Lá estava ela, sentada na grama, servindo chá a um unicórnio de pelúcia, meio afastada das demais. Usava um vestido branco e meias da mesma cor que lhe subiam até os joelhos. Seu cabelo loiro era quase impossível de se encarar debaixo do sol, coberto por um chapéu de palha roxo que ostentava um girassol laranja. Assim que a menina se inclinou para encher a xícara com um chá imaginário, ele viu os olhos dela e prendeu a respiração. Eram azuis. Lindos, grandes e azuis.

Creck, creck, creck.

Desta vez ele não bateu na cabeça para afastar as mordidas. Estava maravilhado demais com a criança. Aqueles olhos. Olhos de um anjo.

Vá com calma agora. Não coloque tudo a perder.

Obrigando seu coração a se acalmar, ele recostou-se outra vez no banco. Ergueu o livro novamente, embora não lesse uma sílaba sequer. Tudo o que conseguia fazer era observar a criança-anjo e seu unicórnio de pelúcia bebendo chá na tarde quente. O restante do playground desaparecera por completo, assim como os sons e os cheiros que, antes, ele era capaz de captar com tanta clareza. Sua boca estava seca. Sua garganta, fechada. Um bolo quente de metal parecia se formar no centro de seu estômago. Sentia o suor brotando, escorrendo pelas têmporas e pela linha de sua coluna.

A menininha ficou de pé e ele baixou o livro, atraído por cada movimento dela. A criança ergueu o rostinho para o sol, que transformou seus olhos azuis em duas safiras incandescentes. Perfeitas. Ela estava agarrando a jarrinha de plástico para servir mais chá ao seu amigo quando a mãe se aproximou. Uma mulher que era o retrato perfeito da garota daqui a alguns anos. Assim como a filha, ela era dona de cabelos dourados e íris da cor do céu em uma tarde sem nuvens.

- Oi, meu bem – disse a mãe, agachando os seus consideráveis 1,90m de altura para beijar a cabeça da filha. Ele imaginou a sensação de seda daqueles fios contra seus lábios e seu coração voltou a galopar sem controle. – Pronta para irmos?

- Mas o Stephen ainda não acabou o chá dele – disse a menina. Sua voz era um pouco mais aguda do que ele havia imaginado, mas tudo bem. Ela ainda cantaria como um anjo.

- Bom, o Stephen pode terminar o chá em casa – disse a mãe, pegando o unicórnio e entregando-o para a criança. – Vamos, Ashley. Papai vai chegar de viagem logo, e ele está louco para ver você.

A menina – Ashley – suspirou e balançou a cabeça do modo como as crianças fazem quando querem dizer que sabem de tudo e que os adultos não sabem de nada. Mas obedeceu. Recolheu da grama sua jarra e xícaras e juntou-as ao unicórnio Stephen em seu colo. Depois, pegou a mão da mãe e seguiu para fora do playground, rumo à rua tranquila de New Shore.

Ele esperou por um instante, admirando mãe e filha caminhando sob o sol. Então se levantou e seguiu atrás delas.

***

O Suburban delas estava estacionado apenas três vagas depois de onde ele parara o seu Ford negro de placa falsa. Ele entrou em seu veículo, tomando o cuidado de fechar a porta sem produzir som algum. A última coisa que precisava era que elas reparassem nele. Esperou enquanto mãe e filha subiam no carro e davam partida, deslizando com suavidade pelo asfalto. Aguardou mais alguns segundos e então seguiu-as. Agora que aquilo de fato começara, ele sentia-se tranquilo, toda a excitação e euforia que experimentara no parque virando fumaça em suas veias. Controlou o coração e aproveitou a paisagem, sem nunca perder de vista o Suburban escuro. Àquelas horas da tarde, New Shore encontrava-se calma. Universitários e alunos de escolas preparatórias lotavam as ruas, em grupos, rindo de alguma piada secreta exceto para eles. Ele baixou um pouco o vidro do motorista e respirou fundo, deixando o aroma da juventude encher-lhe os pulmões. Não era nada tão puro quanto a infância – a adolescência cheirava a sexo, menstruação, confusão, suor acre e medo do futuro –, mas, ainda assim, era delicioso. Talvez um dia ele transformasse uma daquelas garotas mais velhas em um anjo também. Nunca se sabe.

A Voz da Escuridão.Waar verhalen tot leven komen. Ontdek het nu