Capítulo 14 - Laço de vidro

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Desmond era vagamente consciente de que havia adormecido

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Desmond era vagamente consciente de que havia adormecido. Sua mente cansada não havia sido capaz de manter desperto seu corpo dolorido, queimado pelo sol após muitas horas preso no pátio. As queimaduras leves faziam com que fosse difícil se mover, por isso ele agradeceu quando foi dominado pela escuridão de seu sono.
Horas mais tarde, a dor se tornou um incômodo formigamento onde a pele começava a cicatrizar. Apenas um lençol cobria seus quadris e nada mais, por isso também começou a sentir frio. Foi nesse momento que ouviu a voz de Valentina ao fundo, e o som trouxe-lhe conforto o suficiente para que voltasse a relaxar sobre os lençóis, mas não o bastante para que dormisse. Foi então que obrigou-se a prestar atenção ao que ela dizia, dando sentido às palavras:
―… então o homem e a mulher tiveram cinco filhos. A primeira, morreu de doença antes de completar os sete anos de idade. O segundo morreu durante uma caçada, e foi devorado pelos lobos na floresta. A terceira não era ainda adulta quando concebeu uma criança de um de seus irmãos: padeceram os dois, no dia do nascimento. O quarto morreu em batalha, protegendo a vila de invasores. O quinto foi para a guerra e nunca mais foi visto.
Valentina fez uma pausa, e pôde ouvir o som de uma página sendo virada.
― O homem, sabendo que a mulher tinha uma idade avançada e não lhe daria mais filhos, casou-se com uma moça mais jovem e a mandou embora. A mulher vagou durante três dias e três noites, carregando sozinha a dor da perda e, por fim, morreu de tristeza.
― Não posso me lembrar de porque essa história a agrada. ― Desmond tentou dizer, mas sua voz saiu em um murmúrio rouco, mais fraco do que gostaria. Abriu os olhos a tempo de vê-la erguer o rosto do livro que tinha no colo, iluminado pela luz solitária de uma vela sobre o criado-mudo.
Sentada em uma cadeira ao lado da cama, Valentina fazia com que o quarto parecesse mais bonito e mais nobre do que realmente era. Anos e anos de rígida educação tinham-lhe concedido a postura ereta impecável e o ar de distante interesse, como uma boneca que tivesse acabado de ganhar vida. A sombra de um sorriso aqueceu por um momento os olhos cinzentos, e desapareceu em seguida.
― Sempre que a leio, penso no quanto somos afortunados por sermos filhos de Mesec, nossa mãe jamais permitiria que tal tragédia acontecesse. Mas se o incomoda, posso ler apenas para mim depois.
Desmond desviou o olhar para encarar o teto.
― Não me incomoda.
― Está certo disso? Você tem aquela expressão em seu rosto, de quem poderia rasgar este livro em mil pedaços. ― Valentina abandonou o volume sobre o criado-mudo e se aproximou para sentar na cama ao lado dele. ― No que está pensando?
― Em quando você era criança, e escapava de sua mãe para ler para mim. ― Desmond pausou para engolir. Sua garganta estava seca como uma lixa. ― Já faz muito tempo.
― Bem, eu não sou mais uma criança.
Sem cerimônias, Valentina levou as mãos às costas, desfazendo os laços do próprio corpete. Desmond voltou a desviar o olhar.
― Por que está aqui?
― Para cuidar de você, como tenho feito desde que nos conhecemos.
Houve uma pausa, em que o único ruído no quarto era o da chama alaranjada, que queimava a cera da vela lenta e continuamente.
― Sabe por que fui punido?
Valentina terminou de tirar a peça, e deixou o vestido cair frouxo sobre seu corpo, sem pressa, como se considerasse até onde estava disposta a responder. Por fim, disse:
― É claro que eu sei.
― Por que não está furiosa?
Desmond a ouviu suspirar.
― Porque você está machucado, e eu odeio que eles o tratem dessa maneira.
― Eles não me consideram um deles.  ― Desmond respondeu laconicamente, sem saber se o dizia para ela ou para si mesmo.
― Você é filho de Vladimir, meu irmão, e isso é tudo o que importa! Eles não têm o direito de se esquecer disso, você não tem o direito de se esquecer disso!
― Eu não me esqueci.
Agitada demais para permanecer sentada, Valentina ficou de pé. Desmond observou-a caminhar ao redor do quarto, sem ousar mover a cabeça. Toda a calma havia desaparecido de seu rosto, fazendo-a parecer mais jovem e mais viva do que normalmente parecia.
― Então como você pode explicar sua obsessão pelos humanos? Quanto mais tento entendê-los, mais me parecem dignos de pena, por que você insiste em aproximar-se deles?
― Eu gostaria de entender...
― O que há para entender?
― Sangue humano corre em minhas veias, quão diferente eu sou deles? ― Perguntou, subindo a voz uma nota.
― Não diga bobagens, Desmond! Tio Ivan faz questão de dizer a todos que você protege humanos, há boatos entre os nobres de que sua lealdade é um problema!
― E você acredita nele?
― Por Mesec, não! Mais do que ninguém sei que aquele covarde ressentido faria de tudo para prejudicá-lo, é por isso que precisa parar de dar a ele o que ele tanto quer! Por que manter a humana viva?
Desmond grunhiu.
― Não se trata de Lorde Ivanic, se trata de mim.
― Pense um pouco, Desmond! Se você não fosse um vampiro, papai jamais o teria trazido para viver entre nós, olhe para si mesmo! Alguma vez já se olhou no espelho?! Mama nunca o perdoou por ser tão parecido ao papai, sabia disso? Não tenho palavras para o quanto estou desapontada com você por guardar segredos de mim.
― Você teria entendido?
Era uma pergunta retórica, mas Valentina respondeu mesmo assim.
― Pela noite e todos os seus filhos, não! A humana deve morrer e você sabe disso!
― Eilenah não estava em nosso território, ela é inocente! Lorde Ivanic foi o único que quebrou as regras.
Valentina o encarou com a boca aberta por um momento, depois apertou a ponte do nariz entre os dedos.
― Agora ela tem nome um nome também?
― Um nome, uma família... ― Começou a dizer, mas Valentina o interrompeu.
― Ninguém se importa, Desmond, e você também não deveria! Não me faça pensar que tio Ivan tem razão para levantar suspeitas a seu respeito, eu não poderia suportar tal decepção!
Como se não suportasse olhar para ele, Valentina deu-lhe as costas e foi até a janela, a luz etérea da lua banhou seu semblante. Havia angústia ali, mas também havia uma fria determinação que não admitia recusas.
Desmond não respondeu imediatamente. Não era a primeira vez que a questão fazia seus pensamentos efervescerem, afinal, tinha sido lembrado durante toda a vida de que era diferente... e durante toda a vida, Valentina e Sefic estavam ao seu lado para dizer o contrário, mas isso era antes.
― Se eu sou um igual, por que Sefic me enviou para a tropa de base? ― As palavras saíram mais doloridas do que imaginara. Era um bastardo, e mais do que ninguém conhecia seu lugar… mesmo assim havia aquela parte dele que esperava mais de seus irmãos. E essa parte sentia-se traída agora.
Seu tom não passou despercebido por Valentina, que retomou seu lugar na cama. Ela se deitou ao lado, apoiando-se em um cotovelo para observá-lo de perto.
― Para Sefic, tudo é sobre sua maldita política. Ele está tentando agradar aos nobres e aos anciãos do conselho, tentando provar a todos que pode ser um bom líder, mas ele o ama, Desmond, como eu amo. ― Ela acariciou seu rosto com as pontas dos dedos, como se temesse machucá-lo. ― Não importa o que aconteça, você, Sefic e eu, sempre estaremos juntos.
Valentina interrompeu os movimentos, inclinando-se para beijá-lo nos lábios. Desmond fez menção de recuar, mas seu cheiro tão próximo fez suas presas dilatarem, arrancando um filete de sangue. O gosto pungente em sua língua fez sua garganta parecer ainda mais seca, e sua gengiva palpitou, dolorida, ansiosa de uma maneira que não podia evitar.
― Morda-me… ― Valentina murmurou, e afastou o cabelo do pescoço em oferecimento.
Sangue viscoso encheu sua boca, fazendo cócegas em sua língua. Era um gosto familiar, e veio acompanhado por um abraço. Valentina fechou os olhos, deixando os dedos acariciarem seus cabelos enquanto estremecia pelas sensações que percorriam-lhe o corpo, mas após um momento, Desmond a afastou.
― Valentina… ― Ele murmurou.
― O que houve? ― Ela perguntou em resposta, em meio a um gemido de protesto.
Desmond engoliu a saliva, deixando que o sangue nobre fizesse efeito em seu corpo. O alívio para suas dores foi quase imediato, e, no entanto, o peso em seu peito permanecia ali.
― Preciso saber se confia em mim, e se eu posso confiar em você.
Seu tom fez com que Valentina recuasse o suficiente para observá-lo. Uma gota escura escapou pelo canto de sua boca, e ela aparou com o polegar.
― Você e Sefic são tudo o que me importa. Para mim, não há nada acima do amor que eu sinto por vocês.
― Eu fiz uma promessa...
― Uma promessa? ― Valentina repetiu.
Desmond prosseguiu, ignorando a interrupção.
― De que levaria Eilenah de volta, viva, e pretendo mantê-la. Preciso da sua palavra de que não fará mal a ela.
― Desmond...
― Em troca, não voltarei a falar com os humanos.
Valentina franziu os lábios, e, após um momento de relutância, afastou o lençol para o lado e escorregou sobre seu estômago, passando uma perna de cada lado de seu corpo. Desmond conteve um gemido, quando a pele machucada protestou, mas não a afastou.
― Você tem a minha palavra. ― Ela respondeu, sustentando seu olhar, e apoiou as mãos em seus ombros.  ― Agora pare de pensar nisso e me faça sua.
A forma como encaixou o corpo ao seu e moveu os quadris era uma mensagem clara o suficiente, mas foram as palavras que o fizeram erguer os seus em resposta.

O Príncipe BastardoWhere stories live. Discover now