19 de janeiro, 2019 - Sábado (20h54) → Parte 2 de 2

Start from the beginning
                                    

"Hãã... Ela foi meio que... Conversar com Deus. Ela sempre fazia isso".

Falei baixo. Não queria que ela me ouvisse explicando isso aos Belson.

Ficamos quietos, e eu aproveitei os minutos de silêncio para olhar em volta. Não exatamente para matar a saudade – pois não havia nenhuma –, mas para buscar lapsos de memória num canto ou outro. A última vez que eu estive na casa de minha avó, quando ela me ajudou depois de minha gafe monstruosa, sequer tive tempo – ou estômago – para ficar observando as coisas.

Na geladeira havia um velho ímã em forma de tábua de cortar, do tamanho de meu mindinho, com feijões vermelhos e grãos de milho grudados por cima. Fiz aquilo em algum ano do jardim de infância para um dia das mães que já caiu no esquecimento. O excesso de poeira e gordura da cozinha fez com que as cores verdadeiras ficassem tão apagadas quanto minhas memórias de minha falecida mãe.

O silêncio foi um pouco constrangedor, mesmo estando entre pessoas com quem já estou acostumado a conviver. De repente, ouvimos um remexer de portas de guarda roupas, o som de coisas caindo, e minha avó chamando meu nome. Levantei correndo. Só faltava alguma coisa acontecer com ela no dia em que a estávamos resgatando... Mas ela estava bem. No chão, várias caixas velhas haviam caído de cima do guarda-roupas, de onde ela havia retirado uma mala marrom, daquelas sem rodas que só vejo em filmes dos anos noventa para baixo.

"Desde quando a senhora tem isso?"

"Não importa, me ajude aqui..."

Fui até ela e voltei as velhas caixas no lugar. Quando criança, sempre via o topo do guarda-roupas cheio de caixas de papelão, mas nunca me perguntei o que havia ali. Uma delas, que se abriu na queda, exibia no interior um conjunto de roupas todas dobradas. Reconheci algumas delas por causa de velhas fotos da família. Não falei nada, nem perguntei, pois eu já havia compreendido. Eram roupas de meu avô e de minha mãe.

"Você não..."

Comecei a falar, mas me calei. Eu ia comentar sobre o fato de as roupas nunca terem sido doadas. Um arrepio passou por minha espinha quando mudei de assunto, forçando um riso para fingir que as roupas dos mortos não haviam me incomodado: "Então você vai com a gente?"

Com todas as portas do guarda-roupa escancaradas, e guardando algumas na mala, ela respondeu meio que resmungando:

"Vou só ficar uma semana, duas no máximo. Deus falou comigo, e o moço estava certo... Deus disse que realmente ouviu minha prece..."

Notei silenciosamente que ela disse "moço" referindo-se ao Nicolas. Ela evitou dizer tanto a palavra tabu (namorado) quanto o nome dele. Ignorei e fingi não notar. Acho que devo ter engolido umas boas dezenas de sapos ontem, e tudo para não arruinar o plano que estava dando certo.

Enquanto eu a ajudava com as roupas na mala antiga, fiquei me perguntando qual raios era a forma que ela havia recebido a tal da confirmação divina. E a resposta veio num breve momento em que ela precisou ir ao banheiro, e vi sobre a cabeceira da cama a bíblia aberta numa página específica.

Minha avó costuma usar uma pequena lupa nas leituras, e vi que a lente estava sobre um trecho do segundo capítulo do livro de Jonas (não o meu primo, mas sim o cara da Bíblia que foi engolido pela baleia). Dizia assim: "Na minha angústia invoquei a Javé, e ele me atendeu. Do fundo do abismo pedi Tua ajuda, e ouviste a minha voz".

Acho que não precisa ser nenhum gênio para decifrar o mistério da aceitação repentina de minha velha avó cabeça dura afogada em fanatismos. Devo dizer que foi sorte, pois se ela tivesse aberto em qualquer outro trecho que falasse de tentações, ou de obras do Capiroto, ela certamente negaria vir conosco. Nessa hora eu meio que acreditei que havia ali, de fato, algum espírito iluminado (como diz a Jack, se referindo aos anjos) que guiou as mãos de minha avó para abrir na página correta.

O Monotono Diario de Isaac [BETA]Where stories live. Discover now