Catorze - Parte I

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A lua passou por todas as suas fases e as constelações mudaram de lugar com a delicadeza que só é possível para quem vive o tempo da eternidade. Como se acompanhassem o ritmo lento da valsa ditada pelo movimento dos planetas, Isabel e Daniela também locomoviam seus corpos e ficavam mais próximas uma da outra a cada vez que o sol insistia em nascer.

Apesar das terríveis dores no estômago que sentia à altura do tiro, Daniela se recuperava em uma velocidade impressionante. Conforme a coloração rosada e saudável voltava a tomar conta das maçãs de seu rosto, as frases tranquilas e prolongadas que disparava na direção de Isabel ao longo do dia se tornavam mais frequentes. Conversavam tanto que os diálogos sobre a banalidade do universo e a profundidade das coisas mais simples se enrolavam nas horas e faziam os dias passarem depressa.

Daniela, que não costumava falar muito, se flagrou esmiuçando todas as palavras que carregava dentro de si. Contou como sua mãe abandonou a família para se casar com outro homem quando ela ainda era pequena demais para memorizar seu rosto, e como seu pai a ensinou a atirar em latas antes mesmo de ensiná-la a escrever o próprio nome. Explicou cada detalhe político da Revolução, por que derrubaram o governo ditatorial do general Porfírio Díaz e como pretendiam acabar com o — tão autoritário quanto — presidente, general Victoriano Huerta. Discorreu, com um ar apaixonado que denunciava tudo o que carregava dentro dela, sobre a urgência de que os trabalhadores se reconhecessem enquanto classe explorada e subaproveitada e tomassem o poder para que a fome finalmente acabasse e as necessidades do povo fossem atendidas.

Olhando em retrospecto meses depois, Isabel nunca saberia dizer qual foi o exato momento em que passou a se aninhar nos braços de sua interlocutora e recostar a cabeça em seu ombro enquanto a ouvia falar sobre política, guerra e paz. Só sabia que aquele impulso acontecia com uma frequência cada vez maior, até que assumisse a forma do conforto do hábito.

A gruta em que se escondiam enquanto Daniela se recuperava oferecia poucas oportunidades de entretenimento. Talvez por isso, quando Isabel não estava cuidando de sua paciente, as duas se sentissem tão confortáveis para entrelaçarem as mãos e acariciarem preguiçosamente os cabelos uma da outra. Não havia muito a fazer que não fosse se permitir a ternura de toques contidos, mas repletos de uma eletricidade que gritava o que ambas queriam.

Entre cuidados médicos e carícias intermináveis, Isabel também falava. Contou sobre como sua mãe morreu após cair de um cavalo e fraturar o pescoço semanas antes de seu casamento com Pedro, e como nunca mais tinha reunido coragem para cavalgar desde o incidente — até a noite em que precisou correr para tentar salvar Daniela da fúria de seu próprio marido e dos outros fazendeiros, é claro. Embarcou em um monólogo sobre como amava os romances de Jane Austen e os poemas de Elizabeth Barrett Browning, e como aquilo era frustrante, porque as obras de ambas falavam sobre um amor romântico em que ela sequer acreditava. Comentou, aos risos, como ela e Sofía escapuliam das missas na adolescência para observar rapazes em uma praça da cidade e sempre acabavam entediadas porque todos eram enfadonhos e não tinham nenhum charme para nenhuma das duas.

Numa caverna úmida e desconfortável, Isabel e Daniela deixaram tantos pedaços de suas próprias vidas que acabaram construindo um universo particular. Sabiam que o lar que tinham encontrado uma na outra naquelas circunstâncias tão desfavoráveis era frágil como um castelo de cartas. Mesmo assim, era o local mais aconchegante em que já tinham estado.

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A noite já escorregava para dentro da caverna em faixas de luz azuladas. Isabel continuava deitada no peito de Daniela — exatamente como tinha estado nos últimos 40 minutos. A soldadera, por sua vez, acariciava os cabelos loiros com uma calma que lembrava a tranquilidade da respiração em uma boa noite de sono.

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