Bem Me Quer

By alinestechitti

327K 52.1K 54.6K

🏆 Vencedor do Wattys 2021 em Romance 🏆 Nico está em todas as lembranças da infñncia de Catarina, seja no pi... More

Avisos
Poeminha
CapĂ­tulo 1
CapĂ­tulo 2
CapĂ­tulo 3
CapĂ­tulo 4
CapĂ­tulo 5
CapĂ­tulo 6
CapĂ­tulo 7
CapĂ­tulo 8
CapĂ­tulo 9
CapĂ­tulo 10
CapĂ­tulo 11
CapĂ­tulo 12
CapĂ­tulo 13
CapĂ­tulo 14
CapĂ­tulo 15
CapĂ­tulo 16
CapĂ­tulo 17
CapĂ­tulo 18
CapĂ­tulo 19
CapĂ­tulo 20
CapĂ­tulo 21
CapĂ­tulo 22
CapĂ­tulo 23
CapĂ­tulo 24
CapĂ­tulo 25
CapĂ­tulo 26
CapĂ­tulo 27
CapĂ­tulo 28
CapĂ­tulo 29
CapĂ­tulo 30
CapĂ­tulo 31
CapĂ­tulo 32
CapĂ­tulo 33
CapĂ­tulo 34
CapĂ­tulo 35
CapĂ­tulo 36
CapĂ­tulo 37
CapĂ­tulo 38
CapĂ­tulo 39
CAPAS
CapĂ­tulo 40
CapĂ­tulo 41
CapĂ­tulo 42
CapĂ­tulo 43
CapĂ­tulo 44
CapĂ­tulo 45
CapĂ­tulo 46
CapĂ­tulo 47
CapĂ­tulo 48
CapĂ­tulo 49
CapĂ­tulo 50
CapĂ­tulo 51
CapĂ­tulo 53
CapĂ­tulo 54
CapĂ­tulo 55
CapĂ­tulo 56
CapĂ­tulo 57
CapĂ­tulo 58
CapĂ­tulo 59
CapĂ­tulo 60
CapĂ­tulo 61
CapĂ­tulo 62
CapĂ­tulo 63
CapĂ­tulo 64
CapĂ­tulo 65
CapĂ­tulo 66
CapĂ­tulo 67
CapĂ­tulo 68
CapĂ­tulo 69
CapĂ­tulo 70
CapĂ­tulo 71
CapĂ­tulo 72
CapĂ­tulo 73
CapĂ­tulo 74 (penĂșltimo capĂ­tulo)
CapĂ­tulo 75 (Ășltimo capĂ­tulo)
EpĂ­logo
Agradecimentos

CapĂ­tulo 52

3.2K 610 883
By alinestechitti

Minhas mãos estavam suadas. Passei todo o tempo as esfregando na calça, tentando ser o mais discreta possível ao fazer isso. Evitei olhar para ele, mas sua voz sempre soava, pois era parte vital daquele projeto. 

— O trabalho tá sendo muito elogiado, mas quero que cês tomem cuidado. — Nico alertava as mulheres — Sei que se preocupam com as crianças, mas cês tão aqui pra ajudar nas denúncias e pra dar um pouco de esperança. Não entrem além da conta nos territórios que não conhecem e que são da justiça. E qualquer sinal de perigo, me avisem. Se cês errar ou se acertar, não importa, a gente tá junto. Eu tô orgulhoso demais de cada uma aqui. — Seu sorriso irradiou, comprovando suas últimas palavras.

Para não olhar demais para ele, tentei me concentrar em Isabel, que coordenava o grupo e também era parte essencial de tudo aquilo. A cada vez que ouvia seu riso ou ouvia suas palavras, me dava uma intensa emoção e um nó se formava em minha garganta por prender o choro. Lembrava de toda a dor que ela havia passado e só desejava que continuasse sorrindo daquela forma por toda a vida.

— A gente num pode esquecer de se cuidar. — Bel avisava, apontando o dedo para elas — Quem aqui não tiver em dia com os tratamento de saúde, vai tomar um puxão se oreia, viu? A gente tem que tá bem pra fazer as coisa direito. E cês sabe que qualquer coisa que precisar, eu tô aqui. Nós sai pra tomar uma e solta o que tiver fazendo mal na mesa do bar. Ninguém aqui tá sozinha, não!

Os risos eram a melhor parte. Ver aquelas pessoas rindo, aquelas que eu sabia que tinham uma história tão triste, renovava cada fibra do meu ser. Aquele presente que minha prima havia me dado era um verdadeiro combo de esperança e de fé. Era muito mais fácil ter forças para lutar ao entender que não estava sozinha naquela guerra.

Nico, no entanto, me causava algo diferente. Tentei negar o tempo todo o quanto era delicioso ouvi-lo falar. Sua maturidade me emocionava, as orientações que dava para as mulheres, a forma como se dispunha a ouvir e informar, enfim, tudo me causava intensa admiração. Mais difícil ainda era negar o quanto seus detalhes mexiam comigo. Observava sua mandíbula e seu pomo de adão se moverem quando engolia, observava o sorriso largo e bonito que dava quando alguém dizia algo engraçado e também como ficava sério, com uma expressão raivosa, quando algo grave era explanado. No fim das contas, tudo nele mexia comigo como nunca.

"Para de olhar, Catarina, pelo amor de Deus!" Meu pensamento me repreendia. "Ele vai notar, se é que já não notou, sua pastasma!"

Tentei me segurar ao máximo, mas se havia algo difícil naquela hora era não olhar para ele. Era uma imagem muito forte e intensa a que me passava. Mil e uma borboletas voavam em meu estômago a cada vez que nossos olhos se encontravam, por isso mantive a atenção em meus pés o quanto pude.

"E se eu espiar só um cadinho?" Pensava, inquieta e curiosa "Será que ele tá noivo? Ou casou?"

Ergui um pouco o olhar e observei suas mãos. Estavam sem aliança.

"É, parece que não." Sorri, mas depois desfiz o sorriso e me irritei comigo mesma. "E que diferença faz, ô pamonha? Pode ver com o zói e lamber com a testa!"

Ao mesmo tempo que não conseguia deixar de observá-lo, sentia que ele nem se importava comigo. Nico estava muito tranquilo, ou pelo menos era o que aparentava. Não o vi olhar em minha direção em nenhum momento. Me ignorou completamente, o que me fez pensar que aquele reencontro afetava unicamente a mim. Era provável que houvesse superado tudo, o que me deixava destruída e ao mesmo tempo aliviada. Não queria lhe fazer nenhum mal com minha presença. 

"Assim que eu voltar pra minha vida normal, esse encontro não vai ter sido nada." Mentalizei essa ideia e consegui nela um pouco de alívio.

Tentei pensar que não era porque Nico me chamava atenção que significava alguma coisa. Ele estava atraente, para dizer o mínimo, e não era apenas pela aparência, mas também pelo porte, pela forma como falava e pelo grande ser humano que havia se tornado. Era normal que meus olhos ficassem presos nele. Qualquer mulher poderia ficar daquele jeito. Não queria dizer nada demais, certo?

Quando a reunião estava encerrando, as mulheres começaram a brincar com Nico:

— E nem teve bolo pra nós, né, menino?

— A pessoa faz aniversário e nem convida as tia aqui.

— É, ele tá metido!

— Quantos anos que cê fez esse mês?

— 22. — Respondeu ele, de bom humor. — Mas num fiz festa. A última vez que comemorei meu aniversário eu tinha 13.

Os olhos dele percorreram todas ao dizer isso. Quando parou em mim, alguma recordação compartilhamos. Lembrava bem daquele aniversário. Foi quando demos nosso primeiro beijo, ou o beijo de verdade.

Retornei àquela cena há quase uma década. Minhas memórias muito vivas:

"Fecha os olhos, Catarina." Ele havia pedido. Estávamos brincando de pique esconde. "Eu vou te beijar agora, tá bom?"

Nico tinha cheiro de bala de coco naquele dia. Havia sons de balões sendo estourados. Eu lembrava dos balões...

— Deixa te dar parabéns atrasado! — Isabel me despertou do meu devaneio indo até Nico e lhe dando um abraço. Isso fez com que todas as demais a seguissem.

A timidez que eu não tinha, aflorou naquele instante ao notar que teria de felicitá-lo também ou ficaria um clima horrível. Não tinha como sair dali sem parecer extremamente infantil, então tentei agir normalmente.

"Ah, que bosta, agora eu não lembro como abraça alguém." O nervosismo me confundia enquanto me aproximava. "Um braço vai pra cima e outro pra baixo? Falo parabéns ou feliz aniversário?"

A minha vontade era de me esconder em um buraco. Era impossível fugir, então fui até Nico, me misturando com as demais, entre seus risos e piadas. Quando foi minha vez, vi o rosto dele adquirir uma seriedade e frieza ainda maiores, o que me deixou ainda pior.

Quando o abracei, acabei me confundindo e falei:

— Feliz parabéns!

Ouvi seu riso estrangulado. Perdeu a pose de indiferença na mesma hora.

— Tá... Feliz obrigado! — Nico respondeu baixo, com a voz calorosa e grave enquanto eu o largava às pressas.

Me senti vulnerável e boba à sua frente, o que me lembrou a razão de ficar com raiva dele o tempo todo quando criança. Desde quando éramos pequenos ele me deixava desconcertada. O abraço havia saído naturalmente, mas a sensação de sua mão em minha cintura e de nossos rostos próximos, mesmo que por um único segundo, me trouxe muitas lembranças. Não entendia como tudo ainda parecia tão vivo. Como podia me sentir daquela forma depois de tanto tempo? Não fazia sentido.

As mulheres começaram a se despedir e fiquei ao lado de Bel, me sentindo deslocada.

— Vou ao banheiro. — Cochichei para ela, mas nem esperei pela resposta.

Corri para longe daquela quadra e fui tomar um pouco de água no bebedouro. Subi as escadas e vi que ainda havia pessoas por ali, conversando com professores e tomando café na cantina. Era incrível pensar em como tudo podia mudar nas escolas da minha cidadezinha.

Lembrava-me dos meus últimos dias de aula sem muita alegria. Havia sido exposta e humilhada, muito mais pelos adultos do que pelos outros adolescentes como eu. Aquela maldita foto havia circulado por muitas mãos e me causou intensos pesadelos por várias noites. Ainda me fazia mal recordar o fatídico dia, mas já não sentia vergonha. A culpa não era minha, mas demorei para entender. Só desejava que os professores e os pais mudassem, que soubessem compreender e proteger mais do que acusar. Desejava que fosse mesmo um tempo de mudança para os que viessem depois de mim.

Parei por ali e me debrucei sobre o muro, observando o jardim de margaridas. Fui respirando fundo e absorvendo pouco a pouco todas aquelas informações e sentimentos. Não esperava encontrar nada daquilo quando viesse à minha cidade, então não sabia nem sequer o que dizer, sobretudo porque, se fechasse os olhos, cairia no sono de tão cansada que estava da viagem. Havia sido tão repentino, tão maravilhoso, mas ao mesmo tempo o reencontro com Nico me deixava tão confusa.

A pergunta que não saía da minha cabeça era se alguém havia pedido a ele para me escrever aquele bilhete. Mais importante ainda era a razão pela qual havia feito aquilo se não éramos mais nada um do outro. Por que havia entrado em contato depois de tantos anos? Era inconveniente de sua parte e deveria me fazer ficar irritada, mas tudo que havia me dado era uma sementinha irracional de esperança.

"Semente de burrice, né?" Fui conversando comigo mesma enquanto voltava devagar descendo as escadas "Num dá pra voltar pro passado. O tempo passa e a vida das pessoas toma outros rumos. Tem que ter juízo, Catarina. Cê vai embora em três semanas. Três semanas, lembra?"

Não podia mais brincar. Não era mais uma adolescente. A vida adulta começava oficialmente para mim, ainda que os deveres que me haviam sido impostos há mais de uma década já me fizessem sentir muito velha. O fato é que precisava agir com maturidade com os meus sentimentos e também com os dele.

Caminhei de volta para a quadra. Àquela altura, pensei que todas as pessoas já haviam partido. Não queria ter sido rude ao sair daquela maneira, mas era tão estranha para mim toda aquela situação. Quando voltei a pisar na quadra, no entanto, vi que não havia mais ninguém ali.

— Bel? — Chamei, analisando um lado e outro.

Procurei, mas não a encontrei, então resolvi voltar pelo mesmo caminho e procurar pela escola. Quando me virei para sair da quadra, no entanto, estava distraída tentando ver minha prima e acabei pisando em um buraco na grama. Quase caí, mas, para minha sorte, alguém estava por perto e me amparou.

— Opa! Cuidado! Tudo bem?

Com uma cara preocupada, Nico me ajudou, me segurando pelos braços. Me apoiei em seus ombros e me afastei rápido, com o coração aos solavancos e o pé dolorido.

— Tá, só pisei de mal jeito. — Resmunguei, pulando de um pé só até me equilibrar de novo — Tava indo procurar a Bel.

— Acho que ela tá na diretoria. — Ele me analisou — Toma cuidado quando sair porque aqui é tudo roça.

— Uai, e o que tem isso?

— Cê desacostumou. Pode cair do salto, doutora.

— Mas eu tô de tênis. — Olhei para os meus próprios pés sem notar o deboche dele. — E que negócio é esse de "doutora"?

— Cê não caía atoa assim antes. Virou uma dondoca da cidade grande, foi? — Ele me olhou de cima a baixo e deu um sorriso torto, muito abusado — Ou tá se desequilibrando por outro motivo?

"Óia que fio da puta." Coloquei as mãos na cintura e me irritei.

— Foi sim! Foi o susto que tomei com a sua cara! — Me senti com 12 anos de novo.

— Não mudou nada, né? — Seu sorriso largo me gelou o estômago — Pelo menos no gênio.

— Não. E sua chatice também tá intacta, pelo visto. — Abri um sorriso irônico — Bom te ver de novo, Nico.

Ele riu quando saí sem dizer mais nada e caminhei até o lado de fora, interpretando muito mal o meu papel de pessoa inabalável. Esperava que não notasse que estava fugindo daquela cena ridícula. Não podia ficar muito tempo com ele ou todo meu pouco equilíbrio, se é que algum me restava, iria se desfazer como um castelo de areia. 

Atravessei os portões da escola, fui até a charrete e parei perto de Morena, decidida a esperar por Isabel ali. Fiquei por algum tempo conversando com a égua que piscava os grandes olhos castanhos de forma vagarosa, como se me compreendesse. Ela me lembrava a Estrela, a égua que tia Lenira tinha e que nos levava para todos os lados quando eu era criança.

— Cê tá bonita, sua danada. — Passei a mão nela, que era muito mansa — Tem que se valorizar pros cavalos, hein? Num me arruma qualquer pangaré. Tem uns por aí que num vale o capim que come.

Logo ouvi uma voz atrás de mim:

— Cê tá certa, mas tem égua que nunca aprende.

Me virei e era Nico outra vez. Aquilo me irritou mais ainda.

— Tá precisando de alguma coisa? 

— Tenho um assunto pra falar c'ocê, caso a doutora tenha tempo. É importante.

"Será que é sobre o bilhete?" Pensei, ansiosa, nem me importando com seu tom de voz hostil.

— Uai, pode falar.

— Vamo esperar a Bel na sorveteria do Adones enquanto a gente conversa. — Nico apontou para uma pequena sorveteria do outro lado da rua, toda pintada de rosa e com um grande arco-íris. — Te pago um sorvete de queijo por tomar seu tempo.

— Queijo? — Estranhei e ri.

— É! Tá fazendo sucesso. — Nico começou a atravessar a rua e eu o acompanhei — O Adones mesmo faz. Tem Romeu e Julieta também.

Instantes depois, estávamos nos sentando nas mesas brancas de lata do lado de fora com dois potinhos de sorvete. Não resisti e comecei a comer antes mesmo de me sentar. A curiosidade era grande para experimentar aquele novo sabor, que não se parecia com nada que eu já tinha provado. Acabei gostando muito do que vinha com goiabada.

— Nossa, esse trem é muito bão!

— Quem não gosta do meu sorvete de queijo perde o certificado de mineiro! — O dono da sorveteria, com um bigodão e avental colorido, veio até nossa mesa e colocou os guardanapos que faltavam. 

Nico e eu rimos e conversamos alguns minutos com ele, mas assim que o homem saiu, foi difícil para conversarmos um com o outro e até mesmo manter o contato visual.

— Bom, tenho que falar que é incrível o trabalho que cê tá fazendo, Nico. — Tentei puxar assunto — Num imaginava te encontrar assim.

— Pensava que ia me encontrar no meio do mato, né? — Nico tomou o sorvete olhando para mim com clara hostilidade. — Entre bosta de boi e mosca.

Não respondi de imediato, pois ele estava certo.

— Ocê sempre gostou da roça... Eu só pensei...

— Não tem que explicar. Eu adoro a roça mesmo e ainda tô por lá sim. — Sorriu com orgulho, levantando as mãos grossas de calos — Agradeço também pelo elogio, mas não faço nada sozinho. Sou só uma roda dessa carroça. Tem muitas outras. Todo mundo é importante.

— Eu sei. Eu vi. Tô muito orgulhosa da Bel e tô feliz por aquelas moça tudo. Eu tô numa luta parecida e não sabe como é pra mim ver que a cidade onde eu cresci pode mudar. Outras criança pode ter uma infância diferente da minha, da Bel, da sua...

A minha sinceridade fez com que ele baixasse um pouco as defesas e seu rosto suavizou.

— Tenho essa esperança também, Catarina.

— As meninas... todas parecem maravilhosas. Ainda não acredito que cê foi atrás delas.

Nico não esboçou reação, mas demorou a responder.

— Cê não tava mais aqui pra isso. 

O silêncio entre nós pesou enquanto olhávamos nos olhos um do outro. O suor em minhas mãos voltou.

— O que cê disse que quer conversar comigo? — Perguntei, baixando o olhar para o sorvete outra vez.

— Eu quero te pedir pra ir visitar meu pai e minha mãe quando puder.

— Ah... — Me decepcionei por não ser sobre o bilhete.

— Eu sei que toda vez que vem pra cá, cê fica na casa do seu pai e não sai pra lado nenhum. Sei que fez isso pra me evitar esses anos todos. Então eu quero te prometer que cê não vai me encontrar lá na casa dos meus pais se for lá esse mês. Eu não quero te atrapalhar em nada na sua vida, Catarina. Se ainda te incomodo, eu vou ficar longe. Só que o pai e a mãe sentem saudade demais d'ocê. É por eles que eu tô aqui pedindo. Por eles, e só por eles, que eu tô aqui tomando seu tempo.

Fiquei muito envergonhada com aquele pedido.

— É, o meu pai me falou a mesma coisa. Eu sei que tô errada. Vou lá ver eles sim, eu prometo. E acho, de verdade, que a gente num precisa mais ficar fugindo um do outro, Nico.

— Também não vejo sentido nisso. Fomos amigos pela vida toda e somos adultos agora. Acho que dá pra lidar um com outro com respeito.

Fiz que sim e sorri.

— Claro que dá... Cê só tem que parar de ser chato.

Ele riu e voltou para o pote de sorvete.

— Meu deboche e as suas ferradura num muda nunca, Catarina.

Ficamos em silêncio outra vez, tomando sorvete e observando a rua. Outras pessoas vieram e ocuparam outras mesas por ali. Senti, por um momento, que Nico me observava, mas me convenci de que era apenas minha imaginação.

— Olha, tem uma coisa me incomodando. — Confessei, quebrando a quietude — E eu tenho que saber ou vou ficar doida. Já que cê me chamou aqui, preciso perguntar.

— O que é?

— Cê me escreveu um bilhete. — Minha voz soou como acusação — Ele tava no bloco de notas do meu presente de formatura. O Jaime, o pai e a Bel falaram que num foram atrás d'ocê. Eles não pediram pr'ocê escrever.

Pela sua inquietude, senti que Nico não queria falar daquilo.

— Não, não pediram.

— Quem foi que te procurou? E pra quê cê me escreveu? — Não queria soar brava, mas aquilo havia me incomodado muito.

— É uma história longa.

— Num tem problema. Espero até cê escrever um livro se precisar.

— E pra quê cê quer tanto saber? — Nico sorriu e ergueu as sobrancelhas — Acha que eu escrevi aquilo por estar interessado n'ocê ainda? 

— Num acho nada. —  Meu rosto ardeu. No fundo, era isso mesmo que eu pensava.

— Então não entendo, Catarina.

— Para de se fazer de bobo. Tá fugindo de me contar por quê?

Ele olhou para o lado e respirou fundo.

— Tá. Já que pr'ocê é tão importante, eu vou contar. Eu vi esse bloco de notas quando sua tia Lenira me chamou pra ir ver ela. Foi isso.

— Minha tia? — Aquilo foi uma surpresa — Achei que cês não se falassem mais.

— A gente não se falava, mas ela me chamou um dia. Disse que queria falar comigo. Foi depois que a Fernandinha, menina dela, assistiu uma das palestras na escola e chegou em casa contando a história dos crimes do Geraldo, sem saber que era o pai dela.

Senti uma angústia imediata ao ouvir aquilo. Havia esquecido que havia uma criança naquele mundo que sofreria muito se descobrisse que seu pai era um criminoso tão asqueroso. Fernanda era uma menina tão doce e alegre, não merecia passar por aquilo.

— E minha tia te chamou pra quê, Nico? Pra brigar?

— Pelo contrário, me chamou para pedir perdão, acredita? Quando eu cheguei, ela tava acabada de chorar. Não disse que entendia o que o marido era, mas pediu perdão. Depois implorou pra eu nunca deixar a Fernanda saber que o pedófilo que a gente falava era o pai dela.

— Será que a tia Lenira agora acredita no que a gente falava?

— Ela sempre acreditou, Catarina. Só não admitia.

Baixei a cabeça para o sorvete e fiquei remexendo com a colher de plástico. Era muita coisa para um só dia.

— E a parte do bilhete, o que tem a ver? Ocê escreveu escondido? O que cê queria com aquilo?

A expressão de desdém voltou ao seu rosto e ele soltou um riso zombeteiro.

— Desculpa baixar sua bola, doutora, mas foi só um bilhete de uma linha, não uma carta de amor.

— Pena que num trouxe comigo pra enfiar ele na sua bunda, né? — Levei uma colher de sorvete à boca, fingindo que não ficava afetada por suas palavras.

Nico segurou para não rir. Parecia estar me testando.

— Vai falar ou vai ficar me olhando, seu guarda? — Foi minha vez de mexer com ele. — Cê ficou bem de farda. Tá a cara do Doofy de "Todo mundo em pânico."

— Ah, é?

— É sim. Agora acaba de me explicar essa história.

— Tá. — Ele perdeu a graça de continuar zombando — Acontece que seu pai deixou o bloco de notas na casa da sua avó pra cada um dos seus tios te escrever uma mensagem. Quando eu tava saindo, a sua tia me pediu se eu não podia levar pra sua mãe, pra pedir pra ela te escrever uma mensagem também. A Lenira e a Leda não se falam há anos, como cê já sabe.

— Sei... Mas, não entendo. Não tem mensagem da minha mãe. Cê num levou?

— Levei. — Ele engoliu com força e tamborilou com os dedos na mesa. Não conseguiu olhar para mim. — Só que não deu certo, Catarina.

— Por que não?

— Acontece que eu fui na casa da sua mãe e perguntei se ela queria escrever. Ela pegou um lápis e rabiscou alguma coisa fazendo uma cara bem feia. Eu fiquei desconfiado e, na hora que saí da casa dela, resolvi abrir e ler. Foi um susto. Era uma frase tão... tão...

— Cruel? Horrível? — Reprimi a tristeza e sorri — Pode falar, ela num me surpreende mais.

— Era uma frase pesada. — Lamentou ele — E não dava pra arrancar a folha porque tinha mensagem da sua avó atrás. Só que eu num queria que cê lesse aquilo. Eu só...

Minhas armas caíram no chão ali mesmo. Não consegui responder. Estava começando a entender tudo.

— Eu entrei no carro e apaguei a mensagem da sua mãe, que graças a Deus tava de lápis, e escrevi outra bem por cima da letra dela, de modo que não desse pra notar. — Confessou Nico, visivelmente sem graça — Depois levei de volta pra sua tia. Não pensei na hora. Só não queria que cê ficasse mal. Era um dia tão importante na sua vida... Sei que talvez eu possa ter te deixado mal também. Me desculpa, Catarina. Não era o que eu queria.

— Não, quer dizer... — Balancei a cabeça e tentei manter minha postura firme. Era tão difícil pensar no que responder naquela hora. — Eu fiquei surpresa, mas não destruída como ficaria se lesse alguma coisa da minha mãe na noite da minha formatura.

Não perguntei o que ela havia escrito. Não precisava de mais uma frase dolorosa dela em minha memória. Bastavam todas as que já tinha.

— Obrigada, Nico. De verdade.

Ele me deu o primeiro sorriso verdadeiro do dia.

— Não tem que agradecer.

Quando se levantou, pagou a conta e partiu, deixou um enorme conforto dentro de mim. Ele sempre fazia isso, transformava o que tinha ao seu redor, deixando um pouco de sua bondade em cada coisa. Mais do que isso, de um jeito ou de outro, Nico me provava que sempre cuidava de mim.

Continue Reading

You'll Also Like

1K 140 11
Giorgio Marcino, o homem mais poderoso do mundo e lĂ­der da maior mĂĄfia italiana, encontra seu destino cruzado com Scarlett Ross, uma letal e implacĂĄv...
66.6K 4.9K 30
Serena leva uma vida tranquila na cidade pacata e chuvosa de Holsted, onde reside desde que começou a faculdade. Ela só não sabia que naquele lugar...
2.5K 145 28
raquel tem 14 anos e vive com seus pais manuel e isabel e com seus irmãos alexandre(mais velho) e beatriz(mais nova) sendo ela a IRMÃ DO MEIO.
116K 10.9K 29
ELA era uma garota comum que vivia no interior do Brasil; ELE era o vocalista de uma famosa banda que vivia em Los Angeles; ELA implorava aos pais pa...