Seis

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— Deixa eu ver se eu entendi. — disse Juliana, ao volante do New Beetle preto que Valentina ganhou de Leon em seu aniversário do ano passado, quando finalmente tirou sua carteira de motorista junto com a namorada — Você está me dizendo que o machucado enorme que eu vi no seu braço foi feito pelo seu ex-namorado que está morto, mas numa vida passada?
Val estava sentada no banco do carona. Tinham acabado de deixar Clara na creche e, agora, Juliana iria levá-la para a casa de Camilo, onde faria uma nova sessão de regressão.
— Sei que é difícil de acreditar, Juls, mas....
— Nada é difícil de acreditar, Val. — interrompeu Juliana — Veja bem, o seu pai vive no corpo do meu pai. A gente não tem margem para ser cética.
Valentina deixou uma risada abafada escapar.
— Mas é muita informação para processar. — prosseguiu Juliana — E me preocupa muito que uma coisa que tenha acontecido nessa memória tenha te machucado na vida real.
— Também não sei se isso é normal. — confessou Valentina — Quer dizer, dentro do que é possível ser normal nesta situação. Eu nem tinha reparado no hematoma até você me perguntar sobre ele hoje cedo.
Juliana estacionou na rua de Camilo, a poucos metros do portão.
— Não estou gostando disso, Val. Acho que deveríamos procurar um jeito de parar essas visões ao invés de investigar os motivos delas.
— Às vezes, investigar é o único modo de parar alguma coisa. — respondeu Valentina, soltando o cinto de segurança — Não quer entrar comigo? Podemos conversar com o Camilo juntas.
Juliana lançou um olhar rápido para o relógio digital no painel do carro.
— Até queria, mas preciso estar na Arce às nove. Eu e Fernanda vamos fazer uns testes com alguns tecidos. Mas podemos sair para jantar e você me conta todos os detalhes da regressão de hoje, e me explica melhor tudo isso.
— Eu adoraria, mas você tem o coquetel da Vogue esta noite. — lembrou Valentina —  Parece que hoje Fernanda Franco vai te ver mais do que eu.
— Vamos fazer assim: vou tentar escapar mais cedo do coquetel, e aí sou toda sua o fim de semana inteiro. — propôs Juliana, acariciando o rosto de Val com o polegar.
Valentina não conseguiu disfarçar o sorriso.
— Você é perfeita, Senhora Estilista-Revelação-do-México. — sussurrou, beijando a namorada em seguida. Em resposta, Juls aprofundou o beijo, e segurou o rosto de Val com as duas mãos, como se fosse a coisa mais importante do mundo.
— Ei. — sussurrou Juliana, segurando a mão de Valentina e apertando de leve — Estamos juntas nisso. Você não está sozinha.
Val a encarou por segundos que pareceram durar para sempre. Então, sorriu com os lábios e os olhos.
— Obrigada, meu amor. Obrigada.

-

Dessa vez, Valentina mal precisou ouvir as palavras de Camilo para se perder em meio a uma lembrança boa com Juliana que abrisse o caminho até a existência que viveram juntas há mais de cem anos.

-

O El Cielo era um café aconchegante e simpático, com uma entrada tão estreita e discreta que quase desaparecia em meio a loucura do centro da cidade. Val o descobriu na adolescência, quando precisava de um lugar tranquilo para estudar — ou para rabiscar poemas na última página do caderno e fingir que estava estudando. Com o passar dos anos, e principalmente depois que Valentina retornou da temporada no Canadá, o estabelecimento foi promovido a refúgio. Foi ali que chorou a morte do pai, fugiu da imensa tristeza que sentia diariamente ao longo da maior parte de sua vida adulta e simplesmente se escondeu do mundo sempre que teve a vontade incontrolável de ficar invisível por algumas horas.
E era ali, nos bancos acolchoados que ficavam diante de mesinhas vermelhas duplas, que estava conversando com Juliana pela primeira vez desde que deixou bem claro para o país inteiro que a amava.
—  Nunca trouxe ninguém aqui antes. — confessou Valentina, usando uma colher de plástico para mexer seu chocolate quente com creme — Gosto daqui porque parece um esconderijo. É tão secreto que às vezes eu mesma esqueço que existe. Antigamente, eu gostava de fingir que as portas do El Cielo eram invisíveis, e só apareciam para alguém quando aquela pessoa precisava escapar da própria realidade um pouquinho.
Valentina riu da própria história, e Juliana a acompanhou, abrindo um sorriso encantado em seguida.
— É engraçado como eu nunca mais vim aqui desde que te conheci. — continuou Valentina — Eu nem pensei neste lugar nos últimos meses, sabia? Acho que ele ficou invisível todo esse tempo porque, depois de você, eu não precisava mais fugir para lugar nenhum.
— E por que o café reapareceu agora? — instigou Juliana, entre um gole de seu capuccino e outro.
Valentina sorriu com a pergunta.
—  El Cielo não reapareceu porque eu preciso fugir da minha realidade, mas sim, para que eu possa dividir todas as partes da minha vida com você. As portas se tornaram visíveis porque quero te mostrar meus esconderijos, e que você saiba onde me encontrar mesmo quando eu não estiver por perto. Estou te mostrando onde me escondo porque sei que nunca vou precisar me esconder de você.
Juliana abriu um sorriso enorme e incontrolável. Suas bochechas ficaram vermelhas. Ela estendeu a mão por cima da mesa, e Valentina a segurou prontamente.
— Você é muito boa com palavras. — sussurrou Juliana. Sua mandíbula já doía de tanto sorrir — Essa é uma das coisas que mais me encantam em você.
— Você também é boa quando quer. Acho que se saiu muito bem quando fingiu que estava anunciando um assalto no dia em que a gente se conheceu.
Juliana explodiu em uma gargalhada.
— Ei! Eu só estava tentando fazer você sorrir.
— Deu certo! — respondeu Valentina, rindo.
— Espero continuar te fazendo sorrir para sempre, todos os dias. — disse Juliana, timidamente, enquanto acariciava a mão de Valentina.
— Se isso for um pedido de namoro, lamento informar que você vai ter que fazer melhor, Juliana Valdés. — brincou Val, sem conseguir controlar as risadas.
— Eu quero chegar lá, mas isso é muito esquisito! — exclamou Juliana, gargalhando sem parar — Meu Deus, eu sou péssima! Nunca fiz isso antes, e você também levou as coisas para outro patamar fazendo um discurso lindo na televisão.
As duas tiveram uma longa crise de riso, que não passou nem quando a garçonete — uma adolescente loira com mechas cor-de-rosa no cabelo — parou ao lado da mesa e perguntou se elas precisavam de mais alguma coisa.
— Falando sério... — disse Valentina, com os olhos cheios de lágrimas e a barriga doendo de tanto rir — Acho que você está indo muito bem.
As garotas se perderam uma nos olhos da outra por instantes tão compridos que fizeram o tempo parar.
— Valentina Carvajal. — sussurrou Juliana, tão nervosa que era possível ver seu coração batendo por baixo da camiseta branca que usava — Você aceita namorar comigo?
— Não existe nada no mundo que eu queira mais do que isso. — respondeu Valentina, com um sorriso em que caberia o universo, e que foi retribuído na mesma intensidade por Juliana.
Sem pensar duas vezes, elas se debruçaram sobre a mesa e deram um beijo rápido, arrancando suspiros encantados da jovem garçonete que observava a cena encostada no balcão do café.
— Só para constar — disse Val —  quando acontecer o pedido de casamento, podemos pedir juntas, ao mesmo tempo, para você não ficar tão nervosa por ter que pensar em todas as palavras sozinha.
— Nunca me acostumo com a sua velocidade em adiantar as coisas. — respondeu Juliana, com uma felicidade que nunca tinha sentido antes estampada em seu rosto.
E assim, Valentina foi envolvida pelo torpor que a levava até o início do século passado.

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