Bem Me Quer

By alinestechitti

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🏆 Vencedor do Wattys 2021 em Romance 🏆 Nico está em todas as lembranças da infñncia de Catarina, seja no pi... More

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CapĂ­tulo 74 (penĂșltimo capĂ­tulo)
CapĂ­tulo 75 (Ășltimo capĂ­tulo)
EpĂ­logo
Agradecimentos

CapĂ­tulo 43

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By alinestechitti

Fiquei na casa de dona Carmem por alguns dias me preparando para a viagem. Como meu trabalho já incluía dormir lá alguns dias por semana, isso não foi um problema. Havia um quartinho lá que havia sido preparado para mim há algum tempo. Foi nele que passei aqueles últimos dias.

— Ah, minha menina. — A idosa segurou meu rosto quando entrei e enxugou minhas lágrimas — Pronto, pronto, chega de salgar a vida.

— Se for incomodar, eu volto pra casa, dona Carmem.

— Claro que não vou te deixar voltar pra casa. — Ela sorriu e me levou ao sofá — Eu também já passei por isso, menina. Já precisei sair de casa. Dá medo mesmo, mas é necessário. Vai dar tudo certo.

Ela me acolheu com um carinho tão grande que era até estranho. Com a carência que carregava, no entanto, não demorou muito para ver nela uma figura materna, aceitando com anseio os abraços e beijos que me oferecia.

Naquele período, meu pai veio me visitar e me trouxe algumas roupas e documentos que eu havia deixado para trás. Ele também conversava com Gabi, com os pais dela e com todos que podia, com medo do que poderia me acontecer na cidade grande. Mesmo com tudo certo, ele ainda tinha medo. Não posso dizer que me sentia diferente.

— O senhor vai sair de casa mesmo, pai? — Perguntei certo dia, quando ele parou na porta para me entregar uma sacola com os poucos livros que eu tinha.

— Amanhã eu saio. Já arrumei um rancho na roça. Num é grande coisa, mas vou trabaiá na lavoura de café, plantar e colher. É um lugarzin sossegado. O seu irmão vai poder brincar bastante e vai ser meu companheirin tamém.

— E eu viajo no sábado. — Pensei alto — Então nem vou mais ver o senhor.

— Por isso que vim. Tinha que te ver antes de ir pra roça.

— E a mãe? Ela vai querer o Jaime? — Era tudo que me preocupava.

— Eu vou pagar pensão pra ela, mesmo com o menino morando comigo. Tendo dinheiro, ela não vai querer ele. Sua mãe nunca quis ser mãe.

Baixei a cabeça, brincando com a alça da sacola de plástico.

— Eu desconfiava disso já.

— Cê veio porque eu vivia pedindo pra ela, Catarina. — Confessou meu pai — Eu sempre quis ter fio, mas ela não queria. Quando sua madrinha engravidou foi que sua mãe se empolgou, mas num se deu bem com isso não. Nunca gostou de cuidar de criança e ainda ficou meio doida quando cê nasceu. Nem nome sabia qual botar. Com o Jaime cê sabe bem como foi, ela tamém num queria. Duvido muito que queira cuidar dele sozinha.

— E como tá o Mosquitinho? 

Meu pai deu um sorriso forçado.

— Num preocupa, ele vai ficar bão. Lá no rancho tem cavalo, tem cabritinho, tem cachorro. Ele vai brincar muito.

Meu pai nunca dizia como meu irmão realmente estava. Era como se soubesse que aquilo me afetava muito, então desconversava sempre. Minha vontade era de levá-lo embora comigo.

— Ocê vai se despedir da sua mãe, Catarina?

— Num sei. Ela fala de mim?

— Fala que cê tá abandonando ela, que depois vai voltar correndo e chorando pra casa, essas coisa que cê já imagina. Sei que ela se preocupa c'ocê, mas do jeito dela.

— Eu não acho não, pai.

— Pode ser. — Ele coçou a cabeça e olhou para o lado, como era o seu hábito — Ocê que sabe. É mió eu ir embora. Cê tá bem, né? Precisa de mim pra mais alguma coisa?

— Não, eu tô bem. — Menti — Pode ir, pai.

Ele parou por um momento e então me puxou para um abraço. Foi inesperado, mas correspondi com um alívio enorme. Era tão bom sentir que pelo menos tinha ele comigo.

— Vai com Deus, fia. — Ele deu uma batidinha em meu ombro, com os olhos marejados — Que Deus e Nossa Senhora de Aparecida te guarde. Num esquece o caminho de volta pra casa. Não importa o que acontecer, cê sempre pode voltar pro seu véio aqui. Num esquece disso.

Eu sorri, segurando o choro.

— Tá bom, pai. Fica com Deus tamém.

Ele engoliu as lágrimas e riu sozinho.

— Cê sabe que me contaram uma piada ontem.

Franzi a testa e ri.

— Mas o senhor disse que num vai mais no bar.

— Ah, o pessoal do AA tamém conta umas bubiça. — Ele riu — Disse que um homem tava indo sentar do lado de uma véia no ônibus, mas não notou que tinha um embrulho no banco. Antes que ele sentasse ela gritou "Cuidado com os ovos!". O homem abriu o embrulho e falou "Uai, mas num são ovo que tem aqui." E a véia respondeu "Não, são pregos!"

Rimos juntos por poucos segundos, até nosso sorriso se desfazer e só sobrar o silêncio e a melancolia da despedida.

— Ah! Truxe mais um negócio pr'ocê. — Ele se lembrou de súbito e tirou uma caixinha do bolso — Comprei um baralho procê jogar, fia.

Peguei a caixinha e sorri. Aquele havia sido o meu melhor brinquedo a vida toda.

— Obrigada, pai. Num sei se alguém de lá vai jogar comigo.

— Ah, logo cê tá fazendo muito amizade com os fluminense.

— Tomara...

Ele me olhou por um momento e respirou fundo, com pesar.

— Eu já vou então, fia. Já vou... Tenho que comprar leite pro seu irmão. Ele gosta, tadin.

Estendi a mão para ele.

— Bença, pai?

Ele pegou minha mão e segurou firme.

— Deus te abençoa. — Me deu um sorriso bonito, mas que se desmanchou enquanto me dava as costas.

Ele me deixou na porta e o observei partir. Aquele homem magricela, alto e com a aparência de um louva-a-deus se distanciava segundo a segundo. Caminhava curvado de tão alto, com um boné, que era brinde de um açougue, no cocuruto. Havia muitas piadas sujas na alma irreverente e uma vontade de mudar que me enchia de esperança.

— Cê vai conseguir, pai. — Apostei mentalmente quando ele desapareceu na curva da rua — Sei que o senhor vai.

♡♡♡


Não tive contato com ninguém e não retornei para a escola. Gabi ficou de pegar meu histórico escolar e de ver se estava tudo certo para que eu pudesse viajar no final de novembro e me transferir para uma escola no Rio. Foi tudo tão rápido que nem tive tempo de me despedir de todas as pessoas, mas também não fazia questão. Havia tanta fofoca e tanta maldade circulando que preferia ficar sempre em casa com dona Carmem.

As únicas pessoas de quem me despedi foram Lilica, Isabel e algumas meninas com quem estudava. Cheguei a passar perto do bairro em que Nico morava para ir à casa de uma delas, mas passei correndo para evitar qualquer contato.

"Espero que seja feliz por lá e não volte mais." Essa frase dele se repetia em minha mente todos os dias.

— Você dois se feriram porque falaram de cabeça quente. — Gabi, que agora era minha amiga e não minha terapeuta, sempre me dizia — Você sabe que foi impulsiva e ele também. Não acredite que ele realmente pensa isso, Catarina. Se quiser ver ele de novo antes de irmos, eu te levo.

— Não. — Me mantive firme.

— Tem certeza?

Demorei um pouco para responder.

— É mais fácil assim, Gabi.

Mesmo me fazendo de forte, meu corpo me castigava. Não era incomum sentir azia, insônia e até mesmo ter febre, da mesma forma intensa de como quando era pequena. Isso durou vários dias, até que comecei a ler antes de dormir. Era a única coisa que me aliviava.

Na última noite na cidade, peguei o único livro que ainda não tinha lido, já que era o maior de todos. Ergui a capa antiga e passei os dedos pelas letras douradas descascadas.

"Pássaros Feridos" dizia o título da capa antiga, da autora australiana Colleen McCullough. Era o livro que Nico havia me dado há alguns meses. Me ajeitei na cama e abri, ajeitando-me no travesseiro.

"Existe uma lenda acerca de um pássaro que só canta uma vez na vida, com mais suavidade que qualquer outra criatura sobre a terra." Era o que estava escrito na primeira página, que me fez lembrar daquele dia com Nico. Me fez lembrar cada segundo da minha vida ao seu lado. Se eu fechasse os olhos podia quase sentir que estava comigo, sorrindo, brincando, assobiando o canto dos pássaros.

"Tamém gosto d'ocê, Catarina." Lembrei da sua voz infantil a me sussurrar há muitos anos. Suas bochechas de menino formavam covinhas na pele bronzeada "Cê quer casar comigo quando nós dois crescer?"

Olhei para o quarto silencioso e puxei fundo a respiração. Aquilo parecia ter acontecido há tanto tempo.

— Cê tá com o peito tão dolorido quanto o meu, Nico? — Perguntei ao vazio.

Naquela noite, enquanto chorava ao ler a história dos primeiros anos de vida de Meggie Cleary, a protagonista do livro, sentia que também chorava por todos os meus primeiros anos de existência. Foi um alívio, como esvaziar minha alma, lavando tudo que me feria. Pela primeira vez desde que tudo tinha acontecido, consegui adormecer tranquila, mesmo com o travesseiro molhado. Eu era um passarinho, assim como Nico, um passarinho ferido.

Permaneci com a mesma sensação de leveza e de morna melancolia naqueles últimos dias no interior. Quando finalmente chegou o momento da partida, pedi que saíssemos mais cedo para que eu pudesse passar em casa e me despedir da minha mãe.

— Está prepara pra isso? — Gabi me perguntou.

— Tô. Não quero deixar nada pendente.

Colocamos as malas no carro, ajeitamos tudo e fomos embora. Gabi passou pela "Rua das Flores" antes de pegar a BR rumo ao Rio de Janeiro, o que só de pensar me dava náuseas. Àquela altura meu pai e Jaime já tinham saído de casa e minha mãe estava completamente sozinha. A notícia estava sendo disseminada pelos quatro cantos da cidade.

Assim que desci do carro, não consegui entrar, então Giovanna colocou a cabeça para fora da janela.

— Quer companhia? Qualquer coisa eu jogo um ossinho pra ela.

Ri e aceitei de bom grado. Nós duas entramos juntas e sem pressa, pois o ambiente estava estranho, mesmo do lado de fora. Aquela casa parecia diferente, silenciosa, assim como o quintal. Quando estava prestes a entrar, vi Camila vindo dos fundos.

— Oi, Catarina! — Ela acenou, correndo em minha direção.

— Uai, que cê tá fazendo por aqui?

— Eu mudei pra casa da Lilica. — Contou ela, com um sorriso travesso — Acho que sua mãe adorou.

Ri, imaginando a raiva que aquela menina estava fazendo minha mãe passar.

— Eu vim me despedir. — Contei — Mas cê promete que vai ser uma vizinha boa e cuidar da minha mãe?

Com um olhar cúmplice, Camila disse que sim.

— Eu já tô cuidando. Até passei urtiga nas calcinhas dela que tavam no varal. Sua mãe passou o dia todo coçando a periquita, Catarina.

Giovanna não conteve a risada.

— Mas ela ainda não sabe que fui eu, então, se puderem...

— A gente não vai contar nada. — Giovanna garantiu — Agora é melhor a gente ir falar com o capeta, quer dizer, com a sua mãe, Catarina.

Me despedi de Camila e entrei em casa. Acabei me divertindo ao pensar em tudo que aconteceria enquanto aquela menina morasse por ali. Seria uma pedrinha maravilhosa no sapato de minha mãe por muitos anos.

— Mãe? — Chamei, entrando na varanda com cautela.

Como a porta estava aberta, olhei dentro da cozinha e a encontrei sentada à mesa. Seus lábios murchos estavam virados para baixo, em uma expressão de tristeza profunda. Quando se virou para mim, seus olhos brilharam.

— Oi, fia. — O sorriso que me abriu e a esperança que se acendeu em seus olhos foi a coisa mais estranha do mundo para mim — Entra, a mãe fez café. Entra ocê também, menina.

— Eu, hein. — Giovanna resmungou enquanto entrava atrás de mim.

— Não vou demorar não, mãe, só vim dar tchau pra senhora. Eu tô indo embora.

O sorriso de seu rosto se desfez.

— Então cê vai mesmo? Quando?

— Agora.

— Agora? — Ela engoliu com força e olhou para os lados, perdida — Seu pai tamém foi embora anteontem, cê sabia disso?

— Sabia.

— Vinte anos de casamento jogado no lixo. Vinte anos, mas pro Zé foi vinte minutos. Resolveu do nada, chegou falando que ia embora e... foi. — Ela estava chocada, como se o casamento estivesse indo muito bem — Tá todo mundo falando. Num sei onde enfiar a cara. Olha a vergonha que seu pai tá me fazendo passar, fia.

— Tá. — Desdenhei — Só vim dar tchau pra senhora mesmo, já tô indo.

Ela se levantou rápido e veio chegando mais perto, com voz chorosa, antes que eu lhe desse as costas.

— Cê num sabe a ruindade dele. Acredita que falei com seu pai "Tenho medo de chuva, Zé. Eu tô doente e se eu passar mal? Quem vai me socorrer?" e seu pai falou "Pobrema seu."? — Ela falava gritando, o que me fazia querer sair mais rápido dali — Ele foi embora com seu irmão. Tentei pegar o menino, mas o Jaime num quis vim comigo. Agarrou o pai dele que nem carrapato. Eu que sou a mãe, mas ele prefere o pai!

— Nossa, quem diria. — Giovanna falou ao mau lado, com voz sarcástica.

— Ocê é tudo que eu tenho agora, Catarina. — Ela estendeu a mão e pegou a minha. Foi a primeira vez que isso aconteceu em quinze anos — Num tenho vizinho aqui com quem conversar, num tenho seu pai, num tenho ninguém. A casa inteira pra cuidar sozinha, as conta, tudo... eu tô sozinha. É horrível ficar só com essas parede, sem ninguém que olha na minha cara. Eu nem tô dormindo mais.

— Acho que vou chorar. — Giovanna murmurou, revirando os olhos.

— Num vai embora, fia. — Ela implorou, apertando minha mão — Se eu morrer por causa desse abandono, o que cê vai fazer? Num vai te dar remorso? Cê é minha única fia. O seu pai e seu irmão são homem, mas ocê é muié que nem eu. As menina sempre cuida das mãe.

Tirei lentamente minha mão da dela.

— Eu nunca tive uma mãe. Foi a senhora que escolheu a vida toda não me querer. Agora eu num vou te atrapalhar mais. Tinha que tá feliz, uai.

— Ô fia, num faz isso. Não é verdade. — Ela tentou pegar minha mão de volta, mas não permiti.

— Eu só vim falar tchau, mãe. Despedi do pai e agora vim despedir da senhora.

Ela ficou pensativa e começou a perder o rumo dos pensamentos. Deu um passo para trás, ressentida.

— Seu pai, né? Ele não pode me tirar o Jaime. — Sua voz soou irritada — Num vou ficar sozinha assim. Vou procurar meus direitos, ele vai ver.

— Escuta aqui, Leda. — Giovanna se interpôs entre nós duas — Espero que você não me arrume confusão, porque vou continuar vigiando, mesmo de longe. Meu amigo, que é advogado, vai pegar o caso do Zé. O pai da Gabi, que por acaso é o prefeito, já sabe o que tá acontecendo e também vai ajudar ele a ficar com a guarda do Jaime. Se você começar a fazer inferno na vida deles, a coisa vai ficar feia pro seu lado. Ao contrário do Zé, da Catarina e do Jaime, que tem muita gente que gosta deles, ninguém gosta de você.

— Eu sou a mãe... — Ela choramingou — É meu direito.

— Mãe? Isso é uma piada? Até eu que te conheci há pouco tempo sei a boa mãe que você é.

Ela quase se engasgou com o pranto.

— Pra quê cê tá se metendo nisso, menina?

— Porque ao contrário da senhora, eu percebi em poucos dias o valor que a sua filha tem. Ela agora é minha amiga e eu vou defender ela. A ironia é ter que defender alguém da própria mãe, não é? Mas se é o que eu preciso fazer, é o que vou fazer. Pode ser difícil de acreditar, Leda, mas algumas pessoas são boas, diferentes de você.

Derrotada e sem qualquer amparo, minha mãe chorou, enxugando os olhos na blusa e olhando para baixo. Fiquei com pena, mesmo não querendo ficar.

— A Catarina vai estar bem cuidada. — Giovanna colocou a mão em meu ombro — Sei que a senhora está preocupada demais com isso. A viagem também vai ser boa, a gente promete tomar cuidado na BR. Sei que uma mãe zelosa como a senhora deve estar pensando muito nos perigos que sua filha pode passar, né? Mas não se preocupe. Eu, a Gabi, a dona Carmem, todas vamos cuidar dela.

Minha mãe balançou a cabeça e só soube chorar. Dei uma última olhada nela, para seu rosto que me implorava para ficar e virei as costas. Ouvi quando soluçou enquanto voltava a se sentar no banquinho, colocando as mãos no rosto. Nunca a tinha visto tão desesperada.

Parei na soleira da porta e voltei a observar o cenário daquela casa, que era na verdade um botequim abandonado. Não havia mais o som da televisão ligada nas novelas que eu gostava de ver, nem os brinquedos de Jaime e os desenhos que ele fazia espalhados pela casa. Não havia mais piadas sujas do meu pai, nem os rádios que ele consertava. Havia apenas uma mulher solitária sentada em um banquinho de madeira, chorando a família desfeita. Ela não tinha mais nada, não era nada e apenas o vazio habitava sua vida. A decadência vinha a passos largos e ninguém a ajudaria, da mesma forma que ela nunca ajudava a ninguém.

— Bença, mãe? — Tomei coragem para falar.

Ela ergueu a cabeça lentamente ao som da minha voz.

— Deus abençoa. — Sussurrou, me encarando em uma última súplica.

Antes que ela falasse algo, eu a deixei, caminhando para fora de casa. Voltamos para o carro e me sentei ao lado de dona Carmem, que estava com um sorriso no rosto, óculos escuros e batom nos lábios enrugados. Estava longe de parecer uma idosa adoecida. Não havia como ficar triste perto dela, pois seu jeitinho alegre e doce contagiava.

— Ah, agora está tudo certo?

— Tudo. — Lhe devolvi um sorriso, mesmo com aquele mal estar e com a ansiedade à mil.

Giovanna se sentou no banco ao lado de Gabi e as duas ligaram uma música animada antes de partirmos. Em instantes o Tempra, com seus bancos de couro, seu terço no retrovisor e sua cor intensa e rubra, percorreu as estradas rapidamente, rumo ao estado vizinho.

— Você vai ver tanta coisa nova, Cat. — Gabi sorriu pela retrovisor, tentando me animar — Nós vamos ao shopping, vamos comer muita coisa gostosa, quero te mostrar o cinema e também vamos passar a virada do ano na praia. Por falar nisso, tenho que comprar um biquíni. Só achei fio dental na minha última viagem.

— Mas fio dental não é de dente? — Questionei e elas riram.

— Sim. — Explicou Gabi — Mas também é um tipo de calcinha que só tem um fio pra passar no meio da bunda.

— Tinha que chamar fio bundal então, uai. — Comentei, séria.

— Vou te dar um. — Brincou Giovanna — Aí você vai pra virada do ano com ele.

— Eu num vou sair com o cu destampado. Cê tá doida, Gio?

— Não acredito que vocês estão falando de cu perto da minha avó. — Gabi chiou e dona Carmem riu.

— Tem nada demais. — A velhinha ajeitou os óculos escuros no nariz, respondendo de forma elegante e com seu doce sotaque carioca — Todos temos cus, Gabriela. Você não tem, meu amor?

Foi minha vez de rir verdadeiramente. Adorava tanto elas.

— Eu amo o mar. — Giovanna disse mais para si mesma — Você já viu o mar, Catarina?

— Não. 

— Logo vai ver, meu docinho. — Dona Carmem deu batidinhas no meu joelho — Essa noite ainda você vai conhecer ele.

Senti um frio na barriga e uma angústia tremenda ao pensar em uma nova vida em um estado diferente. Ainda assim, algo em mim se expandia, como uma coragem, uma liberdade infinita.

Quando estávamos saindo da cidade, abri o vidro e senti o vento no rosto, bagunçando meus cachinhos. Queria que aquele carro fosse mais rápido e nunca parasse. Só queria ir e ir, como se o movimento me fizesse sentir que voava.

As árvores iam ficando para trás e tudo que se via à frente eram as montanhas de Minas Gerais, os asfaltos e plantações. Visualizei alguns pássaros voando por trás do verde, ouvi o canto deles, abafado pelo som do motor, e acabei pensando em Nico. Ouvi o som de seu assobio em minha memória e lamentei uma última vez:

"Adeus, meu passarinho."


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