Os dois não voltaram para a lanchonete. Eloísa ficou preocupada com Mel, dela ficar chateada por ter sido deixada sozinha ou algo do tipo, e mandou uma mensagem com uma desculpa qualquer. No momento, existia algo mais importante para resolver. Só precisou olhar por um instante os olhos dele para saber que o homem falava a verdade, para reconhecê-lo. Era mesmo aquele dos seus pesadelos e as dúvidas sobre esse fato eram as únicas que a mantinham firme. Naquele estante, toda a sua estrutura foi chacoalhada por coisas que não tinha controle ou ao menos conhecia. Suas pernas quase cederam, e ela teve vontade de correr mais uma vez. Ainda sentia o cheiro do líquido que estranhamente deixou seu nariz. Passou a mão no bolso de seu moletom cinza, buscando sua bombinha, e depois sugando-a em busca de ar para que pudesse continuar aquela conversa. O objeto azul escuro grudou em sua mão graças ao sangue entre seus dedos e a parte entre seus lábios e nariz permaneceu manchada sem que nada pudesse fazer além de passar a manga do moletom com mais força na região, mas de nada adiantar.
O que está acontecendo comigo?
Ele tocou-a pela terceira vez e ela se afastou com rapidez. Sua pele queimava como se brasa quente tivesse encostado onde ele colocava sua mão. Eles se encararam por poucos minutos enquanto Eloísa se recuperava e focava em obter oxigênio. Olhar para os olhos dele, estranhamente, a acalmava, mas lá enxergava mais do que a beleza deles, existia medo. Um pavor que nunca tinha visto daquela forma nem quando um de seus irmãos sofreu um acidente com a babá e sua mãe desmaiou ao saber. Era um terror genuíno e muito mais profundo do que já havia presenciado na vida.
— Vai me falar o que está acontecendo? — exigiu saber.
Ela estava mais calma. Seu corpo tremia menos e Eloísa respirava com mais facilidade depois de duas puxadas em sua bombinha. Sentou-se em um dos bancos de pedra na pracinha atrás da lanchonete e ele estava bem ao seu lado, em pé.
— Você acredita em Deus? — Quis saber Lorenzo, sentando-se.
— Não — respondeu, séria. — Você é do tipo que rodeia por horas até responder algo?
— Você provavelmente não vai acreditar no que vou te contar se não tem fé... — parecia desesperançado — ou pode simplesmente ignorar, mas preciso que me escute antes de falar, está bem? — suplicou.
— Nem lembro seu nome — disse, olhando para o lado, desconfortável.
Por mais que tentasse não transparecer, tinha medo do quão perto ele estava
— Enzo — respirou fundo — eu me chamo Lorenzo. Escuta...
Eloísa sentiu seu celular vibrar, mas não olhou. Esperava que ele começasse a explicar.
— Quando morremos... — começou. — Não acaba. Na verdade, é apenas o começo — suspirou. — Nós vamos para o inferno.
Enzo falava aquilo com calma e seriedade. Ela fechou os olhos, entendendo que aquilo iria muito longe. E, para Eloísa, parecia que ele tinha começado pelo meio da história. Suas mãos suavam e a garota as apertava na calça jeans azul. Aquelas palavras lhe causavam arrepios.
— Inferno? — interrompeu — Tipo... igual na bíblia?
— Pensei que não acreditasse em Deus — respondeu ele.
Ela respirou fundo e engoliu em seco. Sentia seu corpo mole como se estivesse de ressaca e um enjoo causado pelo medo.
— Eu não acredito — sussurro. — Mas, estudei alguns anos em uma escola católica no fundamental, era a melhor da cidade — justificou e passou as mãos com mais força na calça. Ainda encarava Lorenzo, mas ele se manteve calado. — Como na bíblia? — Insistiu, mas não queria saber de verdade.
Eloísa não pretendia acreditar em nada do que ele dissesse. Pensava que qualquer coisa que acontecesse teria uma explicação cética e lógica, assim como uma solução com remédios talvez. Não isso. Não um homem lhe dizendo que o inferno existe.
— Não exatamente igual ao da bíblia, mas com certeza inspirou muito tudo que tem nela. Lá embaixo... é pior — suspirou alto.
Quanto mais ele falava, maior era o medo que crescia dentro dela e exalava dele. Um nó se formou em sua garganta e ela se afastou ainda mais.
— Como você...
— Eu já estive lá — interrompeu aquele que já sabia a pergunta, com firmeza. As mãos dela tremiam e Eloísa se levantou. Ele esticou o braço tentando tocá-la, mas hesitou ao lembrar o resultado. — Eloísa...
Ela se afastou de costas. Estava passando mal de novo, sentia que ia desmaiar. Seu estômago queimava e estava suando quando tirou sua blusa de frio, mesmo com o vento gelado daquela cidade. O coração dela estava acelerado. Ela sentia tanto medo que seus olhos se encheram de lágrimas.
— Eles eram reais? — perguntou. — Os pesadelos, são reais?
Eloísa se perguntava por que ainda o ouvia. Julgava-se mais inteligente do que alguém que cai em piadas de mal gosto como aquela. É isso, uma pegadinha, pensou.
— Não são pesadelos — corrigiu. — Eu não sei explicar por que você os tem, juro. Na verdade, esperava que você me explicasse isso também. Mas é real, tudo aquilo... é verdade.
Ele falava com tanta convicção que Eloísa estava começando a cogitar ser verdade, mas era sempre tão racional. Não. Isso não tem a menor chance de ser real. Achava bem mais provável que tivesse dado voz a um louco que acreditava na teoria de conspiração.
— Por que está me contando isso? — perguntou quando se recompôs e encaixou sua mente com a realidade, ignorando que o que ele falava pudesse ter alguma verdade. Eloísa não era capaz de aceitar uma verdade como essa.
— Eu já fui julgado... — sussurrou. — Mas voltei.
Ela riu. Alto, de maneira exagerada. Balançou a cabeça negativamente e teve certeza de que era burra em ter o escutado desde o princípio. Quando notou que Lorenzo permanecia sério, seu rosto aos poucos se desmanchou e o ar saiu com mais força por suas narinas. Eloísa tomou um longo suspiro.
— Está me dizendo, que você está morto? — Quis saber. — É nisso que quer que eu acredite?
— Tecnicamente, sim. — Deu dois passos em direção à loira, que recuou ainda mais. — Precisa acreditar em mim — insistiu em se aproximar, mas ela não parou nem mesmo quando desceu a calçada de maneira inesperada e quase caiu. — Eu fugi de lá há muitos anos e venho fugindo desde então.
— Eu não acredito! — disse, mais para si mesma que para ele. — E quero que fique longe de mim! — Apontou-lhe o indicador, mas logo conteve-se ao notar que algumas pessoas ao redor deles os encaravam de maneira desconfiada. — Fugiu? — Riu mais uma vez, naquele instante de desespero — Você fugiu do maldito inferno? — ironizou.
Lorenzo parou. Ele cruzou os braços cobertos pela jaqueta de couro marrom escuro e fechou os olhos. Estava acabado, tanto quanto Eloísa esperava pelo ocorrido ontem, mas dessa vez o rapaz pareceu diferente daquele que estava falando há um minuto. O nariz estava inchado demais, e roxo, o deixando com um rosto mais destorcido e, quando Lorenzo deu-lhe as costas, seus olhos se arregalaram. Eloísa o observou começar a se afastar e um desespero desconhecido cresceu dentro de si.
— Fugindo de quem? — Gritou. Ele parou de andar e seus ombros se moveram em uma respiração pesada. Julgava-se mais louca ainda por querer dar ouvidos a ele. — Ou... do que?
— Demônios... — virou-se, mas não andou até ela. — Eles me caçam onde quer que eu vá — respondeu. Seus cílios batiam com calma, o medo anterior não mais era visível, como se ele estivesse desacreditado da ameaça que o perturbava anteriormente. Eloísa subiu na calçada.
— Ah! Demônios agora — choramingou e suas testas franziram.
Olhou para os lados, quis que alguma coisa a ameaçasse para acordar desse novo pesadelo. Colocando novamente seu moletom cinza, ergueu as sobrancelhas para engolir mais essa.
— Por que quer a minha ajuda? — Perguntou, em uma voz muito mais dócil.
Ela definitivamente não sabia o que fazer. Queria que ele fosse embora. Na verdade, queria que nunca tivesse aparecido. Mas ela precisava dormir em paz. O cabelo loiro escuro preso em um rabo de cavalo dançou no ar quando Eloísa balançou a cabeça negativamente, esperando a resposta dele, mas não foi o que escutou a seguir.
— Ei! O que aconteceu? — Mel corria em sua direção. — Eu estava te procurando e preocupada. — Colocou a mão sobre o ombro da amiga, que se virou. — Nossa, o que aconteceu com seu nariz?
Ela olhou pelo canto dos olhos para Lorenzo, que permanecia na mesma posição e praguejou o universo por seus planos de vida medíocre estarem bem perto de ir por água abaixo.
— Eu mandei mensagem... — sussurrou Eloísa, olhando a amiga. Sabia muito bem fingir que tudo estava normal, fazia isso há meses, talvez anos. Mel olhou o celular.
— Estou sem bateria...— declarou. — E... você? — olhando Enzo e depois Eloísa. — É o cara que a gente ajudou? — El concordou com a cabeça. Mel sorriu e pressionou os olhos por trás dos óculos. — Arrumou um date no meio do nosso almoço? Eu sabia que você...
— Não é um encontro — interrompeu Lorenzo. — E... obrigada por ontem. Eu lembro de você — disse, envergonhado.
— Não foi nada — ainda sorria. — Ah, se não é um encontro, então vamos voltar para a lanchonete? — Melissa olhou a amiga para tentar confirmar o que dizia, mas a outra estava atordoada demais para responder — El? — chamou sua atenção.
Enzo olhou para Eloísa, que o encarava com medo. Ela queria terminar aquela conversa.
— Você pode vir com a gente — convidou Melissa, olhando Lorenzo e dando o sorriso mais falso que era capaz.
— Vai me ajudar? — sussurrou ele, ignorando a fala da morena.
Ela nem sabia do que ele precisava de fato. Mas, de algum modo, por algum motivo nada racional e que faria Annie xingá-la até a morte, Eloísa acreditava nas palavras dele. Mais do que isso, ela quase confiava em um desconhecido. Mel os olhava confusa.
— Acho que sim — sussurrou de volta, não tendo certezas das próprias palavras.