5 de Fevereiro, 2019 - Terça (17h25)

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"Coloca algo pra ele assistir", sugeriu meu primo, dando o celular dele na minha mão.

Rolou um papo rápido sobre como é fácil distrair crianças hoje em dia, e de como eu dava trabalho para minha avó na infância, por ser uma criança "diferente" e que gerava comentários entre o pessoal da igreja por eu não agir da mesma forma que os outros garotos.

"Ah, vó... O Zak é bonzinho. Ele nem dava trabalho pra senhora", falou meu primo, tentando me defender. "Eu é que era espoleta. Dava dor de cabeça pra todo mundo, lembra?"

"É, mas você num gerava comentário". Novo silêncio. Mesmo o Lucas não falava nada, hipnotizado pelo desenho que assistia no celular. Pouco tempo depois minha avó, que olhava pela janela, deu uma risadinha (coisa rara): "Meu filho sim, dava trabáio. Aquele ali não ficava uma semana sem levar bronca da escola. Só foi sossegar quando comprou aquele caminhão e começou a trabaiá com fretagem".

O pequeno sorriso que ela tinha no rosto se esvaiu. Certamente lembrando que anos depois ele sofreu um acidente no trânsito, e perdeu não só a mercadoria como também o caminhão. Depois desse disso ele parou de viajar e teve bastante tempo livre para atormentar nossas vidas, caindo na bebedeira e descontando na gente o ódio da vida.

Minha avó passou a mãos nos olhos, por baixo dos óculos. Tive a impressão que ela estava chorando. E logo em seguida, quando ela falou com a voz embargada, tive certeza.

"É duro essa vida, viu... Não aguento mais ficar com o coração na mão por causa dele. Tô véia pra isso. Se ao menos aquele cabeça-dura tentasse de novo... Ele tinha tanto serviço! Nunca falhava cos cliente". Ela secou outra lágrima, e soltou um "Misericórdia, viu... Misericórdia..."

No banco de trás do carro, suspirei devagar para que não ouvissem. O peito ardia só de lembrar como era viver naquela casa com ele, e como eu desejei tantas vezes - tantas vezes... – que ele tivesse um treco de tanto beber.

Mas vendo minha avó daquele jeito...

"E se..." comecei, sem ter certeza de que queria falar aquilo.

"Desembucha, primo"

"Hã... E se a gente der um jeito de comprar um caminhão? Sabe, pra ele ter um motivo pra parar de beber, sei lá... Voltar a se sentir útil, pagar o próprio sustento..."

O Jonas me olhou pelo retrovisor. Uma das sobrancelhas estava tão elevada que era quase cômico. Incredulidade pura. Eu mesmo quase não acreditei no que estava falando. Já minha avó, virou para trás para me olhar.

"E como você faria isso? Onde arranjou tanto dinheiro pra poder oferecer um caminhão desse jeito?". Eu não tinha certeza se ela estava irritada, ou se era uma esperança velada. A voz áspera dizia uma coisa, mas o brilho nos olhos era real.

"Eu não tenho o dinheiro, vó... Mas daria pra gente financiar, sei lá. O Nicolas talvez possa ajudar, também... E o Jonas..."

"Nem vem! Já tô gastando com o casamento. Me tira dessa, mané"

"Tá, que seja... Mesmo assim, a gente pode conseguir algo, nem que seja um caminhão pequeno e usado pra ele recomeçar. Se ele realmente for bom como a senhora diz, ele mesmo pode conseguir um melhor depois"

Eu estava com um gelo desconfortável na barriga. Talvez por estarmos cada vez mais próximos do hospital onde ele foi internado e, como você sabe melhor do que ninguém, minha experiência com hospitais não é das melhores. Mas acho que aquele nervoso não era pela proximidade com o hospital, amiga. É difícil explicar... Talvez seja porque existe a possibilidade real de eu mudar a vida do traste. Mudar pra melhor, de forma que ele não queira mais me encher o saco, sabe? É uma sensação estranha essa de tentar fazer o bem pra alguém que odeio.

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⏰ Last updated: Mar 12, 2023 ⏰

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O Monotono Diario de Isaac [BETA]Where stories live. Discover now