Senti um nó na garganta e meus olhos se encheram de lágrimas. Na historia da familia Dias existiam muitos "causos". Escutei durante minha infancia e adolescencia historias impressionantes relacionadas ao sobrenatural. Outra coisa, muito peculiar da minha familia, era o fato de que a maioria dos meus tios e tias terem dois nomes, inclusive meu pai. Como moravam em uma fazenda e o registro do nascimento as vezes demorava meses há ser feito, a criança recebia o nome da mãe, minha avó Maria. Entao, o pai, meu avô Bino, a registrava com outro nome. Assim, meu tio Gilio (vergilius) chamava-se Albino. O tio Rique (Henrique), chamava-se Octavio. Meu pai, todos os chamavam de tio Lulu (Lupercio), mas foi registrado como Jorge. Minha tia Nena era Isabel e a tia Lalinha era Isaura.

Os dias foram passando e a casa parecia um local de romaria. De todos os lugares do Brasil chegavam mensagens e orações.

No dia anterior ao embarque recebi a visita da Verinha e depois a Rose. A Verinha me levou um pavê de Sonho de Valsa, parecia até o último pedido de um condenado. Ela sabia que eu adorava aquele doce e fez um especialmente para mim. A Verinha tinha sido namorada do Krikri e estávamos sempre em contato. Para retribuir o pavê, pedi a ela que abrisse a porta do meu armário e abrisse a última gaveta e pegasse bem lá no fundo um tubinho. Ela achou e falou:

-É o lança?

Respondi que sim e falei:

-Quer pra você?

-Sério? Respondeu ela.

-Claro né. É presente. Não é uma boa troca? Um pavê por um lança?

Demos risada e ela falou:

-Você é louco.

Falei para ela que aquele era sobra do carnaval. E eu não podia mais ficar com ele em casa. Falei para ela colocá-lo por dentro do cano da meia e assim ninguém perceberia nada.

Depois disso, nos abraçamos e ela me desejou toda a sorte do mundo e disse que estaria rezando por mim.

Logo depois da saída da Verinha, toca a campainha. Em seguida, minha avó veio me avisar que tinha uma amiga minha que queria me ver. Era a Rose, uma garota de olhos verdes encantadores, por quem eu sentia um algo a mais. A chegada dela, por si só, já era positiva e nesse dia ela contou uma coisa que me marcou profundamente.

-Enrique, ontem à noite, na hora em que eu fui dormir, a Renata se ajoelhou ao lado da cama dela e começou a rezar e pedir pra Deus pra Ele te curar e você voltar a enxergar.

Aquilo me deixou sem chão. Renata era a irmã mais nova da Rose e tinha na época, uns nove anos. Era um anjinho, e tinha os mesmos lindos olhos verdes de Rose.

Era impressionante a força que eu sentia ao saber dessa e de outras notícias. Pessoas que eu jamais havia conhecido faziam promessas pela minha cura e recuperação. Esses últimos dez dias antes do embarque para os Estados Unidos, também foram marcados por outro fato inesquecível.

Os sonhos mais incríveis da minha vida aconteceram nesse período. Assim como a noite me trazia a solidão necessária para que eu tivesse meu tempo de relaxamento, a noite também me trazia a chance de sonhar.

E aqueles sonhos eram impressionantes. Eram a possibilidade de me libertar da escuridão da cegueira. Neles eu enxergava normalmente e fazia tudo como sempre havia feito na vida.

Dois sonhos se destacaram dos demais, tamanho foi o realismo com que eles apresentaram. Em um deles, uma pessoa me perseguiu e quando houve um confronto corporal entre nós, essa pessoa que era um homem que eu não via o rosto, puxou uma arma e começou a atirar. Então caí e tentei fugir do alcance das balas disparadas a queima-roupa, e senti que havia morrido. Mas era apenas uma forma de enganar meu agressor que também pensou que eu estava morto e foi embora. Ressuscitei e me levantei. Foi muito mágico aquilo. Sentir que estava morto, fora do meu corpo e depois retornar a ele.

No outro sonho, eu apareci do nada, em pé em um penhasco tipo falésia. Neste penhasco eu me encontrava de costas para o rochedo e com espaço suficiente apenas para os meus pés. E eu não tinha saída, não tinha solução, a não ser saltar e voar. Algo me dizia: salte e voe!

E eu saltei. E então, voei, voei, voei. Assustei-me com essa possibilidade de voar, eu estava voando e indo para onde eu queria ir. Olhando para baixo reconheci a Praia das Pitangueiras ao longe e fui até lá. Pousei tranqüilamente naquelas areias tão minhas tão parte da minha vida.

Aquele vôo era a liberdade pura, a sensação de estar enxergando novamente.

Alguns anos depois de publicar a primeira edição desse livro escrevi um poema para registrar esse sonho para sempre.

POEMA 84

Em uma certa noite, de tempos atrás

Não era inverno, tampouco verão

Talvez fosse outono, pelas folhas caídas no chão

Sim! Sim! era outono. Os dias eram cinzas.

Sem sol, sem cores, nem flores.

As noites eram escuras sem estrelas nem amores

A vida chegava nos sonhos

A morte espreitava na mente

Naquela noite vida e morte estavam frente a frente

E nessa noite o sonho foi assim

Em pé e na ponta de um penhasco

Com um enorme paredão atrás de mim

À frente o oceano, abaixo o meu fim

E agora? Ali eu enxergava, podia ver, mas estava sem saída, o que fazer?

Serenamente saltei. Agora era o fim

A vida acabando.

Não! Não! Eu estava voando. Voando alto, voando longe

Voava e a tudo enxergava. Como era lindo enxergar novamente.

De repente cheguei na praia que eu amava.

A Pitangueiras de toda uma vida

Como era linda, como era linda

Aquelas areias, aquele mar

Que maravilha!

Passei voando, descendo, descendo

Entre os coqueiros e a ilha

Descendo, descendo

Até pousar. Pousei.

Pisei naquela areia que eu amava demais

E assim foi um sonho uma certa noite

Tempos atrás.

Fidel com a dele e eu com a minha.Where stories live. Discover now