19 DIAS ANTES DOS CRIMES
02/02/17 - quinta-feira, 09h27
— Seu original já foi cadastrado no site, certo?
— Sim. Duas vezes.
Os olhos dela foram parar no tampo da mesa. Seus lábios franziram.
— Nossa resposta foi negativa?
— Sim, foi. Insisto porque sempre acreditei neste livro, entende? É o motivo da minha vinda.
May deslizou a mão pelos cabelos. Mais por mania, pois o novo corte — curto, estilo capacete (digno de madames e mulheres determinadas) —, despertara a ligeira e repetitiva vontade de "checar".
— Entendo. Bom, no procedimento de avaliação da Editora Hora de Ler, pedimos ao autor a sinopse e depois o resumo curto. Tudo através do nosso site. A partir daí, nossa equipe lê, avalia...
— Conheço todos os procedimentos, May — apressou-se em dizer. — Sei até quem faz a leitura da sinopse e do resumo no site: Rodrigo, o agente literário. Já liguei para cá após a primeira recusa. Convenci-me de tentar outra vez. Infelizmente, fui rejeitado.
— Desculpa, mas o que não ficou claro?
— O Rodrigo leu, mas não respondeu — continuou Micael. — E sei que, se dentro de três meses vocês não derem retorno, é porque o original foi recusado.
— É, funciona desse jeito.
— Posso parecer extremamente teimoso. Esta é a terceira tentativa. Acontece que eu prometi tomar coragem de vir, pessoalmente, e lhe pedir mais uma chance.
Os olhos dela permaneceram duros, a resposta continuava sendo não.
— Aprecio bastante seu interesse, realmente vejo engajamento. Entendo perfeitamente sua teimosia — brincou ela, quebrando o efeito devastador da devolutiva —, entretanto, se o original passou pelas mãos do Rodrigo e você recebeu um retorno negativo, é porque, talvez, sua obra não se encaixe em nosso catálogo.
— Opa! Acompanho há tempos as publicações da Hora de Ler. Meu livro é um romance policial, pode ser encaixado no selo Hora do Crime.
— Bom, não posso discordar: Você nos conhece bem. Fico agradecida, porém, só vêm para mim originais da "segunda fase", entende? O Rodrigo lê, avalia, e caso haja interesse, eu pego. No entanto, isso não é garantia de publicação. Seu original deve ter sido recusado por algum motivo. — Ela cravou a estaca no peito dele de vez. — Eu confio no trabalho do agente literário e, como deve saber também, nós não damos feedback ou fazemos qualquer tipo de leitura crítica nos casos dos originais recusados.
— Eu sei — disse ele — Mas preciso que a senhora leia. Sou seu fã desde o primeiro livro, é sério. São muito bons e a tenho como inspiração.
— Obrigada. — Sacou o estilo dele: autor-puxa-saco, daqueles que no final, acabavam xingando a editora nas redes sociais depois da negativa.
— Chegou a ler minha ideia? Ao menos a sinopse e o resumo?
— Não — respondeu ela, mirando o relógio digital na tela do computador. Já teria lido umas oito laudas do livro ao lado dela, o qual merecia sua atenção — por quê? — porque era bom. O que fazer para se livrar? Aceitar o envelope com a promessa de dar uma "olhada" e, quando ele fosse embora, fazer uso do triturador de papéis? Afinal, o aviso de "Não devolvemos quaisquer materiais enviado a nós" era sério.
A política no site da Editora Hora de Ler era simples e clara: "Originais NÃO solicitados, sejam eles impressos, gravados em CD's, Pen drives e outros dispositivos de mídia digital, bem como os enviados por e-mail, serão descartados, sem nenhuma leitura e avaliação. Favor direcionar-se à aba: 'Quero Publicar', e preencher os campos voltados aos dados pessoais do autor, bem como os da obra. IMPORTANTE: Não esquecer de criar uma sinopse contendo até 500 palavras, e um resumo da história completa, utilizando no máximo 5.000 palavras. Envie seu original completo SOMENTE se a Editora Hora de Ler aprovar e entrar em contato dentro do prazo de 3 meses após o cadastro da obra no site. O contato pode acontecer através de e-mail ou por telefone". Havia também algumas recomendações à pessoa interessada sobre analisar com atenção o catálogo da editora antes de submeter qualquer material.
Entretanto, impassível às recusas, Micael continuava empurrando O Cúmplice e o Assassino para cima dela.
— Seria interessante que ler — insistiu o rapaz.
Ela bufou. Logo após ouviu batidinhas na porta.
— Entre, Laura — autorizou May, passando a mão pelo cabelo mais uma vez.
— Licença — disse a moça entrando e desejando um rápido "Bom dia" ao intruso de plantão. — Eu e o Cris já estamos finalizando o Plano de Marketing do Mortes Convergentes. Precisamos do seu parecer sobre a arte final da capa que ele fez, e dos contratos que estou fechando com as livrarias de Sorocaba e da região. As vitrines estão cada dia mais disputadas e caras! E, ah, Rodrigo ligou, está fechando a noite de autógrafos com o autor, volta depois do almoço...
— Tudo bem. Estou terminando aqui. Já chamo vocês. E, ah, Laura, o Nicolas está ajudando a descarregar os materiais lá atrás?
— Sim.
— Ótimo. Obrigada.
Laura saiu da sala quase rebolando. Tinha pele negra, usava cabelos blackpower, era dona de curvas bem delimitadas; a negritude lhe conferia uma sensualidade natural.
Micael sequer virou o pescoço.
— Bom, retomando... Agradeço o enorme interesse. Eu apenas avalio quando Rodrigo já dá aquela filtrada, sabe? Já tentou outras editoras de médio porte? Sorocaba têm algumas prestadoras de serviço que podem publicar seu livro em parceria. Pesquise. Infelizmente temos muito trabalho. Inclusive, comunicaremos no site o encerramento de recebimento de originais, já temos muitos projetos andando, necessitamos pausar o cadastramento de obras...
— Você NÃO VAI recusar meu livro! ENTENDEU?!
O rosto quase anêmico dela — graças à dieta agressiva — ruborizou; a boca parou entreaberta; os pares de olhos confrontaram-se. Nos dele havia o aspecto mortal, as pupilas negras exibiam fúria, hostilidade. Rugas surgiram na testa dela.
— Como é que é? Serei obrigada a aceitar seu material, mesmo depois da explicação detalhada e educada que lhe dei? Vai me desculpando, mas não vou burlar nenhum método de avaliação da minha editora só por sua causa, rapaz! — Ela puxou o gancho do telefone.
— VAI, SIM! E não faça besteira! — avisou ele, fitando-a como um psicopata. — Pareceu, mas não é uma ameaça. Apenas pegue este envelope e leia meu original. Vai se arrepender se rejeitá-lo.
— Quanta ousadia!
— Eu já disse: não precisa chamar ninguém. Apenas abra a porra do envelope. Sabe por quê? Aqui dentro — disse, segurando o pacote nas mãos — não tem só O Cúmplice e o Assassino, tem outro mistério para ser resolvido. Aliás, este, foi elaborado especialmente para você, May. Tente solucionar.
— O que você quer dizer, moleque? Recuso joguinhos ameaçadores. Se me conhece tão bem como demonstra conhecer, sabe que eu já passei por momentos aterrorizantes há pouco tempo. Agora quer que eu tolere sua insensatez?
— Eu sei. Compreendo, mas é sério. Não vim te ameaçar. Nossa conversa apenas desandou. Na verdade, exijo mais uma chance. Isso vai ajudar você também.
— Nem o conheço, garoto! Explique essa história de "me ajudar"!
— Vou embora na boa se prometer ler.
— Você deve ter razões muito fortes, e obscuras, para me provocar desse jeito. Vai, anda, diz logo a razão disso! — inquiriu May com fogo nas ventas.
— É uma troca. É do SEU interesse, portanto, não entregue ao Rodrigo — precaveu-a.
— Do meu interesse?! Nada disso aqui me interessa!
— Interessa, sim! Tem certeza de que conhece verdadeiramente bem seus funcionários?
— Caia fora, agora, senão vai ter que sair à força.
— Desnecessário. Já estou de saída.
Micael esboçou meio-sorriso, empurrou o envelope que deslizou em cima da mesa na direção dela, e repetiu o aviso:
— Apenas você pode ter acesso a isso, mais ninguém. Vai se arrepender se o fizer. Depois vai agradecer pela ajuda que estou dando quando descobrir que está sendo duplamente enganada.
Micael ajustou o colete, desejou um cínico "Bom dia" e deixou a sala dela com passos firmes.
A frase dele grudou nas paredes de vidro como um encosto: "Duplamente enganada."
— O que diabos eles quis dizer com isso?