Quase na despedida, o Dr. Blumenkranz nos perguntou onde estávamos hospedados e quanto estávamos pagando pela diária. Ao saber do preço que estávamos pagando, ele nos disse que conhecia um hotel muito mais barato e que pediria à sua secretária que nos passasse essa informação.

Na recepção, a secretária nos chamou e nos passou o nome do hotel, dizendo que a diária custava vinte dólares e que era bem perto dali.

Quando ficamos sozinhos, adverti minha mãe que por esse preço deveria ser uma espelunca e que deveríamos ter cuidado. Lembrei-me daqueles hotéis/motéis que apareceram no filme Scarface que havia estreado meses antes que eu perdesse a visão. O filme se passava em Miami e abordava o crime organizado e o tráfico de drogas na cidade. Na época, foi considerado um dos filmes mais violentos produzidos até então.

Temi por nossa segurança. Se o hotel onde estávamos pagando quase sessenta dólares já não era lá essas coisas, imagina um de vinte.

A imagem que me veio à mente era daqueles hotéis em que as portas e as janelas dos quartos dão para um corredor externo que termina numa escada. Era exatamente assim que mostraram no tal filme em que Al Pacino fazia o papel do Tony Montana, um cubano exilado que chefiava uma organização criminosa.

Minha mãe e a Angélica me falaram que antes de tomar qualquer decisão, iríamos até o local recomendado para conhecer e só depois decidir o que faríamos.

Em seguida fomos tratar da papelada no departamento financeiro e ver o que conseguiríamos em termos de facilidades de pagamento e de prazos.

O hospital realmente tinha essa abertura de negociar alguns itens e disseram que após um pagamento inicial, poderíamos fazer o restante do pagamento com algum prazo, e nos perguntaram quanto tempo necessitávamos. Dissemos que estávamos requerendo, junto ao Banco Central do Brasil, a liberação da venda de dólares no câmbio oficial e achávamos que em duas semanas já teríamos o valor total em mãos. Eles aceitaram, e nos deram o crédito e consequentemente a autorização para a internação e a cirurgia.

Agora faltavam menos de quarenta e oito horas para a realização de mais uma batalha naquela revolução que havia tomado conta da minha vida.

De volta ao hotel, minha mãe ligou novamente para o meu pai e explicou tudo o que havia sido resolvido. Avisou a ele sobre o dia e hora em que eu seria operado e também sobre a questão do envio dos dólares que faltavam para pagar o hospital.

Antes de desligar, minha mãe pediu que avisassem a todas as pessoas que pediram para saber sobre a cirurgia. A intenção era a de que todos formassem uma corrente de orações, rezas, preces e tudo o que pudesse me ajudar no âmbito espiritual.

Fiquei sozinho no quarto naquela tarde de terça-feira durante mais de quatro horas. Acabei dormindo e acordei com alguém me chamando. Era a arrumadeira perguntando se podia limpar o quarto. Eu ali deitado, apenas de cueca, sem enxergar nada, e uma estranha tentando me explicar quem era. O problema é que ela falava um inglês pior do que o meu, e não falava espanhol e com muito custo descobri que ela era haitiana. Fiquei meio cabreiro com aquela situação. Principalmente no caso de sumir algo, já que ela percebera que eu era cego. Senti-me impotente e torci para que chegasse alguém e ou que ela acabasse logo a sua tarefa.

Felizmente ela não demorou muito e quando a minha mãe voltou das compras com a minha irmã, contei a elas do ocorrido e elas disseram que estava tudo no lugar e não faltava nada.

Nossas reservas naquele hotel era para mais três dias e perguntei se elas haviam ido até o local indicado pelo médico. Minha mãe disse que ainda não e que talvez fossem no dia seguinte. Aquela terça-feira não acabava, as horas demoravam a passar. O sinal da Rádio Reló estava fraco e só ficava mais forte nas madrugadas devido às potentes rádios que existiam no sul da Flórida. Essas potências eram diminuídas à noite e assim era quando as rádios cubanas podiam ser captadas pelo meu fiel walkman.

Nas rádios cubanas, as notícias estavam voltadas para mais um aniversário da independência norte-americana. Às vezes eles abordavam a notícia de forma institucional e às vezes enlaçando-a com aspectos negativos da política e da sociedade Yankee. Criticavam, sobretudo, a interferência norte-americana nos países da América latina. Falavam muito também sobre a decadência social e do envolvimento dos jovens com as drogas, ao mesmo tempo em que comparavam esses aspectos com a sociedade cubana.

Os cubanos se tratavam entre si por companheiros. Era o companheiro fulano pra lá, o companheiro sicrano pra cá e todo mundo era companheiro, até o líder era El compañero Fidel.

Alguns anos antes, eu tinha lido o livro do Gabeira, "O que é isso companheiro" e pensei comigo:

-Já pensou se eles tivessem derrubado o Governo Militar no Brasil? Companheiro Gabeira... Companheiro Frei Beto....Companheiro Chico....

Até eu seria mais um companheiro. Contra a minha vontade, mas seria mais um companheiro.

O que mais me chocava em relação à Cuba era a falta de liberdade de expressão e a opressão que aquele povo sofria há 25 anos. Se no Brasil já era complicado viver sob um regime autoritário, porém muito menos opressor, imagine viver em uma ilha governada por um regime ultra-autoritário e cercada por um mar infestado de tubarões.

Para variar um pouco, naquela noite fiquei escutando somente as rádios em inglês e em uma delas estavam contando a história (em ordem cronológica) do movimento independentista das então colônias britânicas no novo mundo.

Quando eu conhecia o assunto, isso até me ajudava a entender melhor a forma de falar e o acento dos norte-americanos, que era bem diferente do que eu havia aprendido no colégio com a professora Darcy que era de uma escola britânica.

Só então liguei o que estava escutando com a minha presença naquele país. Eu estava escutando a história de uma revolução bem sucedida e já estávamos no dia quatro de julho, duzentos e oito anos depois. Era mais um bom sinal de que essas coincidências me davam mais e mais confiança quanto a recuperar a minha visão e quanto a revolucionar a minha própria revolução.

Fidel com a dele e eu com a minha.Where stories live. Discover now