Conocerás tus sueños

By vic_timism

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Depois de tudo que enfrentaram para ficar juntas, Juliana e Valentina tentam levar a vida navegando por águas... More

Um
Dois
Três
Quatro - Parte I
Quatro - Parte II
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Doze
Treze
Catorze - Parte I
Catorze - Parte II
Quinze
Dezesseis
Dezessete
Dezoito - Parte I
Dezoito - Parte II
Dezenove
Vinte e um
Vinte e dois
Vinte e três - Parte I
Vinte e três - Parte II (+18)
Vinte e três - Parte III
Vinte e quatro
Vinte e cinco - Parte I
Vinte e cinco - Parte II (+18)
Vinte e seis

Vinte

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By vic_timism


O Nissan Versa preto de Mateo estava parado na longa fila do drive-thru, no fast food preferido de Clara. Apesar dos protestos de Valentina — e de Chivis, é claro — a garotinha era obcecada pelas batatas fritas compridas e molengas, que sempre ganhava após os longos e exaustivos dias em que via sua mãe através de vidraças duplas no presídio de segurança máxima.

Naquela tarde, contudo, Val não estava preocupada com os hábitos alimentares de sua sobrinha. Sua cabeça estava em vários lugares ao mesmo tempo, e nenhum deles se localizava no presente.

— Tem certeza que a Clara pode dormir na casa de vocês hoje? — perguntou Mateo, cautelosamente.

O ex-marido de Eva era educado e empático demais para perguntar qualquer coisa sobre o clima no apartamento de Juliana e Valentina diretamente. No entanto, era presidente de um grupo de comunicação e não vivia embaixo de uma pedra. É claro que tinha visto as fofocas sobre Fernanda Franco que fervilhavam na internet.

Assim como todo o resto do país.

— Claro, eu é que estou insistindo para que ela vá. — respondeu Valentina, no banco do carona — Fique tranquilo e vá ver sua namorada.

Mateo sorriu, envergonhado e levemente radiante com a lembrança de seu novo relacionamento. Alejandra era a apresentadora de um programa matinal de gastronomia com quem o diretor do Grupo Carvajal estava saindo há algumas semanas. Finalmente tinham oficializado a relação e Clara adorava a madrasta — em parte porque associava os cabelos ruivos com a Hera Venenosa, sua anti heroína preferida, mas ainda assim adorava.

— Certo. Obrigado. — disse ele, sem conseguir conter o sorriso, enquanto movia o carro dois centímetros a frente acompanhando o fluxo da fila — Me liguem se precisarem de algo, ok?

Valentina brincou com as pontas dos fios do próprio cabelo, ensaiando o que diria a seguir.

— Na verdade, estou precisando de algo agora. — respondeu ela — Você é jornalista, então é a melhor pessoa que conheço para me tirar uma dúvida.

— Você também é um pouco jornalista. — lembrou Mateo.

— Ter feito metade de uma faculdade não me dá o talento para a coisa. — retrucou Valentina, sorrindo amigavelmente — Como faço para descobrir quem foi o primeiro dono de um edifício? Do prédio em que eu e Juliana moramos, especificamente. Sei que o dono atual herdou a propriedade, e precisamos saber de quem.

— Vocês não podem apenas perguntar para ele? — estranhou Mateo, emparelhando o carro à janela por onde os atendentes da lanchonete entregavam os pedidos.

— Fora de cogitação. — respondeu Valentina, lançando um beijo para a sobrinha pelo espelho retrovisor. Presa a uma cadeirinha cor-de-rosa no banco de trás, a menina sorriu timidamente com o gesto de atenção.

— Nesse caso, fica um pouco complicado. Vocês precisariam ao menos do número de matrícula da escritura do imóvel. — avaliou Mateo, pensativo — Eu tenho algumas fontes em cartórios e na secretaria de desarrollo urbano y vivienda. Posso tentar descobrir algo. Por que vocês precisam dessa informação?

— Problemas com a empresa que administra o prédio. — mentiu Valentina. Não pretendia envolver ninguém de sua família na investigação sobre Jorge García. A ideia de compartilhar sua experiência com as regressões não a deixava exatamente animada. Iria descobrir de uma vez por todas qual era a relação entre seu apartamento e Isabel.

— Pedido 43! — chamou a atendente, estendendo uma sacola de papel pardo pela janela do fast food.

— É o nosso! Obrigada! — agradeceu Valentina, colocando as mãos para fora do carro e apanhando o pacote — Quanto tempo acha que demoraria para descobrir algo, Mateo?

— Meus contatos são quentes e é uma informação relativamente simples. — respondeu ele, lançando um olhar rápido para seu relógio de pulso em seguida — Talvez ainda hoje.

— Perfeito! Obrigada. — agradeceu Valentina, enquanto enfiava a mão no pacote que carregava em seu colo, apanhava uma caixinha vermelha de batatas fritas e estendia para sua afilhada — Tome aqui, Clarita.

— Batatinha! — comemorou a menina, agarrando a embalagem.

Em seguida, Val voltou a revirar a sacola e pegou a caixa gigantesca de seu próprio lanche.

— Pensei que você odiasse essa lanchonete. — observou Mateo.

— Eu odeio. — respondeu Valentina, enquanto abocanhava o sanduíche que mal cabia em suas mãos — Mas estou com muita fome. Parece que estou comendo por dois.

-

Quando uma Juliana pálida entrou em casa, Valentina precisou se esforçar muito para fingir indiferença e não se mover de onde estava. A loira continuou jogada no sofá, usando o indicador para rolar a tela de seu celular. Ao lado dela, Clara dormia profundamente, coberta por uma manta fina bordada com todas as cores do arco-íris.

— Tem fotógrafos do lado de fora do nosso prédio. — constatou Juliana, horrorizada, encostada na porta fechada.

— Eu percebi. — respondeu Valentina, secamente, sem olhar na direção dela — O sucesso é maravilhoso, não é mesmo?

Juliana soltou um suspiro pesado e caminhou lentamente em direção à sua namorada. A estilista sentou de frente para ela, na mesa de centro, com as pernas abertas. Usava uma calça jeans justa com as barras dobradas, botas pretas envernizadas de cano baixo, uma camisa xadrez vermelha abotoada até a gola e uma jaqueta de couro preta.

Valentina a amaldiçoou silenciosamente. Por que tinha que dificultar tudo sendo tão bonita?

— Podemos conversar? — perguntou Juliana,em um tom pouco mais alto que um sussurro.

— Trouxe a Clara para não precisarmos fazer isso. Achei que ela ia ficar escalando suas costas e inviabilizar o diálogo. — respondeu Valentina, inclinando a cabeça na direção da criança, que dormia de boca aberta — Mas ela me traiu. Não se pode confiar em ninguém hoje em dia.

Valentina cruzou os braços, para enfatizar que ainda estava com raiva, mas sua expressão dura já tinha se desfeito em uma mera caricatura de namorada brava. Juliana a conhecia bem o suficiente para saber disso e sentiu vontade de sorrir, mas se conteve em respeito ao teatro consistente de Val.

— Como está Eva? — perguntou a morena, jogando a própria franja para trás em um movimento rápido, fazendo Valentina prender a respiração instantaneamente, sempre um pouco hipnotizada por cada gesto da garota com quem dividia vidas.

— Odiando tudo e todos, como sempre. — respondeu Valentina — Agora começou a trabalhar na biblioteca do presídio e passou a visita inteira reclamando de quem estraga os livros, ou os coloca nas prateleiras erradas.

Val omitiu que não prestou muita atenção nas demais lamentações da irmã porque estava ocupada lembrando que Eva e Lucía estiveram apaixonadas em uma vida passada, e batalhando contra a vontade insuportável de perguntar se a primogênita de Leon Carvajal algum dia cogitou tentar algo com a madrasta. Não vinha ao caso.

— Bem... e nós? Como estamos? — arriscou Juliana.

Eu estou brava, frustrada e irritada. Não sei você. — disparou Valentina, arisca.

— Eu estou me esforçando para me concentrar e não sorrir para a sua cara de brava. — devolveu Juliana, cedendo e sorrindo afinal.

— Você está é jogando baixo. — respondeu Valentina, tentando manter a pose, embora suas bochechas já estivessem vermelhas.

— Talvez um pouco. — admitiu Juliana — Mas acima de tudo, estou triste e chateada comigo mesma por ter te colocado nessa situação. A última coisa que eu queria no mundo era te expor a qualquer constrangimento.

Val a encarou por alguns segundos. Parecia realmente arrependida, ainda que não tivesse feito nada demais.

— Tudo bem, não foi sua culpa. A imprensa é cruel. No fim das contas, as fotos não têm nada demais, só estão fora de contexto. — reconheceu Valentina — Eu... acho que também não fui totalmente justa com você. Não queria sentir raiva dessa situação, e muito menos ciúmes da Fernanda, mas sinto. Está além do meu controle, principalmente com toda essa bagunça das regressões. É demais para a minha cabeça.

— É natural que você se sinta assim, Val. Tudo bem. — assegurou Juliana, tomando a mão da namorada entre as suas — Só espero que você saiba que eu jamais trocaria o que nós temos por nada e nem ninguém neste mundo, e que isso nunca passou pela minha cabeça, nem por um minuto. Você é a única que importa para mim, Valentina Carvajal.

Val pressionou os lábios para conter um sorriso que teimava em escapar.

— Eu confio em você, Juls. Só queria que você fosse melhor em ler as reais intenções das pessoas que se interessam por você e agem como suas amigas. Nunca foi seu forte. — explicou Valentina, sacudindo a cabeça discretamente para espantar as memórias dos dias de raiva e insegurança que viveu graças a Sergio — E me desculpa por ter falado todas aquelas coisas sobre eu não ter uma vida além do nosso relacionamento. Você sempre me deu força para voltar a estudar, e até para investir a sério na carreira de modelo. Você é a última pessoa que eu deveria responsabilizar pela minha falta de propósito.

— Você tem um propósito, Val. Só precisa aprender a escutá-lo. — garantiu Juliana — Da mesma forma como me ajudou a escutar o meu. Eu jamais seria estilista sem você.

Juliana subiu uma de suas mãos até o rosto de Valentina e o acariciou delicadamente. Val suspirou em resposta. Já estava em crise de abstinência da sensação daquele toque. Quando sorriram uma para a outra, souberam que tinham içado a bandeira branca.

— E falando em estilista... — começou Juliana, pigarreando em seguida — Quais são seus planos para daqui a três semanas?

— O de sempre. Passar um tempo com a minha namorada, desvendar mistérios sobrenaturais envolvendo um aliciador de menores, lidar com minha gravidez psicológica de vidas passadas. Nada demais. — ironizou Valentina, dando de ombros — Por que?

Juliana sacudiu a cabeça negativamente, demonstrando sua reprovação às piadas sobre a bagunça que viviam, embora estivesse esboçando um sorriso.

— O que acha de carregar esse senso de humor até Nova York? — perguntou a morena, sem conseguir conter a animação. — Querem a prévia da coleção na New York Fashion Week!

Valentina ficou boquiaberta, chocada e surpresa. Então, a expressão se converteu em um enorme sorriso que refletiu em seus próprios olhos.

— Meu Deus, isso é incrível! — exclamou Val, se atirando nos braços da namorada e distribuindo selinhos sucessivos nos lábios dela — Parabéns, meu amor!

Os selinhos evoluíram para beijos rápidos, que logo se tornaram compridos, apaixonados e intermináveis. Selavam o orgulho e a reconciliação, mas também a felicidade que sempre as aguardava após a tempestade.

— Espera, tem certeza que quer que eu vá com você? — perguntou Valentina, que estava ajoelhada no chão da sala entre as pernas de Juliana, que, por sua vez, a envolvia pela cintura — Não sei se vou causar boa impressão se tiver uma regressão espontânea na Times Square.

Juliana se equilibrou entre o desconforto e a admiração com as piadas de Val sobre algo que causava tanta aflição a elas.

— Confesso que preferia que Daniela e Isabel ficassem aqui no México e nos deixassem aproveitar a viagem. — disse Juliana, enquanto colocava uma mecha de cabelo claro atrás da orelha de Val — Mas se acontecer, eu vou estar lá para cuidar de você. Só quero muito que você vá porque eu nem sequer ousava sonhar com tudo isso antes de te conhecer. Me mata um pouquinho quando você fala que não tem propósito, Valentina, porque nós sonhamos tudo juntas. A minha carreira, nosso apartamento, nosso relacionamento, nossa vida... tudo isso só existe porque você existe. Não havia nada antes da gente. Por isso, quero desfrutar de todas as minhas conquistas com você. Porque elas também são suas. Talvez principalmente suas.

Principalmente é uma palavra forte. — ponderou Valentina, abrindo um sorriso enorme — E eu iria com você até o fim do mundo, então acho que posso ir a Nova York por alguns dias.

Juliana riu e a puxou para mais um beijo, com o coração explodindo de alegria diante da simplicidade do momento. Sentia falta da calmaria de instantes como aquele.

— Você sabia que Isabel ia largar tudo e fugir com Daniela? — questionou Valentina, soltando uma pergunta retórica. Era óbvio que Juliana não tinha como saber — Ela só não foi porque descobriu que estava grávida. Me pergunto se elas... se nós encontramos um meio de superar isso e terminamos juntas naquela vida.

Juls hesitou por um momento antes de contar o que sabia.

— Camilo encontrou o atestado de óbito de Daniela. — informou Juliana — Ela morreu de câncer depois da revolução. Quem assinou os papéis no hospital durante a última internação dela foi uma mulher... mas não Isabel. Ela se chamava Rosa García.

Valentina franziu as sobrancelhas. O nome Rosa ativou um vazio agoniante em sua cabeça, como se devesse lembrar de algo, mas não conseguisse de forma alguma.

— Você que tem as visões... acha que pode ser alguma namorada que Daniela teve depois de Isabel? — perguntou Juliana, dando duas batidinhas em sua própria coxa ao fim da frase. Valentina entendeu o sinal e passou do chão para o colo da namorada, sem tirar a expressão pensativa do rosto.

— Talvez. — admitiu Valentina, jogando seus braços em volta do pescoço de Juliana — Afinal, a Isabel não quis fugir com a Dani na última regressão que tive. Mas... eu não sei. Algo me diz que não é isso.

Enquanto Valentina falava, sentiu as pontas dos dedos de Juliana arranhando suas costas suavemente, seguindo a rota de sua coluna de maneira despreocupada, indo de baixo para cima e de cima para baixo. O gesto despertou um arrepio que começou na nuca de Val e logo estava por toda parte.

— Falando em dizer, você poderia me contar o que estava fazendo caída nas escadas quando o Camilo te achou? — perguntou Juliana, percebendo o quão desnorteada Val estava e a puxando para mais junto de si, apenas pela diversão.

— Para ser honesta, não estou com muita vontade de falar nada agora. — sussurrou Valentina, se inclinando para beijar sua namorada e rindo de frustração quando ela afastou o rosto apenas para provocá-la.

Antes que Val pudesse formular qualquer protesto, Juliana se inclinou na direção dela e seus lábios colidiram com voracidade. Valentina enterrou as mãos nos cabelos escuros e ambas sentiram seus corpos esquentarem, enquanto o ar ficava denso e o oxigênio diminuía até se tornar insuficiente.

Sem interromper o beijo, Juliana começou a tirar sua jaqueta, e Val a ajudou assim que percebeu os esforços de sua namorada para se livrar da peça. Valentina finalmente quebrou o contato entre seus lábios para distribuir beijos e mordidas no pescoço da morena, enquanto seus dedos abriam os botões da camisa xadrez habilmente, revelando um sutiã de renda preto. A loira parou o que estava fazendo para observar a mulher a sua frente por um instante, com os olhos semicerrados e a boca entreaberta. Queria decorar as formas de cada linha, curva e traço, e depois esquecê-las apenas para redescobri-las como se fosse a primeira vez, dia após dia, noite após noite, vida após vida e mundo após mundo.

Juliana aproveitou o momento de distração para passar sua mão por baixo da coxa de Valentina e inverter suas posições, girando seu corpo e deitando Val sobre a mesa de centro, puxando-a pela cintura e se encaixando entre as pernas dela em seguida. O móvel recebeu o movimento brusco com um rangido alto e se arrastou pela sala, riscando o chão.

— Não faz barulho! — ralhou Valentina, sabendo de antemão que já era tarde demais.

— Tia Juls, do que vocês estão brincando? — perguntou a vozinha baixa e curiosa de Clara no sofá.

Juliana e Valentina trocaram um olhar apreensivo por um segundo. Então, a morena explodiu em uma gargalhada, enquanto caía sentada no chão.

Agora você interrompe? — perguntou Valentina para a sobrinha ainda com a voz ofegante, sentando na mesa de centro e deixando escapar uma risada em seguida.

Clara encarava as duas sem entender muita coisa.

— Estou com fome. — disse a menina simplesmente, enquanto mordiscava o bico de sua chupeta vermelha.

— Está certo. Vou pedir comida tailandesa para a gente. — prometeu Juliana, ainda rindo, levantando e terminando de ajeitar os botões de sua camisa.

— Pede um hambúrguer de picanha para mim? — solicitou Valentina, com a voz manhosa.

— Desde quando você gosta de hambúrguer de picanha? — perguntou Juliana, franzindo o cenho.

— Aparentemente desde que Isabel descobriu que estava grávida. — respondeu Valentina, dando de ombros, tentando dar algum tom de normalidade à situação — Acho que é algum tipo de desejo.

Juliana precisou de alguns segundos de reflexão e sobrancelhas franzidas para assimilar a esquisitice daquela circunstância e apanhar seu celular para fazer os pedidos.

Naquele momento, o telefone de Valentina vibrou, acusando a chegada de uma mensagem. Ela tocou a tela duas vezes, e então, ergueu os olhos para Juliana.

— Hoje pedi para o Mateo averiguar qual era o nome da pessoa de quem Jorge García herdou o prédio. — começou Val, chamando a atenção de Juliana, que olhou para ela imediatamente — Já sabíamos que era a mãe dele, mas agora temos um nome. Vou te dar uma chance de adivinhar qual é.

Trocaram um olhar, e não foi preciso dizer mais nada.

Rosa García.

-

Juliana e Valentina seguiram a noite com a ansiedade e a euforia de quem descobre uma nova peça para um quebra-cabeça intrincado e difícil, mesmo sem entender exatamente onde o novo elemento de encaixava. Logo após receberem a mensagem de Mateo, mandaram outra para Camilo pedindo os detalhes da certidão de óbito de Daniela. A resposta veio quase duas horas depois, quando já tinham jantado e davam banho em Clara. Vinte minutos mais tarde, já em seus pijamas e com os cabelos úmidos, as duas acomodaram a filha de Eva no sofá assistindo desenhos em seu tablet da Mulher-Maravilha e sentaram em posição de lótus diante da mesinha de centro. Sobre o tampo, Juliana desenrolou uma das bobinas de papel que usava para suas criações e, com um lápis, desenhou uma linha do tempo.

— Certo. De acordo com a certidão de óbito, Daniela nasceu em janeiro de 1894. — começou a morena, inserindo informações em sua linha do tempo enquanto falava — E morreu em julho de 1939. Já a última ficha dela no hospital afirma que ela levou um tiro na barriga aos 20 anos, o que teria contribuído para os problemas de saúde que levaram ao surgimento do câncer.

— Isso significa que ela tem 20 anos nas minhas regressões. Então, minhas visões acontecem em algum ponto depois de janeiro de 1914, exatamente o ano que Camilo tinha suposto. — disse Valentina, dando continuidade ao raciocínio — Sabemos pela história que Francisco Carvajal, pai de Isabel e Marena, acabou assumindo a presidência do país por um mês em julho de 1914. Isso ainda não parece estar nem perto de acontecer nas visões, então, temos certeza de que tudo que aconteceu entre Isabel e Daniela até agora se desenrolou no primeiro semestre de 1914.

Conforme Valentina falava e Juliana desenhava, todas as dores no corpo da loira — e até mesmo os malditos enjoos provenientes da gestação de Isabel — diminuíam. Sempre havia alguma melhora quando avançavam nas descobertas.

— Há alguma menção à idade de Isabel nas suas visões? — questionou Juliana, mordiscando a ponta do lápis e encarando a linha do tempo com concentração máxima.

— Não exatamente. Sei que ela se casou aos 15 anos e que já estava casada há cinco anos quando conheceu Daniela. — raciocinou Valentina — Então, Isabel também tem vinte anos!

— Isso é ótimo! Agora, sabemos que ela provavelmente também nasceu em 1894! — reagiu Juliana, empolgada — Com isso, fica mais fácil encontrar algum registro da existência dela. E sabe o que é mais incrível? Se Isabel e Daniela nasceram no mesmo ano, considerando que Daniela morreu jovem, e portanto é muito provável que Isabel tenha vivido mais do que ela, podemos chutar que você reencarnou antes de mim nesta vida.

— Claro que reencarnei. Você era uma assassina sanguinária. Seu karma devia ser pesado, muita coisa para pagar. — pontuou Valentina.

— E a gente achando que eu era seu príncipe encantado na vida passada. — comentou Juliana.

— Você foi e ainda é, sua boba. — respondeu Valentina, sorrindo e roubando um selinho de sua namorada — Mas também era uma assassina sanguinária, ainda que com motivações nobres.

— Você é impossível. — comentou Juliana, rindo e sacudindo a cabeça negativamente — Bem, vamos adicionar Rosa García à equação. Seja quem for, de acordo com as informações de Mateo, ela comprou o terreno deste prédio em 1940. Exatamente um ano após a morte de Daniela. Segundo Dolores, a porteira com quem conversei outro dia, as obras do edifício terminaram na década de 50.

— Pelo menos dez anos de reforma. Aposto que foi caro. Essa Rosa tinha muito dinheiro para bancar isso. — avaliou Valentina. Aquele era um assunto sobre o qual podia opinar com propriedade.

— Não é estranho que Rosa tenha feito um investimento dessa dimensão logo após a morte de Daniela? — questionou Juliana — Quase como se ela estivesse esperando Daniela morrer para usar esse dinheiro?

As duas permaneceram em silêncio, pensando por alguns instantes.

— O fato é que Jorge, o filho de Rosa, provavelmente ainda não era nascido nessa época. — considerou Valentina — Ele aparenta ter uns 50 ou 60 anos. Portanto, deve ter nascido por volta da década de 60, nem chegou a conhecer Daniela.

— Se Daniela já tinha 45 anos em 1939, e Rosa teve um filho 20 anos depois disso... significa que Rosa era bem mais nova que Daniela. — apontou Juliana — O que descarta a possibilidade de que seja Isabel com um nome falso ou algo assim.

— Não sei, Jorge pode ser adotado. — lançou Valentina, se recusando a aceitar a narrativa de que Daniela realmente teve outro relacionamento depois de Isabel — Além disso...

— Espere aí. — interrompeu Juliana, se dando conta de algo de repente — Como você sabe quantos anos Jorge aparenta ter?

Valentina engoliu em seco.

— Bom, você queria saber o que eu estava fazendo desmaiada na escada quando Camilo me achou... aí está: eu fui até a cobertura de Jorge García investigar o que estava acontecendo, o vi e tive uma regressão espontânea assim que coloquei os olhos nele. — confessou.

Juliana abriu a boca e fez menção de repreendê-la, mas com que moral? Também tinha ido até a cobertura, afinal de contas.

— Eu fiz o mesmo. — revelou Juliana — E... não surte, está bem? Mas de fato há uma garota lá. Se chama Gabriela.

— Como assim? Você falou com ela? — perguntou Valentina, agitada — Nós temos que fazer alguma coisa! Precisamos tirar ela de lá, a gente...

— Calma, Val! Calma! — pediu Juliana, colocando a mão sobre o ombro dela — Não podemos colocar os pés pelas mãos. Dolores disse que Jorge tem acordos com a polícia. Precisamos planejar corretamente para não colocar Gabriela em perigo.

— Minha família tem vários amigos na polícia. — retrucou Valentina, gesticulando nervosamente — Eu posso falar com eles, e...

— Val, sem ofensas, mas isso não nos ajudou quando estávamos lidando com bandidos no passado, lembra? — respondeu Juliana, delicadamente — Desconfio que suas regressões vão nos dar o conhecimento necessário para ajudar essa menina, mas precisamos ter calma por enquanto, tudo bem? Eu passei o número do nosso apartamento para a garota, ela pode interfonar se tiver problemas.

— Acha que se eu continuar voltando às nossas vidas passadas, vamos encontrar uma forma de tirar Gabriela do apartamento? — questionou Valentina.

— Val, pelo amor de Deus, não vá fazer nenhuma loucura! — repreendeu Juliana, como se pudesse ler os pensamentos da namorada — É uma possibilidade, mas precisamos ter cautela porque as visões afetam sua saúde. Vamos trabalhar com o que temos nesta vida, está bem? Precisamos levar nossa linha do tempo até Camilo e continuar seguindo a pista dos García. Iremos nos dedicar a isso nos próximos dias e tudo vai ficar bem.

-

Nada ficou bem nos dias que se seguiram, já que a vida de Juliana virou de cabeça para baixo e a estilista não teve tempo de se dedicar a qualquer coisa que não fosse o trabalho.

Com a confirmação de que iriam à New York Fashion Week, Fernanda e Juliana passaram a trabalhar dia e noite, por até catorze horas seguidas. Eram as primeiras a entrar na Arce e as últimas a sair. A dinâmica entre elas era agradável, já que a dona da empresa estava compenetrada demais em levar uma coleção perfeita aos Estados Unidos para perder o foco flertando durante o expediente.

Exceto por um comentário solto ou outro, é claro.

Se Fernanda estava numa fase tranquila, a mídia, por outro lado, promovia um novo espetáculo a cada manhã. Todos os dias, sites de fofoca publicavam fotografias das duas colegas de trabalho deixando a Arce tarde da noite, conversando e rindo, com notas ácidas sobre o "clima de romance". O sumiço de Valentina das redes sociais — e até mesmo do mundo offline — alimentava os boatos de que ela estava reclusa e arrasada em casa.

Val, de fato, andava isolada. Mas não pelos motivos que todos supunham.

À contragosto, após uma longa conversa com Juliana, Valentina deu o braço a torcer e concordou que não era seguro ficar sozinha em casa naquele período em que Juls estava trabalhando demais. Afinal, se tivesse uma regressão espontânea, não haveria ninguém para socorrê-la. Por isso, todas as manhãs antes de ir trabalhar, a morena deixava sua namorada na casa de Camilo. O amigo concordou em ajudá-las depois que Valentina passou uma tarde na casa de sua família e decidiu que seria inviável ir para lá todos os dias, já que quase enlouqueceu com os discursos de Chivis e Renata sobre os rumores de traição que abarrotavam as páginas de revistas de celebridades.

Durante o dia, Valentina se debruçava sobre livros que abordavam a época da Revolução e vasculhava todos os cantos da internet em busca de qualquer informação relevante sobre o passado, sempre em vão. Quando Camilo estava distraído o suficiente, a jovem amenizava sua frustração com alguns goles de um cantil prateado que guardava no fundo da bolsa, e disfarçava o cheiro de álcool com café e chicletes.

Quando Juliana chegava em casa, dava seu melhor para continuar suas investigações e ajudar Valentina, mas a exaustão estava vencendo a guerra. Tinha finalmente concluído as peças em edição limitada que iriam para a outlet de Aurora Ricci, em Roma, e esperava que o fim daquele trabalho abrisse uma brecha de tempo livre para seguir pesquisando sobre Rosa García e Isabel. No entanto, após sua rotina extenuante de trabalho, tudo que seu corpo conseguia fazer era tomar uma chuveirada com sua namorada, desabar na cama, balbuciar uma tentativa de racionalizar as regressões e pegar no sono até a manhã seguinte.

Assim, o tempo passava depressa. E a cada dia sem novas respostas, a fraqueza, a dor e o enjoo tomavam conta do corpo de Valentina um pouco mais.

-

Quando seis dias as separavam do embarque para Nova York, os incômodos que atormentavam Val se tornaram particularmente insuportáveis.

Estava sentada junto a uma das escrivaninhas da casa de Camilo, tão pálida quanto as páginas do livro que lia. Tinha vomitado a manhã toda, e cada centímetro de seu corpo latejava. Não conseguia sequer se concentrar nas palavras à sua frente, que dançavam no papel.

— Camilo? — chamou Valentina, com a voz fraca, fazendo seu interlocutor levantar os olhos para ela imediatamente. Estava preocupada com a filha de um de seus melhores amigos, que parecia pior a cada dia — Quero fazer uma regressão.

— Valentina, eu não acho que... — ensaiou ele.

— Se você não me ajudar, farei sozinha. — cortou Valentina, mais agressiva que o necessário — O plano de Juliana de procurarmos por respostas nesta vida claramente não está dando resultados, e eu estou farta de me sentir mal. Preciso descobrir o que realmente está acontecendo.

Camilo a encarou. Então, suspirou pesadamente.

— Está bem, Valentina. Vamos lá. 

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