdi keşfedin