Capítulo 29 - Aliança

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Desmond sempre estivera em alerta. Quando era criança, fugia constantemente de garotos mais velhos que queriam atirá-lo ao rio - porque ele não sabia nadar até que completou catorze anos de idade - ou qualquer tipo de brincadeira estúpida. Depois, quando aprendeu a lutar passou a se envolver em brigas, pois ao invés de fugir passou a revidar os insultos, o que fez com que passasse a andar com uma adaga para todos os lados, inclusive durante o dia.
Foi apenas quando descobriram que ele podia caminhar normalmente durante o dia que eles deixaram de confrontá-lo diretamente e passaram a sussurrar seu nome através das paredes do castelo como se fosse alguma espécie de maldição. Havia uma sensação de nervosismo geral quando ele estava por perto no salão, o que se tornou uma hostilidade generalizada quando se tornou adulto.
O conselho não achava adequado torná-lo um soldado juramentado. Desmond se lembrava de estar em uma sala ampla, rodeada por bancadas altas de madeira, de onde os anciões o olhavam de cima. Os vira poucas vezes na vida antes, e não gostou dos olhares reprovadores sobre si, como se estivessem vendo um inseto. E ser meio humano, era algo bastante similar para eles.
Havia vestido sua melhor roupa - Valentina o presenteara com um casaco azul marinho, a cor que estampava a bandeira dos Vladimic, com detalhes dourados nos punhos e nos botões, tão macio que deslizava ao toque - e recolhido o cabelo em uma trança. Parecia-se a um príncipe, ela dissera, para a cerimônia onde realizaria um juramento ao rei. Seu pai.
Ele estava sentado à sua frente na posição mais elevada, com a rainha e Valentina de pé à sua esquerda como suas bonecas de porcelana, e Sefic de pé à sua direita. Embora fosse consciente da presença deles, Desmond fitou o rosto frio de seu pai, encarando os olhos cinzentos e sendo encarado de volta pela primeira vez, desde que podia se lembrar.
Mal podia respirar e sentia-se tolo por estar ali, vestido daquela maneira, tentando agradar aquelas pessoas, mas fugir seria uma covardia, e ele não fugia mais. Assim, permaneceu de pé no centro do salão, ouvindo cada vampiro ancião enumerar as razões pelas quais Desmond não deveria ser admitido no exército.
Desmond tinha sangue humano. Segundo eles, jamais dominaria tão bem o próprio corpo, não poderia controlar a audição ou a visão aguçadas, não seria tão ágil como os demais, e por fim se voltaria contra os seus porque humanos eram criaturas covardes e mesquinhas. Desmond ousou olhar para Sefic durante alguns momentos, porque ele era talvez o único que sabia que ele podia lutar, melhor que a maioria.
Havia sido advertido que nem ele ou Valentina poderiam intervir na cerimônia, embora, e nenhum deles disse nada até que a votação do conselho foi encerrada e ele foi massacrado com uma negativa unânime. Naquele dia entendeu que, não importava o que estivesse vestindo ou o quanto estivesse tentando, jamais poderia ser um deles.
O rosto de Vladimir era uma máscara impassível, o que Desmond provavelmente herdara dele. Não havia conseguido prever a opinião de seu pai a respeito de tudo, pois ainda se fosse um bom entendedor das pessoas, não teria sido possível ler a expressão no rosto duro, de traços aristocráticos. Poderia confundi-lo com o irmão se ele não tivesse uma queimadura do tamanho da palma de sua mão no lado direito do rosto.
Ele ficou de pé em seguida, e disse com uma força própria que apenas ele possuía:
"O sangue humano é indigno desta casa e deste reino. Da mesma forma, não existe sangue mais nobre que o sangue de um Vladimic. Ao dizer que um sangue impuro tem mais valor que o meu, vocês estão ofendendo ao meu nome e a si próprios. Anularei a participação do conselho, como prova de sua vergonha para mim e minha família"
Depois disso, seguiu-se uma longa discussão. Não era fácil ou sábio contrariar uma dezena de vampiros antigos, cujas famílias ainda mais antigas defendiam o nome dos Vladimic. Mas naquela noite, o homem que nunca lhe digira a palavra como pai, contrariou a todos eles e lhe presenteou Aemoh.
Todos eles pareciam consternados. Pelo menos, isso foi o que ele vira, ferido e constrangido demais para perceber que, na verdade, eles estavam assustados. Um grande poder havia sido confiado a ele, que, possuía a força de um Vladimic e não enfraquecia sob a luz do sol.
Com isso, sua vida havia sido um constante estado de alerta. Nunca dormia sem uma arma sob o travesseiro, nunca deixava pegadas ao sair, nunca ignorava os ruídos do mundo à sua volta. Foi assim que ele percebeu, mesmo enfraquecido, que ele, Isaac, o médico e seu assistente, não estavam mais sozinhos no instituto.
O barulho viera de cima, e ele subiu as escadas em direção ao som de passos, espada em punho. Os corredores pareciam um labirinto no segundo andar, mas um cheiro ligeiramente familiar atingiu suas narinas e ele confiou em seu olfato para levá-lo aonde quer que o novo visitante estivesse.
O lugar resultou ser uma sala escura, repleta de estantes como uma espécie de biblioteca, só que em lugar de livros havia caixas e pilhas de papeis fechados em envelopes. A porta estava entreaberta e ele entrou sem fazer barulho, divisando uma silhueta escura segundos antes de ser percebido.
O homem parou, e se virou em sua direção. Desmond não podia ver seu rosto claramente no escuro, mas reconheceu a surpresa na maneira como o outro deixou cair no chão a caixa que tinha em mãos em uma confusão de papéis. Ele correu para os fundos da sala, desaparecendo de seu campo de visão momentaneamente. Desmond deu um passo à frente, sendo engolido pelo escuro.
- Nós já nos conhecemos? - Ele perguntou, sem alterar o tom de voz.
A resposta veio vários segundos depois, à sua direita.
- Você estava morto. Eu o trouxe morto para o hospital.
A voz, apesar de um pouco abafada, era perfeitamente reconhecível. O policial na estação, de quem havia quebrado o braço. Como era mesmo que se chamava?
- Então, já nos conhecemos, Louis.
- Você matou meu amigo. - O outro disse em um tom duro. - Maldito Vladimic, os Vladimic estragam tudo aquilo que tocam.
A menção ao nome de sua família paterna o deixou em alerta.
- Então você sabe quem eu sou?
- O bastardo que voltou à vida pela segunda vez. Você é bem teimoso, não é?
Desmond se voltou a tempo de ouvir um suave click, que reconheceu como o som de uma arma. Louis estava mirando em sua direção.
- E você é bem estúpido. Isso não vai funcionar.
Ignorando-o, Louis deu um passo a frente, e então Desmond pôde vê-lo. Ele tinha um braço preso em uma tipóia e o outro estava apontado para ele.
- Você nunca deveria ter saído do buraco de onde veio!
O primeiro tiro explodiu abafado aos seus ouvidos, atingindo uma estante de metal atrás de si com um estrondo alto. Desmond não esperou pelo segundo disparo, rolando para o lado como um gato antes de atirar todo o peso de seu corpo sobre a sombra escura. Louis debateu-se sob ele, sibilando entre os dentes quando suas presas despontaram.
- Vou atirar em seus miolos, você vai direto para o inferno desta vez!
Desmond o prendeu no chão, pressionando o cotovelo abaixo de seu queixo para impedir que o mordesse. A mão livre lutou pela posse da arma, e o cheiro de sangue golpeou suas narinas quando suas unhas afundaram na carne macia de seus dedos. Só então uma questão lhe ocorreu: Se Louis acreditava que Desmond estava morto...
- O que você está fazendo aqui? O que é que você estava roubando?
O vampiro riu, fazendo seu peito vibrar em contato com o dele.
- Alguém precisava limpar a sujeira que você fez, seu idiota.
Desmond conseguiu tirar a arma de sua mão e rolou para o lado, afastando-se de Louis. Os olhos estreitos apertaram-se em desconfiança, fitando o outro que se sentava no chão.
- O que quer dizer com limpar a sujeira?
- Você não sabe? Tudo o que acontece nesse mundo fica registrado. Sua cara bonitinha estaria estampada nos jornais a essa altura se não tivéssemos desaparecido com as imagens. Graças a você, precisamos limpar a memória de dezenas de pessoas.
Desmond ficou de pé em um salto, cobrindo a passagem. Aparentemente, a única saída da sala.
- Você veio sozinho? Quantos vampiros estão aqui além de você?
Luois riu novamente, ocupando-se em limpar o machucado em seu lábio.
- E se eu não quiser responder, o que vai fazer? Vai atirar?
Estava claro que Desmond não sabia usar uma Glock automática, mas ele tinha algo melhor.
- Você ficaria surpreso se soubesse o quanto eu sou bom em arremesso. - Devolveu no mesmo tom, com um sorrisinho lateral que poderia ser bastante atraente em outras circunstâncias.
Aemoh pareceu brilhar no escuro quando a desembainhou, e ele viu Louis segui-la com o olhar.
- Seu amigo morreu por causa dessa bonitinha, não seria um fim bastante poético se eu acabasse com você da mesma maneira?
O humor cínico desapareceu do rosto de Louis, e Desmond quase pôde sentir o cheiro de sua irritação.
- Você quer saber quantos vampiros além de mim estão aqui? Deveria verificar o andar de baixo. Meus amigos devem estar limpando a memória do médico agora.
Desmond sentiu o gosto da bile em sua boca. O médico. Isaac estava com ele.

O Príncipe BastardoWhere stories live. Discover now