Capítulo 32 - A Bruxa, o Mestiço e o Fedelho

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Desmond havia estado na vila de Zarozje uma vez e não pensou que retornaria. Não durante o dia, subindo a pé a ladeira íngreme ao lado da mulher que era a sua mãe de nascimento. Não depois de toda a raiva que sentira, a raiva que havia se transformado em uma tristeza tão profunda que ele pensou que criaria raízes e o consumiria.

Na noite passada, ele a observara em silêncio, às vezes com os pensamentos consumidos pelas recordações de infância, as vezes admirando a forma como curva da maçã do rosto dela se sobressaía em um tom de pele corado, tão diferente da palidez permanente de suas próprias feições.

Adormecera desta maneira, recostado contra a parede úmida, o cheiro de fumaça pinicando-lhe o nariz e a sensação de que seu mundo havia mudado para sempre. Seu peito ainda doía quando pensava sobre todas as coisas que foram ditas, mas havia conseguido esconder seus sentimentos cuidadosamente detrás da parede de vidro outra vez.

Sentiu o exato momento em que o feitiço de Emese se desvaneceu. Foi um ligeiro arrepio em sua pele, embora não tivesse vento algum do lado de dentro, e um estalo tão suave como a explosão de uma bolha de sabão. Naquele momento, soube que a porta se abriria quando ele a forçasse, e então poderia ir para qualquer lugar. Decidiu acompanhar Emese.

O barulho de um galho seco partindo-se ao meio chamou sua atenção para as casas de madeira que se empilhavam à sua frente. As chaminés soltavam fumaça e havia o cheiro de comida, crianças, esterco, sabão. Todas essas coisas juntas em meio a conversas matinais, despreocupadas. Sefic costumava dizer que eram animais pacíficos, Desmond tinha dúvidas.

— Está tudo bem, Desmond. — Emese pousou a mão em seu braço, incitando-o a caminhar. — Nós viemos apenas conversar.

A boca de Desmond se torceu em clara desconfiança.

— O que vai dizer aos seus amigos? Que eu sou quase humano?

— Direi a verdade. — Ela disse, sem se abalar, e dobrou em direção a uma taberna. Ele reconheceu o cheiro de álcool antes de ver uma placa pendurada na entrada.

— Eu não posso ir até lá.

Emese assentiu, e descobriu o capuz, exibindo os cachos acobreados parcialmente presos em uma fita na nuca. Ela o olhou longamente antes de exalar o ar frio, formando uma pequena nuvem de vapor.

— Voltarei em breve. Não saia daqui.

— Eu tenho alguma opção? — Desmond perguntou, mas ela já havia lhe dado às costas, desaparecendo através da portinhola, que rangeu alto ao ser aberta.

Desmond cruzou os braços, recostando-se contra a parede atrás de si. Vestia uma capa que havia pegado na casa de Emese, mas ainda assim sentia-se exposto ao estar ali em plena luz do dia, mesmo que nenhum dos transeuntes parasse para olhá-lo, senão com alguma curiosidade. Do outro lado da rua, uma jovem de cabelos muito loiros interrompeu seu minucioso trabalho de depenar aves para fitá-lo com um sorriso discreto.

Foi apenas um breve segundo onde a faca que ela usava deslizou sobre a carne macia de seu dedo, e o sorriso se transformou em uma pequena careta de dor. O filete de sangue brotou do corte em vermelho vivo, e o cheiro de sangue chegou até ele antes que ela tivesse tempo de levar o dedo à boca, carregado pelo vento frio que golpeava-lhe o rosto.

Quando ela o olhou novamente, a expressão de espanto em seu rosto foi o suficiente para lhe dizer o óbvio: as íris de seus olhos haviam ficado vermelhas e ela havia percebido sua real natureza. Houve um pequeno estardalhaço quando ela deixou a faca cair no chão e se afastou, fazendo o sinal da cruz diversas vezes antes de correr para dentro de casa e fechar a porta com um baque.

O Príncipe BastardoWhere stories live. Discover now