DIA DOS CRIMES
21/02/17 – terça-feira, 19h43
Não sabia quantas vezes tinha ído de lá para cá. Norberto sobressaltou-se ao ouvir o interfone. Voou ao pequeno aparelho (grudado eternamente naquele canto da parede da sala. Atropelando a saudação do porteiro, disse, quase gritando:
— Pode mandar subir!
Dois minutos depois Rodrigo bateu na porta pesada de madeira maciça e, Norberto, sem perder tempo, abriu-a com certa urgência.
Dispensando o manual de etiqueta comportamental, foi logo dizendo:
— É hora de pagar sua dívida comigo, de uma vez por todas. — Rodrigo gaguejou alguma resposta, e antes que conseguisse completar uma frase inteligível, Norberto o cortou e adiantou as coisas: — Estará livre de mim, para sempre, se fizer o que eu estou pedindo.
— Mas você está me pedin...
— Sim! Matar Nicolas! É tudo que eu preciso que você faça. Eu saio da sua cola. Poderá trabalhar em paz, e se quiser, posso até arranjar outro serviço para você, mas preciso que o faça. E hoje, agora.
— De nada adianta isso que está prometendo se eu for...
— Então faça bem feito!
Ele notou o choque de Rodrigo. Tudo bem, eu compreendo, consentiu Norberto, mas eu não vou sujar minhas mãos!
Sem dar trela às hesitações, gagueiras e questionamentos desencorajadores, Norberto foi jogando seu plano em cima do homem assustado. Rodrigo era o jogador inexperiente de tênis. Norberto era a máquina automática que lançava com força as bolinhas "saltitantes" verde-amareladas.
— Está vendo isso aqui? — perguntou Norberto, segurando uma chave. Depois da retórica, ele prosseguiu: — É a chave do apartamento de Nicolas. Cópia.
Rodrigo arregalou os olhos, como se somente naquele momento tivesse caído sua ficha sobre estar sendo incumbido de matar Nicolas.
— É simples! Vá até lá e faça o que eu te mandei.
O rapaz piscou repetidamente, como se os olhos pigarreassem.
— N-não — balbuciou Rodrigo. — Eu...
— Não o quê, cara? Está dizendo que não vai fazer?
— E-esto-ou — afirmou Rodrigo, recuando um passo.
— Você está maluco? — Norberto cuspiu as palavras, salpicando de saliva o rosto do outro. — Você TEM que fazer isso, não tem escolha para você, oh, queridão! Não conseguiu entender ainda?
Rodrigo manteve-se estático. Todo seu corpo estava dizendo "Não", porém, Norberto o intimidava tanto, que de sua boca não saia nada com autoridade.
— É s-sério? — Foi o que conseguiu dizer.
Norberto se afastou a passos largos, deu meia volta e fitou Rodrigo.
— É muito sério, caralho! — disse ele, fulminando-o com o olhar.
Após inspirar intensamente, Rodrigo foi capaz de formar um frase completa e a vomitou:
— Você está louco, Norberto. A gente vai se ferrar legal...
A frase morreu no ar.
A expressão de indignação de Norberto prenunciou a explosão:
— Chega! Você não é retardado, Rodrigo! Já agimos juntos uma vez, e deu certo. Se lembra? Então não se faça de idiota, pois você entendeu toda a situação! Está querendo ganhar tempo me enrolando?
Mais silêncio. A terrível-máquina-cuspidora-de-bolinhas estava à toda, e agora cuspia bolinhas embebidas em querosene. Rajadas flamejantes perseguiam Rodrigo.
— Você vai até o apartamento de Nicolas e vai matá-lo. Não tem acordo. Ele vai me foder se ficar vivo. Não há outro jeito de resolver.
— Nem manipular?
— Pelo jeito não! Estou em desvantagem! E não é da sua conta... Enfim, você tem uma dívida enorme comigo, seu bosta. E só vai pagar se for assim, desse jeito!
O jogador inexperiente tomou fôlego e decidiu rebater uma bola fumegante.
— Se me obrigar a fazer isso... Eu conto para May sobre seu caso com Nicolas.
Rodrigo cerrou os dentes com força. Norberto se manteve calado, elevando a tensão, olhando para ele, fixo. E para sua surpresa, gargalhou. Norberto gargalhou com vontade, intensamente. Ficou vermelho de tanto rir. Engasgou-se com a própria saliva e até babou.
Já recomposto do efeito da piada hilariante e vencedora do Oscar de Melhor Piada do Ano, Norberto declarou:
— Eu já estou encomendando a morte de Nicolas para que ele fique de boca calada; agora vem você ameaçando que vai contar a May? Quer que eu mesmo cale você agora mesmo, otário? — Uma mistura de riso e desespero lhe tomava a feição, lembrando uma máscara demoníaca. — Nem ouse me ameaçar, seu desgraçado! Você não está podendo nada! Quem tem muito a perder aqui é você! — Rodrigo engoliu em seco. Agora, o jogador inexperiente estava desprovido de raquete e começou a ser bombardeado pela máquina rebelde e incansável. O monólogo de Norberto continuou: — Você tem noção de que se algo der errado nessa merda toda, quem vai tomar no cú é você, não tem? O que eu posso vir a perder é uma esposa. E você, ah, meu caro, você perde a liberdade para sempre. — Pausa dramática para que Rodrigo pudesse absorver as palavras. Depois concluiu: — Então, se não fizer tudo conforme eu estou mandando, vou abrir a boca e você será preso. — Chacoalhou a chave do mesmo modo que chacoalharia um sininho. — Irei denunciar e vê-lo apodrecer na cadeia. Deu para entender mais um pouco da sua situação, Rodrigo? Portanto, seu traidor de merda, deixe que eu resolvo meus problemas sexuais com minha esposa, e vá cuidar de pagar sua dívida! Estamos entendidos?
Norberto estendeu a mão a ele, empunhando a chave como se fosse uma adaga.
— Anda logo! Pegue — ordenou Norberto.
— Você também está envolvido!
— E você tem provas disso? Heim?
Rodrigo hesitou. Tinha os olhos avermelhados. Norberto lhe causava forte pressão psicológica, e Norberto sabia do seu efeito catastrófico em cima dele, que o deixava desarmado e transformado numa presa fácil de manipular.
— Pois eu pensei em tudo antes, e eu tenho várias provas contra você — mentiu, mas sua ira era tão grande naquele momento, que foi bastante convincente, pelo menos para Rodrigo.
— Droga! Tudo isso porque não teve coragem de sair do armário!
— Não interessa...
— Deve ter sido por isso que saiu da polícia, não? Não aguentava ver os caras na ducha, ou se exercitando, sem que ficasse de pau duro...
— Cala essa sua maldita boca — disse Norberto entredentes. — Pega logo isso!
Tremendo, Rodrigo pinçou a chave com as pontas dos dedos, como se tomasse todo o cuidado para não tocar na pele "radioativa" de Norberto. E para enervá-lo ainda mais, Norberto segurou a chave por alguns instantes. Os dois pareciam travar um mini-cabo-de-guerra com o pequeno pedaço de metal. Um fitou o outro. Antes de soltar, Norberto ainda deu a última ordem:
— Depois que terminar, pegue o celular daquele merdinha e traga a mim. Preciso apagar as mensagens que eu mandei. E nem sonhe em usar isso contra mim. Jamais tente dar uma de espertinho comigo, pois já sabe no que vai dar, não é? — Rodrigo fez que sim com a cabeça, tão submisso que chegava a dar raiva. — Não seja muito burro a esse ponto, e é o meu último aviso. Repito: jamais tente ser mais inteligente que eu, pois quem vai se foder, de verdade, é você... Fui claro?
Rodrigo tomou a chave para si e virou as costas. Foi de encontro à porta. Seus olhos estavam lacrimejando demais. "Droga, só falta esse viado me ver chorando feito um... feito um... feito um viado!", pensou ele. Quando pôs a mão na maçaneta, foi interrompido pela voz do patrão, lhe dizendo:
— Me encontre mais tarde lá na editora. Vou te dar um tempo para pensar, para elaborar o... serviço.
Muito embora as tarefas de um agente literário não tivesse qualquer relação com assassinato encomendado, ele sabia que Rodrigo iria até lá e cumpriria o que ele mandava. Rodrigo jamais vai desperdiçar a chance de se ver livre de mim, pensou ele, cheio de si, como se Rodrigo fosse ser absolvido do pior dos piores pecados. — Vou ficar aqui por um tempo. Vai que de repente May decida voltar para casa ainda hoje, ou até mesmo daqui a pouco, não é mesmo? Ao menos estarei aqui esperando ela. Vou a acolher como um bom marido faria. Saberei como ajeitar as coisas, acredito nisso. Sei que ela vai voltar e ficar aqui comigo. E o melhor, a terei como meu álibi. Imagine só: Nicolas é assassinado enquanto minha linda esposa está aqui comigo, não parece ótimo?
Rodrigo não disse nada.
— Em todo o caso, depois aparecerei na editora para nós dois conversarmos, entendeu? Me encontre lá.
Norberto viu Rodrigo partir, furioso. A porta foi batida com violência.
No recinto, restou apenas o silêncio e um Norberto envelhecido uns cinco anos de preocupação num único dia.
Sua mente estava repleta de "Será?" Sua cabeça estava a mil, parecia que ia fundir.
Refletiu por alguns segundos, mordeu os nós dos dedos da mão direita e sussurrou:
— Ele vai fazer... Ele tem que fazer... Eu sei que ele vai cumprir... E não poderá falhar...
Remorso?
Sem tempo nem cabeça para isso. Resolveria esses assuntos sentimentais outra hora. O foco agora, era torcer para que o assassinato desse certo. Precisava calar seu amante, Nicolas, e dessa vez, para sempre.