Capítulo 9 - Entre Espadas

2.7K 399 100
                                    

O príncipe herdeiro e o filho bastardo

Ops! Esta imagem não segue as nossas directrizes de conteúdo. Para continuares a publicar, por favor, remova-a ou carrega uma imagem diferente.

O príncipe herdeiro e o filho bastardo. Parecia uma grande ironia que a fisionomia de um lembrasse tanto a do outro, mas assim era. Ambos possuíam o cabelo negro e comprido de seu pai, com sobrancelhas bem desenhadas que poderiam ter sido modeladas à mão. Sefic possuía traços mais aristocráticos, entretanto, assim como os olhos acinzentados que costumavam ser a principal marca da família Vladimic.
Desmond não os herdara. Era parecido o bastante com Vladimir para que não houvesse dúvidas a respeito de sua ascendência, ou para que a Rainha Ljubica não suportasse sequer olhar para ele, mas seus olhos quase humanos delatavam sua verdadeira natureza: Era um mestiço. Ele não conhecia sua mãe, e nem sabia como ela se parecia, mas tinha absoluta certeza de que ela possuía olhos castanho-escuros.
Os irmãos se encararam por algum tempo; Sefic não fez questão de disfarçar a sua curiosidade, avaliando o irmão do meio com uma interrogação no olhar. O semblante de Desmond não se alterou, permanecendo fechado como se este fosse um sinal de rebeldia. Sefic ergueu a mão, fazendo um sinal para os guardas que o acompanhavam e que haviam passado completamente despercebidos pelo outro.
Foi uma surpresa quando ambos se afastaram, deixando-os a sós. Desmond estava tão habituado a vê-los nos calcanhares de seu irmão que para ele eram como meros apetrechos decorativos. Não importava se estivessem em meio a um treinamento ou de conversas casuais, eles sempre estavam ali…
― Você não deveria estar se recuperando em seus aposentos? ― Disse Sefic, soando mais irônico desta vez.
Desmond comprimiu os lábios.
― É alguma espécie de brincadeira?
Sefic sorriu.
― Mesmo se fosse, você carece de bom humor. E eu poderia dizer que nosso tio não ficará nada feliz quando souber que você quase esfaqueou um de seus homens.
― Seu tio deveria treiná-los melhor.
Sefic riu baixo, um som que não era mais que um sopro entredentes.
― Você sempre me deixa em situações delicadas, Desmond. ― Sefic caminhou em torno dele, aproximando-se ― Parece que serei obrigado a fingir que não o vi, ou Tio Ivan questionará porque não tomei nenhuma providência.
Uma sobrancelha de Desmond se ergueu.
― Está me dizendo que não possui autoridade o bastante para contestar uma ordem, alteza?
Sefic pousou uma mão no ombro de Desmond, de maneira íntima.
― Você não é nada político, não é mesmo, meu irmão? Tio Ivan é alguém que preciso ter a meu lado, não torne as coisas muito difíceis, está bem?
Desmond se desvencilhou, afastando-se.
― Não importa se ele estiver quebrando o acordo?
― Acordo? ― Sefic piscou, com fingida inocência.
― De não atacar o vilarejo ― Respondeu, rispidamente.
Desmond tinha conhecimento do acordo, porque estava lá quando fora feito. Sefic havia cavalgado até Zarožje, seguido de um pequeno grupo de soldados que o incluía, e prometeu diante de todos, vampiros e humanos, que a terra dos humanos não seria invadida, desde que os humanos mantivessem distância e deixassem de caçar em suas terras.
― Não seja tão ingênuo, Desmond, acidentes acontecem. Afinal, por que se importa?
― Eu não me importo. ― Respondeu rapidamente ― Mas se Lorde Ivanic passa por cima de suas regras, isso não deveria ser considerado uma traição?
Sefic encolheu os ombros.
― Tio Ivan é problema meu. Agora vá, não queremos que você seja visto aqui.
Desmond estreitou os olhos.
― Não vai perguntar o que vim fazer?
Sefic o observou, sem deixar de sorrir, mas seus olhos se estreitaram também, parecendo bem mais perigosos que há poucos instantes.
― Pelo cheiro de sexo em você eu poderia dizer que você decidiu transar com um dos guardas, talvez ambos, mas eu o superestimo o bastante para crer que você não o faria aqui… não com este cheiro. ― Seus olhos se estreitaram ainda mais. ― É óbvio que você veio para ver a bruxa, e por coincidência há uma humana em seu quarto… acho melhor pararmos por aqui, não é?
Desmond apertou os dentes, impaciente.
― Se a Valentina souber… ― Ele começou, mas Sefic o interrompeu.
― Nossa irmãzinha não ficará nem um pouco feliz, e acredite, ela saberá de alguma forma… Você deveria aprender algo sobre discrição.
Sefic voltou a tocar em seu ombro, apertando-o de leve, como se fosse um irmão mais velho qualquer tentando enfiar-lhe algum juízo na cabeça. Mas então, havia uma longa hierarquia que os separava e que jamais permitiria que tratamentos como aquele fossem feitos em público. Ser tão parecido com Sefic já era ofensa o suficiente para a alta nobreza. Desmond se afastou, ignorando completamente o motivo que levava Sefic ali. Suas preocupações agora eram conseguir sair do castelo durante o dia e desvendar o enigma da bruxa.

Ainda estava escuro quando Zack partiu para Belgrado para dar depoimento a respeito de suas últimas horas ao lado de Erick. Havia sido um processo longo e cansativo, sobretudo porque foi tratado com extrema desconfiança o tempo inteiro, sob a justificativa de que crimes daquele tipo não eram comuns ali. Zack desconfiava que seu último conflito com os moradores da pacata Zarozje não ajudava muito a transmitir uma boa imagem de si mesmo.
Sempre havia sido tratado com cortesia antes, mas a verdade é que a Sérvia ainda carregava muitos traumas da última guerra enfrentada, há apenas vinte anos. Havia marcas visíveis na forma de prédios em ruínas que nunca foram completamente restaurados, além das memórias de um complexo envolvimento em um dos maiores genocídios da história dos Bálcãs. Ninguém falava sobre o assunto, e ele tinha o bom senso de não fazer muitas perguntas, mas a tensão no ar era quase palpável quando deixou a delegacia ao meio dia.
Caminhou sem pressa pelas ruas e parou para tomar um café, consciente de que estava muito próximo ao hotel de Martin. Estava dividido entre ir até ele e dar o espaço desejado, incapaz de decidir qual dos dois era realmente apropriado. Por fim, optou por deixar uma nota na recepção do hotel, e um pequeno buquê de rosas brancas comprado no caminho.
O ambiente era harmonioso e alegre, todo decorado em cores predominantemente quentes que faziam com que se esquecesse que nevava lá fora. Sentiu-se tentado a permanecer no hotel para a noite, ou até mesmo ficar de vez por lá, em meio à civilização e longe dos olhares especulativos de Zarozje… longe de Desmond. Ele poderia segui-lo até ali? Seria capaz de subir até o quinto andar sem ser visto pelo lado de fora ou daria um de seus sorrisos à simpática recepcionista de cabelos dourados atrás do balcão?
Talvez sim, e talvez não, mas isso não importava. Se quisesse ter fugido, poderia ter simplesmente entrado em um avião e ido embora. Seus rastros desapareceriam no ar e nunca mais teria que confiar sua vida a um estranho com habilidades e poderes sobrenaturais, alguém cuja existência ia contra suas crenças e que poderia ser tão atraente quanto o chamado do fundo de um abismo. Ficar havia sido uma escolha, por isso, viu-se apanhando o ônibus de volta para a vila, para a pousada da Sra. Bichman.
Com as estradas parcialmente cobertas pelo gelo, o trajeto demorou ainda mais que o esperado e já era noite quando chegou. Desejava um banho quente e o abraço macio de seu cobertor, com seu gato enrolado aos seus pés enquanto lia um romance qualquer até dormir… Mas todos os seus pensamentos se dissiparam no momento em que avistou sua porta.
Não exatamente a porta, mas o enorme rabisco desenhado nela. Uma cruz do tamanho de sua mão havia sido pintada com tinta vermelha, e embaixo estava escrito a palavra “izdajnik”. Não pôde conter o arrepio que eriçou os pelos de seus braços, mesmo quando a porta se abriu bruscamente.
Desmond lhe dedicou um olhar demorado, e não parecia muito feliz.
― Oi. ― Foi o que Zack conseguiu dizer, sacudindo a própria cabeça em uma tentativa de desanuviá-la. Não sabia se seria capaz de se acostumar com aquelas visitas inesperadas, mas não era isso o que detinha sua atenção. ― O que aconteceu aqui?
Os olhos castanho-escuros pareceram diminuir quando Desmond os entre cerrou. Parecia irritado o bastante para uma nova tentativa de enforcamento.
― Se está tão decidido a se matar, talvez devesse me dizer.
Sua voz soou afiada como uma lâmina, as palavras tirando-o de seu torpor momentâneo como um tapa. Desmond fez menção de passar por ele em direção à saída, mas Zack o impediu, colocando-se no caminho por puro reflexo. A percepção de que Desmond era muito grande e forte de uma maneira sobre-humana o atingiu em cheio.
― Espere. ― Pediu, tomado por sensações completamente ambíguas. Parte de si queria recuar até encontrar-se em uma distância segura, mas havia uma parte que se sentia triunfante pela própria ousadia, e era essa quem o encorajava a encará-lo de volta. ― Do que está falando?
Desmond parou onde estava, medindo-o de cima abaixo.
― Você esteve longe da vila. A noite.
Um comentário sarcástico fez a ponta da língua de Zack formigar. Então deveria ter medo do escuro e obedecer ao toque de recolher porque Desmond acreditava que era um vampiro e havia outros como ele lá fora? Era o que queria dizer. Mas a lembrança de Erick, ainda fresca demais, era um forte obstáculo para seu ceticismo habitual. Em vez disso, escolheu as palavras de maneira cuidadosa:
― Não pensei que isso fizesse alguma diferença depois que você invadiu meu quarto durante o dia. Você não tem me explicado muitas coisas, não pode me culpar por isso.
― Trabalhe com a pior das hipóteses. Sempre.
― E o que eu deveria fazer? Ficar trancado em casa, com medo do que está lá fora?
― Se tiver algum instinto de sobrevivência.
Zack suspirou.
― Eu não tive escolha. Precisava ir até a capital para dar um depoimento à polícia, ou eles me colocariam numa lista de suspeitos. Ou algo assim.
A expressão irritadiça de Desmond se alterou somente um pouco, e sem dizer nada, segurou-o pelos ombros, ignorando o choque em seu olhar.
― O que você está fazendo…? ― Zack sabia que seu rosto estava vermelho, mas não podia controlar algo assim. Desmond o estava inspecionando, mas sentia como... se estivesse sendo despido. Engoliu a saliva, afastando o pensamento.
Viu-o franzir o nariz um pouco e considerou se deveria se sentir ofendido com isso. Sabia que seu cheiro era uma mistura da colônia que usava e o odor de seu suor, mas o que ele poderia esperar, afinal? Não lhe dera tempo sequer de um banho.
― Eliminando riscos. ― Desmond grunhiu, e afastou-se bruscamente.
Dando-lhe as costas, ele caminhou pelo quarto em passos largos até parar diante da janela, e olhou para fora através das persianas. Zack observou os ombros largos que se destacavam, mesmo na penumbra em que o quarto se encontrava, e não pôde deixar de imaginar como ele seria sob a capa preta que usava. Independente de quais fossem suas opiniões a respeito dele, Desmond possuía um porte físico difícil de ser ignorado, e como se isso não bastasse, a forma como ele se movia era graciosa, quase felina. Tinha sido muito feliz em ignorar tal fato até aquele momento, segundos antes de ser segurado por ele, mas agora sua pele formigava onde as mãos largas o tinham tocado. Ele era assustador, mas também era sexy como só o diabo poderia ser.
Permaneceu no corredor por algum tempo, até perceber a movimentação de pessoas e entrar rapidamente, fazendo uma nota mental sobre o rabisco em sua porta. Teria que averiguar isso em algum momento, de preferência quando não estivesse distraído com a presença de Desmond.
Fechou a porta devagar, fazendo certo esforço para agir normalmente, e deslizou o dedo pelo interruptor em um gesto automático para acender a única luz no quarto. A claridade pareceu dar forma à sua pequena e persistente bagunça, desde os livros empilhados nos lugares mais inapropriados aos sapatos espalhados pelo chão… e havia ainda a figura escura de Desmond. Arriscou mais um olhar em sua direção, e precisou limpar a garganta com um pigarro antes de voltar a falar.
― Encontrou algo com o que eu deveria me preocupar?
― Não. ― Desmond respondeu, sem se voltar para olhá-lo.
Zack caminhou pelo quarto enquanto tirava o casaco, olhando em torno à procura do gato cinza, mas ele não parecia estar em lugar nenhum.
― Bem, então talvez queira parar de agir como se algo terrível tivesse acontecido e me dizer o que o traz aqui. Ou vou pensar que estava preocupado comigo. ― Acrescentou após uma pausa.
Dessa vez, Desmond o olhou sobre o ombro, e Zack pôde vislumbrar o que parecia ser… humor? Havia espaço para humor no poço de navalhas afiadas que era seu olhar? Oh, sim, o dia estava reservado para as surpresas.
Como se tivesse adivinhado o rumo de seus pensamentos, ele voltou a ficar sério e virou o corpo de lado para encará-lo.
― É possível que haja outro.
― Outro? ― Zack perguntou, mas ambos sabiam que era retórico.
Outro vampiro, era o que Desmond queria dizer. E como era esperado, ele não se deu ao trabalho de responder, em vez disso continuou:
― Consegui pegar um rastro próximo ao rio, não parecia humano.
― De qual rio estamos falando? ― Zack perguntou devagar, apoiando-se na cômoda com o quadril, pela necessidade física de recostar-se em alguma coisa para se manter de pé.
― O riacho logo abaixo, descendo a montanha. ― Desmond apontou com a cabeça em direção às árvores que começavam do outro lado da rua, e cruzou os braços, dando-lhe uma breve visão da pele alva logo abaixo do cotovelo.
― O rio Rogacica? ― Zack murmurou, mais para si mesmo, mas Desmond inclinou a cabeça uma vez, em um breve assentimento.
― Costumava ser onde se dividiam as terras do meu clã e a vila humana.
O rosto dele estava impassível mais uma vez, mas Zack captou algo em seu tom… algo na maneira como as sílabas se arrastavam e os erres vibravam com mais força, acentuando seu sotaque, indicando mais emoção do que ele gostaria de revelar. No que ele estava pensando?
― O que isso significa? Ele ou ela, estava se aproximando ou se afastando de Zarozje?
Desmond não era dado a gestos muito expressivos, mas um leve estreitar de olhos indicou que ele estava pensando antes de responder:
― Vampiros ficam muito enfraquecidos durante o dia, não é possível ir muito longe.
― E quanto a você? ― Zack não pôde conter a pergunta, uma vez que a imagem de Desmond iluminado pelo dia ainda estava vívida em sua lembrança. Mas ele também não respondeu a isso.
― Também não pude sentir o cheiro dele. Quem quer que seja, encontrou uma maneira de ocultá-lo.
Um arrepio eriçou os pelos de seus braços, e Zack os esfregou, tentando dissipar a sensação. Notou que Desmond também parecia ter certeza de que se tratava de um homem, ou melhor dizendo, um vampiro, mas não parecia que ele estava disposto a explicar isso também. Ao fim, murmurou:
― Isso não parece bom.
Os lábios de Desmond se franziram em um gesto carregado de ironia.
― Não é.
― E então você veio me avisar que ele pode estar aqui, em Zarozje. ― mas não o encontrou em casa, concluiu em pensamentos.
Foi inundado por sentimentos ambíguos, que duelaram por atenção em sua cabeça. Por um lado, não havia nada de confortável em saber que Erick podia mesmo ter sido assassinado, e que o culpado em questão estava no mesmo lugar que ele, e ainda sem um raio de ideia a respeito de suas motivações. Não conhecia Erick muito bem, mas podia jurar que ele não havia feito nada para irritar um vampiro... Zack, por sua vez, havia se enfiado dos pés à cabeça em algum tipo de drama que já durava mais de dois séculos, e onde o protagonista era o homem... o vampiro à sua frente.
Qualquer pessoa com metade de um cérebro estaria apavorada, e ele estava. Seus dedos estavam doloridos pela maneira como apertava a borda de madeira da cômoda para provar isso. Mas ele também se sentiu terrivelmente culpado ao se lembrar de quão tentador tinha sido ir embora, e quebrar a palavra que havia dado a Desmond. É claro que, havia sido uma promessa feita sob pressão, mas a cada minuto que passava, era mais consciente do fato de que ele, de alguma forma, havia trazido Desmond para esse mundo.
O pensamento trouxe à tona a centelha de simpatia que relutava em sentir por ele. Desmond não pertencia a esse tempo, ou a este lugar, mas estava, à sua maneira, cumprindo sua palavra. Ele inclinou a cabeça de lado, avaliando-o de volta em silêncio. Não era o tipo de olhar confortável, não quando ele fazia questão de parecer tão predatório, mas desta vez, não estava com medo. Talvez estivesse apenas cansado demais para isso.
Estava acostumado a trabalhar por muitas horas seguidas, tinha o péssimo hábito de pular refeições quando estava muito atarefado, e era provável que desenvolvesse gastrite em algum ponto de sua vida, pela quantidade de vezes que bebia café. Mas aquilo era diferente.
Houve um momento particularmente desagradável naquela manhã durante seu depoimento, que seguia incomodando-o como uma farpa enfiada no dedo, que não se consegue arrancar. O policial, um sujeito de cabelos escuros e escorridos que já começavam a ficar grisalhos, tinha lhe perguntado, em um inglês quase perfeito, enquanto fazia anotações em uma prancheta:
“Você disse que esteve em companhia da vítima durante a maior parte da noite. Notou alguma agitação ou comportamento estranho por parte dele?”
Ele havia cruzado uma perna sobre a outra e seu pé balançava de maneira incessante, atraindo a atenção de Zack. Aquele tique estava deixando-o realmente nervoso.
“Sim, eu estive. Éramos amigos em comum do Dr. Cooper, então ele e a esposa se juntaram a nós na mesa. Erick me parecia muito bem, até onde pude ver.”
O homem, cujo crachá identificava como Milan, ergueu os olhos para ele, surpreendendo-o com a visível hostilidade nos olhos escuros. Eles eram fundos e as pálpebras caídas não o ajudavam em nada a parecer simpático.
“Você também admitiu em seu depoimento ter se afastado por um momento e ido até o jardim. Algum motivo em especial para ter feito isso?”
“Eu não estava me sentindo muito disposto, o jardim me pareceu o melhor lugar para estar a sós em uma festa movimentada.”
“E você estava sozinho?”
A lembrança da silhueta escura de Desmond em meio às cercas vivas, com seu olhar escarlate, lhe veio à mente de maneira fugaz, como se tivesse somente a intenção de desestabilizá-lo. Zack fixou o olhar no pé de Milan, que continuava a balançar sem parar.
“Sim, não havia ninguém além de mim.” Mentiu.
O oficial lhe dedicou um olhar demorado antes de se voltar para a prancheta e escrever.
“Pode continuar, Dr. Simons”
E Zack concluiu seu curto relato, enquanto som de um teclado de computador soava de maneira insistente ao fundo. Nunca havia prestado um depoimento antes, e certamente nunca havia mentido em um.
Agora que pensava melhor, percebeu que não deveria ter respondido a pergunta, afinal, era um depoimento e não um interrogatório, mas tudo o que pensara naquele momento é que não podia expôr Desmond a nada disso. Embora fosse inocente, a lembrança criou um bolo desagradável em estômago, do tipo que o incomodaria por um bom tempo, ou, pelo menos até que o mistério da morte de Erick fosse solucionado... e, por fim, foi a culpa quem venceu:
― Acho que eu te devo um pedido de desculpas.
Em resposta, Desmond estreitou os olhos um pouco mais. Zack clareou a garganta, sem se deixar intimidar.
― Por acusá-lo pela morte de Erick, apenas porque você era suspeito.
― Tolice. Você não me conhece.
― É mais um motivo para pedir desculpas, não acha?
― De onde eu venho, seria considerado estúpido.
― Bem, de onde eu venho, isso seria considerado muito grosseiro. Não vai se repetir.
Desmond não respondeu, mas fechou o semblante em sua expressão habitual mais uma vez, deixando que o silêncio pairasse desconfortável entre eles. Zack olhou para a porta do banheiro de onde estava, sentindo que as necessidades humanas que estava negligenciando começavam a incomodá-lo com força total, e tinha a vaga consciência de que estava corando. Também era verdade que ele precisava de um minuto ou dois sozinho.
― Eu preciso de um momento. ― Disse por fim.
Não ousou olhar para Desmond ao passar ele, sentindo-o próximo demais para o próprio bem, mas parou ao segurar o trinco da porta, percebendo que ele havia se movido. Um olhar sobre o ombro e o viu abrir a porta da varanda, preparando-se para ir embora.
― Você não precisa ir. ― Ouviu-se dizer. Sua voz quebrou ao final, quando o vento frio se espalhou pelo quarto e atingiu sua nuca. Desmond hesitou ao ouvi-lo. ― Voltarei em um minuto, e seria bom se a porta estivesse fechada. ― Acrescentou, voltando a estremecer, e entrou no banheiro, sem esperar para ver o que ele faria.
Alguns minutos depois, Zack não esperava realmente encontrá-lo em seu quarto, mas a primeira coisa que viu ao abrir a porta foi seu semblante taciturno. Ele havia se sentado de costas para a porta da varanda e estava recostado nela, com um joelho dobrado e um braço que descansava sobre ele em uma postura quase relaxada. A capa parcialmente aberta dava-lhe uma boa visão do colete preto com detalhes bordados em azul-escuro. Um "V"  se destacava do lado esquerdo do peitoral, mas o que chamou sua atenção foi a corrente prateada em seu pescoço, com o que parecia um anel de sinete pendurado a ela.
Desmond não o olhou de volta, nem quando se aproximou o suficiente para se fazer notar. Seus olhos escuros estavam fixos no gato cinza, que o encarava de volta do outro lado do aposento, próximo a porta que levava ao corredor. O animal tinha os pelos eriçados em uma postura claramente defensiva, seus olhos azuis quase engolidos pelas pupilas dilatadas.
Um grunhido escapou de sua garganta e ele franziu o rosto peludo, mostrando as presas pequeninas, ao que, para sua própria surpresa, Desmond respondeu mostrando as dele. E não havia nada de pequeno nos caninos pontiagudos que se projetaram para fora de sua boca... doeria se elas perfurassem seu pescoço? A imagem que se formou em sua cabeça enviou um arrepio ambíguo por seu corpo, e foi preciso conter o impulso de esfregar a pele onde imaginara que a boca dele estaria. Observou-o em um misto de choque e fascinação por um momento, quase se esquecendo do pobre animal eriçado às suas costas.
― O que acha que está fazendo com o meu gato? ― Zack se colocou entre eles, interrompendo o contato ao se recobrar.
Só então Desmond ergueu o olhar ele, enrugando o nariz ao retrair as presas. Zack virou o corpo apenas o suficiente para alcançar o trinco da porta, mas manteve um olho nele enquanto a abria. Bastou uma brecha para que o gato escapulisse para fora, e Zack voltou a fechá-la, usando mais força do que pretendia.
― Precisamos esclarecer uma coisa. Você não pode assustar o meu gato.
― Eu não estava fazendo nada até ele começar a grunhir como o pequeno monstro que é.
― Ele é um gato. ― Zack o corrigiu, adotando seu melhor tom de autoridade. Sempre o fazia quando estava em sala de aula, e não costumava falar ― Meu gato, um animal indefeso, e isso não está em discussão.
Desmond resmungou para si mesmo, virando o rosto, e não disse mais nada, exatamente como esperava. Zack deixou cair a mão, contendo um suspiro. Se ia lidar com ele por mais alguns dias, era melhor que não o deixasse saber o quanto ficava aliviado, cada vez que ele fazia algo… humano.
― Eu pedi para que você ficasse aqui por um motivo, achei que estaria mais interessado em saber…
Sem verificar se Desmond estava ou não prestando atenção, começou a se mover pelo quarto, porque ocupar-se enquanto falava, melhorava sua concentração.
― Como eu já havia explicado, eu sou apenas um estudioso. Tudo o que sei a respeito da família Vladimic é o que encontro em livros, artigos acadêmicos, ou de coisas que encontramos… que encontrei em sítios arqueológicos, então descobrir o paradeiro da sua família será uma verdadeira caça ao tesouro. ― Zack fez uma pausa enquanto abria seu caderno de anotações, e voltou a caminhar: ― Encontrei uma data. Tem um artigo de um professor da Universidade de Belgrado que diz que a família Vladimic foi dizimada durante uma invasão. Ele fala que há testemunhas oculares de que o rei e a rainha foram encontrados mortos em seus quartos, mas não há provas disso, porque os corpos nunca foram encontrados.
― A rainha foi morta durante a invasão. Meu… o rei havia morrido antes disso.  ― Desmond disse, interrompendo-o ― Mas não é por eles que estou procurando.
― É uma informação muito importante ― Disse Zack em tom de aprovação, mas ao completar seu raciocínio, colocou as palavras cuidadosamente: ― Esse professor acredita que seus filhos foram mortos também.
― Acredita nele?
― Não sei. ― Respondeu, mais sincero do que deveria para seu próprio bem. ― Esperava que você pudesse me ajudar.
― Ah, sim? ― Desmond perguntou, em um tom de afiada ironia.
Zack não se abalou. Estava acostumado a lidar com adultos indisciplinados, teimosos, e hostis, portanto, aquele terreno era seu. Sentou-se ao lado dele, em um gesto inesperado de confiança de sua própria parte.
― Preciso que me diga o que sabe. O país inteiro estava em guerra, seu exército devia saber que mais cedo ou mais tarde os Turcos chegariam até vocês. Deve ter havido um plano… alguma rota de fuga, um acordo político, qualquer coisa pode ajudar.
Desmond desviou o olhar e encarou um ponto cego à frente. Primeiro, sem esboçar nenhuma reação, mas depois, a frustração se fez visível em seu semblante, na forma como apertava o maxilar. Ele fechou os olhos, e longos cílios escuros sombrearam maçãs do rosto pálidas, como quando o viu pela primeira vez, exceto pela ruga que se formou entre suas sobrancelhas.
Virou o rosto de lado para observá-lo melhor. Ele se vestia e agia de maneira estranha, para dizer o mínimo, mas não era como se ele tivesse a palavra “vampiro” estampado em sua testa. Não podia dizer se ele fazia parte do plano sobrenatural, ou simplesmente parte do que a ciência não havia tido tempo de descobrir, tudo o que sabia é que ele era real… assim como sua perda.
― Não me lembro. Não há nada. ― Ele falou, abrindo os olhos devagar. Por um instante, ele pareceu perdido... e não era pra menos. ― No que está pensando?
Zack percebeu, um pouco tarde, que havia sido pego em flagrante em seu escrutínio. Esperava que não estivesse sendo óbvio demais. Desmond não precisava saber de suas preferências... não era como se fosse um segredo, mas as vezes era mais seguro se fosse discreto. Observou atentamente o papel que repousava em seu colo, tentando se fixar nos rabiscos que havia feito pelos cantos da página, a letra descuidada destacando-se em vermelho.
― Estava tentando imaginar como deve ser acordar e ver que nada do que eu conheço existe mais. ― Disse suavemente, o que apenas fez com que Desmond o olhasse com desconfiança.
― Por que?
― Porque estou tentando entendê-lo.
Desmond desviou o olhar, visivelmente incomodado com aquela declaração.
― Não imagino como isso poderia ser útil.
Zack não respondeu imediatamente, batendo com a caneta contra a perna sem se dar conta.
― Quando nos conhecemos... ― Começou, fazendo uma pausa para umedecer os lábios, e porque provavelmente estivesse abusando da própria sorte, mas não podia evitar: ― você realmente acreditou que eu estivesse tentando matá-lo? Quero dizer, eu sou apenas um humano, e não estou entre as pessoas mais fortes de minha espécie.
Desmond soprou entre os dentes.
― Estávamos em guerra, nossos inimigos eram humanos.
Ele ficou em silêncio, e Zack aproveitou o momento para absorver mais uma pequena informação. Quando pensou que não diria mais nada, ele continuou:
― Fomos invadidos durante o dia, havia muitos deles. Aqueles que conseguiram escapar estavam escondidos, mas eu nunca cheguei no esconderijo... ― Ele olhou para o braço direito, perdido em pensamentos. ― Estava procurando por Valentina quando fui atacado por um vernacon.
― Vernacon? ― Zack perguntou em um murmúrio.
― Os humanos os chamam de nosferatu. Fui mordido por um deles, o veneno é letal, eu sabia que estava morrendo...
― Espere. Essa criatura, o vernacon, é um predador para os vampiros?
― Está mais para um vampiro que não se desenvolveu completamente. ― Desmond franziu os lábios. ― É o que acontece quando um vampiro e um humano tentam procriar juntos.
"Oh", foi tudo o que Zack conseguiu murmurar. Desmond ergueu os olhos para ele, de uma maneira que não foi capaz de interpretar.
― Então eu acordei e senti seu cheiro. Você poderia ser qualquer maldita coisa.
Zack sentiu o coração falhar uma batida ao entender o que havia acontecido, de fato, no momento em que desmaiou na tumba. Precisou umedecer os lábios, sentindo-os subitamente secos.
― O que o impediu de me matar?
Os lábios cheios de Desmond curvaram-se em um meio sorriso, e Zack teve absoluta certeza de que não queria saber realmente a resposta.
― Pensei tê-lo ouvido dizer que me teria sob seus cuidados. Precisava ter certeza.
Zack sentiu que todo o sangue subia para seu rosto, acendendo-o como a droga de um farol numa noite escura. Tossiu, tentando afastar as palavras de sua mente, mas não havia como.
― Apenas para que fique claro: Eu pensei que estava diante de uma múmia, seria o maior achado da minha vida.
― Está me dizendo que não queria dizer aquilo?
Zack vasculhou a própria mente em busca de uma resposta, mas não ajudava em nada que Desmond parecesse divertido com isso.
― Não. ― Respondeu após um momento, e voltou a fitá-lo. ― Eu quis dizer o que eu disse, eu... ― Pausou, umedecendo os lábios, e não perdeu a maneira como Desmond acompanhou o movimento.
Era possível que ele...?
― Você? ― Desmond o pressionou a continuar, mas tudo o que conseguia pensar é que adoraria arrancar o sorriso arrogante de seu rosto.
Precisava colocar alguma distância entre eles. Ficou de pé, ignorando o protesto de seus joelhos doloridos, e foi até a mesa que usava como escrivaninha, abandonando os papéis em meio aos outros. Queria ter algo com o que ocupar as mãos, mas na falta de uma ideia, apoiou-as na madeira escura, mantendo Desmond às suas costas. Tinha a impressão de que os olhos dele estavam sobre sua bunda, e isso era... demais para lidar naquele momento. Apertou os olhos, tentando limpar sua mente antes que fizesse algo inapropriado.
― Isso não importa. ― Disse, forçando as palavras para fora.
Concentre-se, Zack.
― Talvez haja uma maneira de verificar se a princesa Valentina e o príncipe Sefic saíram da Sérvia com vida.
Desmond permaneceu em silêncio, e Zack percebeu alguns segundos depois que ele esperava que continuasse. Comprimiu os lábios.
― Preciso voltar à tumba. Não tive tempo de ler as inscrições e perdi as fotos que tirei junto com o celular, você sabe... não, você não sabe, esqueça.
― Você será caçado como um coelho. ― Desmond disse, taxativo
― Não são exatamente palavas de incentivo. ― Zack replicou, respirando fundo ― Mas  você quer encontrar sua família, não quer?
― Deve haver outra maneira.
― Eu vou durante o dia. Você disse que era mais seguro, não é?
― Não. Você deve permanecer na vila.
Zack sentiu, mais do que ouviu, que Desmond havia ficado de pé e estava a apenas alguns passos de distância. Empurrou a mesa ao ficar ereto novamente e deu a volta para encarar o olhar teimoso com igual determinação. O diabo que o obedeceria.
― Eu não estava pedindo permissão.
As sobrancelhas escuras de Desmond franziram-se em uma carranca, e uma veia de seu pescoço saltou, denunciando algum tipo de debate pessoal. Todo o humor que vira minutos antes havia se dissipado.
― Como quiser.
O vampiro cuspiu as palavras e deu a volta, dando-lhe as costas. Antes que Zack pudesse formular uma resposta inteligente, Desmond caminhou até a porta da varanda e a abriu com um puxão irritadiço. Ele parou, lançando-lhe um olhar lateral duro, e saiu para a noite, deixando para trás o vento frio e a porta aberta.

______
Boa noite, amores! Estou deixando um capítulo um pouco maior pra compensar minha demora. Peço obrigada a todos, espero que estejam bem e continuem se cuidando. Me digam o que acharam do capítulo tbm! Beijos a todos!

O Príncipe BastardoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora