Capítulo 12 - Inferno e Paraíso (Parte II)

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― Desmond... ― Murmurou, meio aliviado, meio transtornado quando a solução começou a se desenhar à sua frente.
Não houve resposta. Mesmo assim, sua pulsação ficou instável com o pensamento do que estava por vir. Fez uma pausa, sem saber exatamente o que fazer ou por onde começar. Por fim, recuou sobre os calcanhares para tirar o casaco, e abriu alguns botões da camisa. Seus dedos estavam trêmulos quando arrancou o curativo do pescoço, deixando a mostra o fino corte que já começara a cicatrizar.
Observou a pequena mancha de sangue no band-aid por alguns instantes, hesitante ao aproximá-lo de seu nariz. Céus, estava ficando louco! Provocá-lo com sangue era, provavelmente, uma ideia muito estúpida, mas vira o desejo em seu rosto antes...   Os olhos de Desmond abriram-se de súbito, deixando a frase interrompida e o ar preso em sua garganta. Um arrepio eriçou os pelos de seu corpo.
― O que acha que está fazendo?
Zack inspirou devagar, e por um momento não foi capaz de se mover, mantendo o braço erguido em direção a ele. Assim como antes, suas íris possuíam bonitos reflexos escarlate, mas dessa vez, ele tinha as pupilas muito dilatadas, deixando seu olhar escurecido.
― Você precisa se alimentar, não é? Para curar esses ferimentos. ― Respondeu em voz baixa.
Uma ruga se formou entre as sobrancelhas escuras de Desmond, e ele soltou um grunhido baixo antes de virar o rosto para o lado bruscamente.
― Deixe-me.
― Você perdeu muito sangue, não pode sair e caçar... precisa de ajuda, não é por isso que voltou? Vamos, qual é o problema, Desmond?
Silêncio caiu sobre eles, fazendo o ruído do aquecedor parecer subitamente alto. Era vagamente consciente do ponto dolorido em seu peito, que não podia deixar de se perguntar: Desmond sentia tanta aversão por ele assim? Doía admitir que havia lido os sinais de maneira tão equivocada, mas havia coisas mais importantes que seu orgulho ferido.
― Não estou pedindo nada em troca, se é isso o que o preocupa.
Desmond o fitou de soslaio, como se soubesse o quanto lhe custara dizer aquelas palavras. Pela segunda vez, chocou-o a escuridão de seu olhar, mergulhado em reflexos escarlate... aos poucos estava aprendendo a ler suas expressões, mas não naquele momento. Tinha-o visto demonstrar frieza, irritação, sarcasmo, e até mesmo desejo, mas agora não podia supor o que ele estava pensando, porque ele não parecia muito com ele mesmo.
Outro pensamento estava a espreita, e aproveitou-se para fazer crescer suas raízes. E se a mordida fosse letal para ele? E se Desmond não pudesse parar depois de tê-lo mordido? Ele teria dito, verdade? Medo torceu suas entranhas, fazendo as outras preocupações parecerem muito menores. Esfregou o rosto em uma tentativa de afastar aquela sensação, mas ela continuou ali, e isso era uma droga. Se eles tivessem confiado um no outro, nada disso teria acontecido.
― Por que? ― A voz de Desmond soou tão baixa que mal pôde ouvi-la sob seus pensamentos.
Apesar de sua hesitação, Zack não titubeou ao responder:
― Eu disse que cuidaria de você, e é isso o que eu estou tentando fazer.
Deixou escapar um suspiro de frustração ao final, e começou a guardar os objetos que havia espalhado pelo chão de volta na maleta de primeiros socorros. Talvez estivesse se superestimando e levando seu papel a sério demais, ou talvez a resposta estivesse em um conhecimento sobre Desmond que ainda não possuía. Cansaço fez com que apertasse a nuca entre os dedos, massageando-a como Martin costumava fazer quando queria desarmá-lo em seus momentos de tensão... Martin. Ele certamente saberia o que fazer se estivesse em seu lugar, mas sua lembrança ainda era um pouco dolorida, por isso ele a afastou também.
― Por um momento achei você estivesse morrendo, e isso me desesperou, ― Disse por fim ― mas você está certo, eu não sei onde estou me metendo. Avise-me se precisar de alguma coisa.
Preparou-se para levantar, mas um murmúrio o impediu. Precisou encará-lo de volta, esperando a confirmação de que havia entendido corretamente. Desmond engoliu a saliva e ofegou, seu peito subindo e descendo com dificuldade.
― Não.
Zack assentiu, mas o nó em sua garganta o impediu de falar. Seus dedos encontraram o metal frio do punhal novamente, fechando-se em torno dele com determinação. Apontou-o contra o próprio pulso, lembrando a si mesmo de respirar.
― Não. ― Desmond murmurou outra vez.
Houve uma pausa. Deixou cair o punhal após alguns segundos, sem saber se deveria se sentir aliviado ou assustado com o arranjo. Na dúvida, tentou não pensar em nada enquanto dobrava a camisa até o cotovelo, grato por suas mãos estarem firmes quando aproximou o pulso de sua boca.
Os lábios cheios se abriram para recebê-lo, seguido de duas picadas.
Precisou morder a própria bochecha para impedir-se de fazer algum ruído, conforme as presas penetravam sua carne, mas aquilo era... muito diferente do que imaginava. Havia algo de dolorido, sim, mas sua pele ficou ligeiramente dormente logo em seguida, e uma sensação prazerosa percorreu timidamente suas veias, levando consigo um pacífico relaxamento, que logo tomou conta de seu corpo.
Poderia ter deitado no chão e ficado ali, apenas parcialmente consciente do quarto em volta e da bagunça em que ele se transformara, junto a sua vida. Em vez disso se manteve sentado sobre os calcanhares, apoiando-se sobre o tapete felpudo com a mão livre quando seu corpo pendeu para frente, tomado por um estremecimento. Ele pararia a tempo? Mais importante: seria capaz de pará-lo se fosse necessário? Esperava que sim... mas também esperava que pudesse esperar mais um pouco. Apenas um pouco mais.
Através dos olhos parcialmente abertos podia ver os hematomas de seu rosto passarem do roxo para o amarelado, do amarelado para o rosado, como se fosse a própria vida fluindo para dentro dele, e isso lhe pareceu bonito. Machucado ou não, a beleza dele fazia seu coração doer, e mesmo assim não podia deixar de olhar. Dedos firmes seguraram seu pulso para mantê-lo no lugar e quis gemer em resposta, mas em uma tentativa de se conter, tudo o que lhe escapou foi um ofego entrecortado.
Quando estava na faculdade, era comum que seus colegas lhe oferecessem diferentes tipos de baseado; eles possuíam inclusive diferentes apelidos para eles, dependendo do tipo de planta, ou do quão concentrado ele fosse. Não era um estilo de vida que quisesse para si, e não tocava em nada do tipo há anos, mas ele o experimentou em algumas ocasiões, quando o ambiente e a companhia lhe pareceram oportunos o suficiente. Isso havia lhe rendido algumas noites de sexo memoráveis, em que sua mente parecia ligeiramente desconectada da realidade, ao passo que seu corpo estava sensível ao menor toque. Era a maneira mais próxima de descrever como se sentia agora.
O tempo lhe parecia igualmente impreciso, mas não pensou a respeito até que Desmond se afastou, trazendo-o de volta a realidade contra sua vontade. Fez um ruído inconsciente de protesto, em resposta à pressão inesperada em sua calça. Sangue brotou do ferimento, vermelho e viscoso em contraste com sua pele clara, e foi aparado pela língua morna antes que tivesse a chance de escorrer e pingar. Desmond lambeu a região devagar, abrindo os olhos em um movimento preguiçoso. Era uma visão bonita, de uma maneira estranha.
Seus batimentos cardíacos estavam acelerados, de modo que sua respiração saiu entrecortada. No momento em que se deu conta, apartou-se, desconsertado, e lutou para recuperar a compostura, mas havia pouco que pudesse fazer para esconder seu real estado.
― Zachary... ― Desmond começou a dizer. A voz continuava a soar baixa, mas a entonação era diferente do ofego cansado de antes.
Envergonhava-o que tivesse se esquecido completamente do propósito em alimentá-lo, e obrigou-se a dar uma segunda olhada em sua direção. Suas íris continuavam vermelhas, mas as pupilas tinham voltado ao tamanho normal, e o que via nelas agora era reconhecimento. Desviou o olhar, incapaz de sustentar o dele por mais tempo.
― Seu rosto parece melhor. ― Disse, falhando em soar casual, e começou a se levantar. A mão de Desmond em sua nuca o parou. ― O que...?
Interrompeu-se, chocado demais para falar quando Desmond ergueu-se em um cotovelo. Não! Pôde ouvir o protesto em algum lugar de sua mente. Mas seu corpo não reagiu a tempo de impedir que os lábios de Desmond fossem pressionados contra os seus, e depois disso todas as vozes foram silenciadas. Sua mão era firme e sua boca era imperativa; não havia sons ou cheiros, apenas o gosto do sangue e o contato de sua pele.
Dedos frios deslizaram por seus ombros, afastando a camisa para tocar mais. O movimento foi o bastante para que se arrepiasse, mas também fez soar os sinos de alarme em sua mente. Afastou-se no instante em que encontrou forças para fazê-lo, empurrando seu ombro para garantir que havia pelo menos um braço de distância entre eles. Parecia haver tambores em seus ouvidos.
― Isso não está acontecendo. ― Ouviu-se dizer, odiando a própria falta de determinação.
Desmond não sorriu, mas poderia tê-lo feito.
― Está certo disso?
Zack esclareceu a garganta, munindo-se de toda sua força de vontade para prosseguir:
― Você me deve alguns pedidos de desculpa, e até lá, você e eu ficamos a uma distância segura. Vai amanhecer logo, você precisa descansar.
Seus músculos estavam doloridos pela maneira como os tensionava quando ficou de pé e deixou o quarto, evitando a tentação de olhar para trás. Apenas ao sair do quarto é que percebeu que havia muita limpeza para fazer, e que não tinha outro lugar para dormir.
***
Jowen se fora, e levara consigo a promessa de salvar Eilenah. Não sabia dizer o que tinha acontecido, se ele tinha conseguido ou simplesmente desistido… e àquela altura já nem se importava. Depois de três dias amarrado no pátio como um animal, sedento e dolorido, não havia muita coisa com a qual fosse capaz de se importar.
Essa era a ideia, supunha. Fazer com que a criatura desistisse de si mesma, dando abertura para que brincassem com sua mente e fizessem o que quisessem com ela. A única coisa da qual Desmond não tinha aberto mão no momento, era da ideia de matar Lorde Ivanic com as próprias mãos.
O sol já tinha praticamente desaparecido no horizonte quando avistou um rosto familiar. A postura altiva e o andar elegante o denunciavam mesmo se seu rosto não fosse tão familiar. Sefic cruzou o pátio devagar, acompanhado de dois guardas, consciente dos olhares frios a observá-los.
Ele não sorriu ao se aproximar de Desmond, ordenando com um gesto de cabeça que os guardas o soltassem. Ele caiu no chão com um baque ao se ver livre das correntes, incapaz de sustentar o próprio peso em um primeiro momento. Os guardas o ergueram, sustentando-o cada um de um lado.
― Levem-no para os meus aposentos. ― Disse Sefic, sem tirar os olhos de Desmond.
Eles arrastaram Desmond através do amplo espaço até o interior da estrutura de pedras. Sefic permaneceu ali, encarando-os, até sentir o toque leve em seu ombro, o perfume de tulipas silvestres invadindo suas narinas de maneira agradável. Ele se virou para encará-la, seus olhos adquirindo um brilho caloroso ao vê-la.
― Valentina, você esteve nos observando. ― Ele disse, tomando a mão longa e elegante de sua irmã entre as suas para depositar um beijo.
Ela se deixou beijar, mas recolheu a mão em seguida, segurando as saias do vestido longo enquanto afastava-se dele. Ela vestia diferentes tons de azul aquela noite, do corpete às infinitas camadas de saias e babados. Um pingente solitário brincava entre os seios, dando-lhe um aspecto de efêmera delicadeza, mas ele a conhecia bem o suficiente para reconhecer sua verdadeira natureza, que acabou por se manifestar através de suas palavras.
― Estava me perguntando quanto tempo você permitiria que nosso irmão fosse tratado como um qualquer ― Perguntou secamente, sustentando seu olhar com firmeza.
Os olhos cinzentos idênticos aos dele eram igualmente perigosos, e muito mais frios se assim ela desejasse.
― Não me parece o melhor lugar para discutir assuntos de família, minha querida. ― Respondeu, unindo as mãos atrás de si.
Ela ergueu o queixo, desafiadora.
― Este é o castelo de nossa família, nosso lar. Posso pensar em poucos lugares tão adequados. ― Retrucou, dando-lhe uma visão dos longos cabelos loiros ao virar-se de costas. As madeixas alcançavam-lhe já os quadris, com a promessa de que os cortaria quando se tornasse mulher. Aos dezessete anos, ele já não a via como uma menina, entretanto.
― Você está certa. ― Respondeu, tendo o cuidado de sorrir ― Mas eu prefiro continuar essa conversa em particular, se não se importar. ― Ele pousou a mão na curva de suas costas, apontando para a entrada do castelo em seguida. ― Porque não me acompanha até a biblioteca para uma nova leitura? Mamãe me disse que tem se interessado pelos estudos de nossa fé.
― De fato, Mesec me tem sido uma fiel companheira nos últimos dias. Sobretudo porque gostaria de entender o que separa Desmond de nós, e parece que nenhum de vocês possui uma verdadeira resposta.
Sefic manteve o sorriso, mas o calor desapareceu de seus olhos.
― Você conhece a resposta, minha irmã. Desmond não recebeu as graças de Mesec porque nunca será verdadeiramente um de nós.
― Tudo o que conheço são especulações, teorias! ― Ela deu uma volta para encará-lo, arrastando as saias do vestido no chão. ― A qual de vocês Mesec disse que Desmond era indigno de nós?
― Valentina, isso é blasfêmia. ― Sefic repreendeu, diminuindo o tom de voz em advertência.
― E Desmond é o nosso irmão! Como pode não se importar? Como pode nem mesmo tentar saber?
Assim que ela terminou de pronunciar as palavras, Sefic fechou a distância entre eles, segurando-a com firmeza pelo braço.
― Eu disse, que falaríamos depois, em privado. ― Sefic disse em um murmúrio, pausadamente.
Ela semicerrou os olhos para ele, parecendo soltar faíscas, e puxou o braço para se afastar dele.
― Divirta-se na biblioteca, meu príncipe. Estou indo verificar o meu irmão.
Recuperando-se em toda sua dignidade, Valentina desfilou na mesma direção em que os guardas tinham levado Desmond. O sorriso de Sefic se desfez ao vê-la sair abruptamente, seus lábios tornando-se uma linha dura.

O Príncipe BastardoWhere stories live. Discover now