A Voz da Escuridão.

By guiguiroseira

53.5K 8.9K 2.9K

[Obra registrada na Biblioteca Nacional.] Um garoto de 8 anos é sequestrado e morto na pequena cidade de... More

A Voz da Escuridão.
Ato 1 (1988).
1
2
3
4
5
6
Ato 2 (2009 - 2014).
Parte I
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19/20
21
22
23
24
25
26
27
28
29/30
Parte II
SÁBADO
1
2/3
4
5
6
7
8
DOMINGO
1
2
3
4
5 (i)
5 (ii)
6/7
8
9
10
SEGUNDA-FEIRA
1
2
3
4
AVISO: Comemoração.
TERÇA-FEIRA
1
2
3
4
5
6
7/8
9
10
11
12
13
14 (I)
14 (II)
15/16
17
18 (I)
18 (II)
QUARTA-FEIRA NEGRA (I)
1
2 (I)
3
4/5
6
7
8/9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
PARTE III
Quarta-Feira Negra (II)
1
2
3
4
5
6
7
8 (I)
8 (II)
9/10
11
12
13
14
15 (I)
15 (II)
16
17
18
PARTE FINAL
1/2
3/4
5
6
7
8
9
EPÍLOGO
1
2
3
4
FINAL
Nota do Autor.
Comemoração Concurso StoryTeller.
A VIAJANTE. LANÇAMENTO: 12 DE MARÇO.

2 (II)

340 48 6
By guiguiroseira

Sophia precisou sufocar um grito quando viu a criança no refeitório.

Ela era tão parecida com Pietra que, por um momento, Sophia achou que tinha voltado no tempo. 20 anos sumiram de seus ombros e ela era uma criança outra vez, correndo por entre aquelas mesas com a boca suja de bolo de chocolate atrás de Pietra, com Miranda gritando para elas pararem com aquilo, pelo amor de Deus, ou iriam tropeçar e cair. Essa sensação desapareceu, mas deixou atrás de si uma esteira de estranheza pela qual Sophia deslizava vagarosa. De fato, não conseguiu sequer se mexer enquanto Miranda passava por ela e ia até a garotinha morena de cabelos cacheados sentada no colo de uma jovem freira de olhos azuis, ambas assistindo desenhos na televisão.

- Joanna, querida – disse Miranda. – Tem alguém aqui que quer ver você.

A criança virou o rosto bonito para Miranda e sorriu. De novo, a sensação de voltar no tempo apoderou-se de Sophia, e ela precisou sentar-se. Ou era isso, ou iria simplesmente ter um colapso mental ali mesmo. Sem conseguir desviar os olhos da garotinha, que estendia os braços para Miranda, Sophia puxou uma cadeira e desabou nela, afundando de qualquer jeito quando suas pernas desistiram de continuar a sustentá-la.

Isso não é real. Eu estou enlouquecendo, e, quando Miranda pegou a criança no colo e começou a caminhar na direção dela: É isso. Nada disso é real. Aquela coisa fodeu com minha cabeça e agora eu estou alucinando.

Mas não era alucinação, e Miranda parou a alguns poucos passos de Sophia, balançando a pequena Pietra no colo. Ela fitava Sophia com olhos amendoados e cheios daquela curiosidade faminta que só as crianças conseguem expressar. Sophia sentiu a boca seca e lambeu os lábios, tão ásperos no momento que ela poderia lixar as unhas com eles.

- Sophia, essa é Joanna. Minha neta – disse Miranda. – Joanna, dê oi para Sophia. Ela é uma velha amiga de sua mãe.

Um sorrisinho acanhado sombreou o rosto da criança e ela deitou a cabeça no ombro da avó, erguendo uma mãozinha gorda para Sophia. A garota quis retribuir o gesto, só que seu braço se recusava a levantar. Parecia preso à cadeira por cola.

- Sophia? – Miranda franziu a testa para ela. – Sophia, você...

Sophia não escutou o resto, porque seus ouvidos se encheram do som gutural de seu próprio café-da-manhã regurgitando. Ela curvou-se para frente na cadeira e tampou os lábios com as mãos, sentindo aquele jorro quente partir de seu estômago como um foguete em ignição, subir por sua garganta e ir parar em sua boca. A garota segurou o vômito ali e fez o máximo possível para engolir de volta. Conseguiu, mas logo o fluxo ameaçou voltar e, não fosse Miranda correr até ela com um copo d'água, Sophia provavelmente teria feito uma bela sujeira no piso do refeitório.

Seus dedos se fecharam no vidro frio do copo e ela bebeu dois grandes goles.

- Obrigada – ela ofegou. – Desculpe, eu só...

E olhou para Pietra. Não, não para Pietra. Para Joanna, filha de Pietra e que era a cópia da mãe quando criança. Miranda colocara a garotinha no chão para pegar o copo de água e agora ela fitava Sophia de longe, apertando contra o queixo uma tartaruga de pelúcia e com um potinho na mão direita. Sophia não reparara em nenhuma das duas coisas antes, mas, pelo amor Deus, ela achara que estava voltando no tempo, então era de se esperar que perdesse alguns detalhes.

- Joanna? – disse Sophia. – É esse seu nome?

A garotinha fez que sim com a cabeça. Miranda, parada entre elas, olhava de uma para outra com expectativa.

- Sou Sophia. Desculpe se assustei você. Mas você é igualzinha sua mãe.

Joanna deu-lhe um sorriso de dentes de leite, e depois enterrou a boca outra vez na tartaruga de pelúcia. Agora que as coisas começavam a se encaixar na cabeça de Sophia, que ela passava a entender que aquilo ali não era uma viagem no tempo, ela conseguia pensar com um pouco mais de clareza.

- Eu tinha um amigo como o seu – disse Sophia. – Não uma tartaruga, mas um coelho. Ele era cor-de-rosa e se chamava Furgus.

Miranda olhou mais uma vez de Sophia para Joanna, como alguém que termina de montar um móvel e dá uma última conferida nos parafusos para se certificar de que tudo não vai desabar no chão e, parecendo satisfeita com seu trabalho, afastou-se, deixando as duas sozinhas.

Sophia puxou os cabelos para trás da orelha e sorriu para Joanna.

- Como é o nome do seu amigo?

- Lancelot – disse Joanna. Falou rápido. Parecia ainda estar decidindo se confiava ou não em Sophia.

- Como nas histórias do Rei Arthur?

- Uhum. Eu li todas elas.

Sophia ergueu as sobrancelhas, surpresa.

- Quantos anos você tem?

- Quatro – disse Joanna. – Mas Pietra sempre falou que eu sou inteligente demais para minha idade. E que isso vai me meter em encrencas.

- Sua mãe também era inteligente demais para a idade dela. Mais inteligente do que eu, pelo menos. Só que isso meteu nós duas em encrencas.

Joanna deitou a cabecinha um pouco para o lado, seus cachos arrumados e presos por um lacinho azul deslizando com o movimento.

- Seus olhos são tão bonitos – ela disse.

- Obrigada. Os seus também são.

- Você é mesmo amiga de Pietra? Porque mamãe conta tudo para mim, e ela nunca falou de você.

Sophia fez uma careta. Um pouco daquele gosto ácido de vômito continuava em sua boca, e ela bebeu o último gole d'água do copo. Foi o suficiente para levar embora o amargor, embora houvesse ainda um sabor ruim em sua língua, e que não tinha nada a ver com as intempéries de seu estômago. Era um sabor de cinzas e poeira, de raiva e ressentimento, e estava relacionado às palavras de Joanna: minha mãe nunca falou de você para mim.

- Nós éramos boas amigas – Sophia colocou o copo na mesa do refeitório. – A gente só se afastou – assim soava melhor do que "eu abandonei sua mãe".

Joanna olhou por cima do ombro, para Miranda sentada ao lado da jovem freira, e pareceu decidir que era seguro se aproximar de Sophia. A criança fez isso com passos hesitantes no começo, depois um pouquinho mais rápido, até que quase correu para cima de Sophia, como um carro que demora para pegar no tranco mas que, depois que o motor finalmente liga, funciona melhor que o esperado.

- Essa é minha lagarta – a menina pulou na cadeira ao lado de Sophia e estendeu para ela o potinho de plástico com tampinha vermelha. Sophia franziu os olhos e viu lá dentro uma lagarta gorda e colorida se arrastando com sofreguidão. – Vovó pegou para mim. Falei para mamãe que o nome dela é Pietra, mas é mentira.

- E qual é o nome dela?

A garotinha deu de ombros.

- Não sei. Acho que não vou dar um nome para ela, porque vou soltá-la logo.

Sophia assentiu. Era a mente da criança – inteligente demais para a idade, exatamente como Pietra fora, mas ainda assim uma criança – dizendo-lhe: não se apegue. Quando as coisas não têm um nome para seu coração lembrar, fica mais fácil de deixá-las ir embora. Não se apegue.

- Podemos soltá-la no lago quando a chuva passar – disse Sophia, devolvendo o pote com a lagarta sem nome para Joanna. – O que acha?

Joanna fez que sim, entusiasmada, e Sophia sorriu. Assim de perto dava para notar as diferenças entre a criança e Pietra, embora a semelhança continuasse espantosa. Joanna tinha o queixo mais proeminente e o nariz um pouco mais chato, enquanto que com Pietra era exatamente o contrário. Havia uma pinta acima da sobrancelha de Pietra, na forma de um continente imaginário, e a testa de Joanna era livre de manchas. Coisinhas pequenas, que passariam despercebidas por qualquer um – talvez nem mesmo Miranda tenha notado aqueles detalhes – mas não por Sophia.

- Eu tenho uma espécie de irmã com mais ou menos a sua idade – disse Sophia.

- Mesmo?

- Mesmo. O nome dela é Evangeline, e ela é igual a você: bonita, inteligente e apaixonada por livros. Embora eu nunca a tenha visto lendo uma das histórias do Rei Arthur.

- Eu posso emprestar para ela, se ela quiser.

Sophia passou as mãos nos cabelos de Joanna, e a garotinha não a afastou.

- Ela iria adorar.

- Eu também tenho a coleção do Harry Potter – disse Joanna. – E Pietra disse que vai me comprar a do Senhor dos Anéis. Eu... – ela parou e franziu a testa para Sophia, os olhos tão apertados que quase desapareceram em seu rosto gordinho.

- O quê? – perguntou Sophia, baixando os olhos para o peito, achando que tinha derramado algo na blusa. – O que foi?

- Pietra tem um colar assim – disse Joanna, apontando para o pescoço de Sophia. – Igual a esse desenho engraçado.

Sophia demorou alguns segundos para entender do que Joanna falava. Então levou os dedos ao pescoço e acariciou a tatuagem ali: o triângulo de gravetos envolvido por fios vermelhos. Tocou-o de leve, com cuidado, quase como se fosse vidro e não pele, como se pudesse se partir como o colar de Sophia se partira.

- Pietra ainda guarda o colar?

Joanna fez que sim, espiando Sophia com olhos curiosos.

- Ele estava na estante da sala – disse Joanna. – Perguntei pra Pietra onde ela tinha achado, porque eu nunca o tinha visto antes, mas ela não quis me responder – ficou em silêncio. A percepção de Joanna para saber em quais momentos falar e em quais se calar dava de dez a zero na de muitos adultos que Sophia conhecia. – O que ele significa?

- Você é uma menina inteligente, então talvez já tenha ouvido falar disso. Ou lido, o que é mais provável. É uma lenda chamada Akai Ito. Conhece?

Joanna balançou a cabeça e seus olhos, que já eram enormes, arregalaram-se ainda mais diante da perspectiva de escutar uma história.

- Não conheço, não. Conta.

Sophia contou sobre a lenda sobre os fios que uniam as almas gêmeas para toda a eternidade e mais além, e Joanna escutou cada palavra sem piscar.

- Entendi – disse Joanna, quando Sophia terminou de falar. – Como o Rei Arthur e a Guinevere.

- Isso – sorriu Sophia. – Exatamente como o Rei Arthur e a Guinevere. Olha só, Joanna, sua mãe e eu, nós... Éramos mesmo muito ligadas. Eu morava aqui, sabe, nesse lugar.

- Verdade verdadeira? Aqui na igreja?

- Verdade verdadeira.

- Você era freira?

Sophia jogou a cabeça para trás e gargalhou. Foi um som tão alto que Miranda e a freira de olhos azuis giraram nas cadeiras para olhar. Joanna acompanhou Sophia, rindo com a boca colada no casco de pelúcia da tartaruga.

- Não, querida. Eu não era freira – disse Sophia. – Sua avó me adotou. Ela me achou e me trouxe para morar aqui, com ela e sua mãe. Eu nunca conheci meus pais.

- Eu também não conheci meu pai. Pietra diz que ele não vale a pena.

Sem perceber, Sophia mordeu o interior das bochechas, perguntando-se para quem Pietra tinha aberto as pernas. O resultado fora maravilhoso – Joanna era maravilhosa – mas a ideia de Pietra deitando-se com qualquer motoqueiro por aí deixava Sophia desconfortável, sabe-se lá o porquê. Não que Sophia estivesse na posição de julgar: era engravidara de um drogado viciado. Pelo menos Pietra tivera a coragem de levar as consequências até o fim, e não interrompê-las com um golpe de cabide.

- Entenda que sua mãe e eu crescemos juntas aqui. Um dia, eu precisei ir embora, e Pietra ficou chateada. Eu também fiquei, e queria que ela soubesse da importância que tinha para mim. Então decidi preparar uma surpresa para ela. Tinha lido sobre Akai Ito na internet e fiz eu mesma os colares. Um para mim e um para Pietra.

Sophia fez uma pausa, olhando para o teto branco do refeitório do convento. Esperou que lágrimas turvassem sua visão, mas isso não aconteceu.

- Sua mãe é minha Akai Ito.

***

Sophia lembrava-se bem da noite em que dera o colar para Pietra. Uma noite limpa e quente de quarta-feira. Na época, Sophia via Pietra apenas duas vezes por mês, nas raras ocasiões em que conseguia uma folga de seu treinamento. Claro que Pietra não tinha ideia disso – até onde ela sabia, Sophia estava em Boston para estudar, vivendo de livros e apostilas, não aprendendo a atirar e a resgatar reféns de terroristas.

Pietra só viajou para Boston naquela semana para acompanhar a mãe. Miranda presidiria o XII Encontro dos Jovens Unidos em Cristo e, quando Pietra ligou para contar que estaria nas redondezas durante os próximos dias, hospedada em um hotel perto do centro, Sophia tentou parecer apenas animada, quando na verdade sentia-se eufórica e quase aos pulos enquanto escutava Pietra falar.

- Acha que a gente pode se ver? – perguntou Pietra.

- É claro.

- Vou entender se você estiver, sabe, ocupada demais com os estudos.

Sophia, que sentava-se na poltrona da sala de Chapman com o telefone apertado nos dedos de uma mão e segurando com a outra um pedaço de algodão vermelho contra as narinas que vertiam sangue – tinha acabado de quebrar o nariz durante o treino de boxe – respondeu:

- Não estou ocupada. A gente se vê quando?

- Chegamos na terça. E mamãe está mandando um beijo.

- Manda outro para ela. Tem um restaurante bem legal perto do hotel que você falou. Servem comida japonesa. Posso pedir para o Benny tentar reservar pra gente.

- Então tá. E você está bem? Sua voz está estranha.

Com uma careta, Sophia arrancou o algodão do nariz e jogou-o no lixo da sala.

- Só um pouco resfriada. Até semana que vem.

Chapman conseguiu a reserva para elas na quarta-feira e, durante os quatro dias que transcorreram entre o telefonema de Pietra e o encontro no restaurante, Sophia sentiu-se ansiosa, enjoada e com dificuldade de se concentrar nas coisas. Apanhou mais que o habitual no boxe, tomou um sermão de Yuri Watson quando não conseguiu balear o alvo uma única vez e matou três reféns por acidente durante uma simulação de resgate, além de deixar o agente vestido de sequestrador escapar.

- Meu Deus, garota, de que lado você está? – Watson perguntou naquele dia.

Na terça-feira ela fez os colares. Geralmente, Chapman a levava para casa de carro, mas às vezes ele precisava ficar até mais tarde na Sede e Sophia voltava para o apartamento a pé. Não que ela achasse ruim: gostava de andar, fones de ouvido no volume máximo bombardeando seus tímpanos e fumando um cigarro. Havia um terreno baldio a cerca de duas quadras de onde ficava o prédio de Chapman, um lugar cheio de trepadeiras, ervas-daninhas e carapaças de carros juntando ferrugem. Lá, ela catou os gravetos, medindo-os com os dedos e pensando em como ficariam quando entrelaçados por fitas vermelhas. Lera no sábado sobre Akai Ito e a ideia crescia em sua cabeça desde então, como todas as boas ideias crescem: naturalmente, ganhando força conforme o tempo passa.

Quando chegou ao apartamento, Sophia correu para seu quartinho sem sequer conversar direito com Livy e trancou-se lá dentro. Sentou-se na cama, com uma blusa vermelha em uma das mãos, uma tesoura na outra e os gravetos que catara espalhados ao seu lado, e começou a trabalhar.

Saiu duas horas depois. Àquela altura, os colares já estavam bem guardados no fundo de uma caixa de sapatos.

- O que tem para comer? – perguntou Sophia, passando por Livy que lia na sala.

- Fiz panquecas, mas você vai ter que esquentar no micro-ondas, porque elas já esfriaram. O que é que você fazia trancada naquele quarto?

- Nada demais – Sophia colocou duas panquecas no prato e encostou-se na bancada enquanto o micro-ondas trabalhava. – Uma surpresa para Pietra.

- Huuum... – Lívia baixou o livro. – Tudo certo para amanhã?

- Tudo – Sophia observou o prato girar no interior do micro-ondas, enquanto o aparelho produzia aquele apito profundo e constante. – Tudo certíssimo. Tem refrigerante?

Foi a primeira – e, até onde Sophia lembrava, também a única – vez que ela usou maquiagem. A reserva era para as 20h, de modo que Sophia chegou em casa duas horas mais cedo, com o punho doendo por causa de uma torção e fedendo a suor azedo de tanto se arrastar por campos de arame farpado, e correu para o chuveiro. Foi do banheiro para o quarto, mirou-se no espelho e abriu em cima da cama o kit de maquiagem de Livy. Todos aqueles recipientes, brilhos, pós, pincéis, batons, lápis de sombra e pinças pareceram a Sophia objetos saídos de outro mundo. Coloque uma pistola desmontada em frente à garota e ela encaixa todas as peças para você em segundos e de olhos vendados; coloque um kit de maquiagem e ela trava como um relógio com a engrenagem emperrada.

Sophia olhou para aquele monte incompreensível de tralhas que prometia deixar as mulheres irresistíveis, e a única coisa irresistível que sentiu foi uma vontade intensa de chorar. Enrolada na toalha, ela saiu do quarto e chamou:

- Livy?

Livy surgiu no corredor, vinda da sala, onde assistia à televisão com Chapman. Quando viu as lágrimas no rosto de Sophia, ela correu até a garota.

- O que foi? – segurou os ombros magros de Sophia e olhou-a como se buscasse um ferimento. Devia mesmo estar fazendo isso. Por que outro motivo Sophia choraria?

Sentindo-se a maior idiota do mundo, Sophia disse:

- Não sei como usar aquela porcaria de kit de maquiagem – parou e fungou. – Pode me ajudar?

Lívia respirou fundo e seus ombros relaxaram.

- É claro, meu bem – disse Livy. – Vamos lá, você vai ser a garota mais bonita daquele restaurante.

Livy fez mais do que apenas passar a maquiagem em Sophia. Buscou para ela o vestido que usara no baile de quinze anos e um par de brincos que ganhara da avó, quando se formara em Direito. Sophia tentou recusar ambas as coisas, mas Livy insistiu e, no final, Sophia deu o braço a torcer. Sentou-se na cama e deixou que Livy a vestisse, arrumasse seu cabelo e enchesse seu rosto com todos aqueles produtos: batom, lápis, delineadores e Deus sabe o que mais.

- Pronto – Lívia terminou de passar a sombra no olho de Sophia e afastou-se. – Terminamos, e ainda com quarenta minutos de sobra.

- Tem certeza? – Sophia tentava se olhar no espelho do armário, mas Lívia lhe tampava a visão. – Como eu estou?

- Veja você mesma.

Livy deu um passo de lado e a garota que Sophia viu refletida no espelho era uma estranha. Uma linda estranha. O vestido vermelho que Lívia lhe emprestara caía com perfeição em seu corpo magrelo, expondo seus ombros ossudos, as saboneteiras proeminentes e disfarçando a falta de peitos. Ao olhar-se usando aquilo, Sophia pensou: estou vestida com uma pétala de rosa. Em suas orelhas, os brincos brilhavam como duas lágrimas de cristal, pequenos e delicados. Como Sophia era pequena e delicada, pelo menos à primeira vista. A maior mágica, no entanto, acontecera em seu rosto: o batom cor de sangue em seus lábios e a pintura escura em torno de suas pálpebras, que destacava o verde já nada discreto de seus olhos, a transformavam praticamente em outra pessoa. Em uma mulher.

- E então? O que achou? – perguntou Livy.

Sophia deu uma volta em frente ao espelho, tropeçando na aba do vestido vermelho – jamais usara algo que não fosse um short ou uma calça jeans – e balançou a cabeça. Não porque não gostasse do que via, mas sim porque não acreditava.

- Obrigada, Livy – foi tudo o que conseguiu dizer. – Nem parece comigo.

- É você – disse Livy. – Você é linda por natureza, querida, sempre foi e qualquer um pode dizer isso. Mas não há nada de errado em um vestido e um batom vermelho de vez em quando. Na verdade, nunca há nada de errado em um vestido e um batom vermelho. E se alguém tentar convencer você do contrário, mande essa pessoa enfiar a opinião dela onde o sol não brilha.

Sophia riu e abraçou Lívia.

- Vou falar para o Benny levar você – disse Lívia. – Não se esqueça da surpresa que você disse que preparou. Está com dinheiro?

- Estou – Sophia voltara a se olhar no espelho. Desejou ter um cabelo grande e cascateante, como aquelas modelos de televisão. A vaidade foi tão estranha a Sophia que ela se perguntou se Lívia não tinha usado um daqueles produtos para mudar também o seu modo de pensar.

Depois de pegar o pequeno embrulho dentro da caixa de sapatos, Sophia saiu tropeçando para a sala, os pés calçados com saltos que também pertenciam a Lívia. Quando Chapman a viu, ele levantou-se do sofá, girando a chave do carro na mão, mas sem fazer qualquer movimento em direção à porta. Olhou Sophia por alguns segundos antes de dizer:

- Você está linda, garota.

Sophia sorriu e baixou a cabeça. Não era acostumada com elogios, e era menos acostumada ainda a concordar com eles.

- Obrigada.

- Pare de ficar babando em cima dela, Benny, e leve-a logo – disse Lívia. – A garota tem um encontro.

Benny fez um muxoxo, ficando vermelho como o vestido que Sophia usava. Parecia um pai prestes a levar sua filha ao baile de debutantes. O que, em termos de emoções equivalentes, não estava muito longe da verdade.

Durante o trajeto até o restaurante japonês, Sophia sentia como se seus intestinos fossem os trilhos de uma montanha russa em pleno funcionamento. Nunca ficara nervosa para ver Pietra antes, mas havia algo de diferente naquela noite. Sophia não conseguia identificar exatamente o quê, mas estava ali, deixando-a tonta. Ela suava frio e apertava o pequeno embrulho em suas mãos com tanta força que o papel de presente já tinha se amassado todo. Talvez fosse o fato de que, pela primeira vez, Sophia e Pietra teriam um encontro de verdade. A garota precisava ficar se politizando o tempo todo, lembrando a si mesma de não morder o lábio inferior para não estragar o batom.

Quando Chapman parou em frente ao restaurante, em uma rua iluminada e movimentada do centro de Boston, Sophia realmente cogitou pedir a ajuda dele para sair do carro. Não porque temia tropeçar no vestido ou quebrar o salto, mas porque perdera totalmente a confiança nas próprias pernas. Elas pareciam castelos de cartas abaixo de sua cintura, trêmulas e prestes a desabar diante do mais leve vento.

Chapman teve a misericórdia de perguntar:

- Você está bem?

Sophia suspirou fundo, olhando para a placa luminosa acima da porta vermelha do restaurante e lendo Nukoshai Sushi & Bar sem realmente entender o significado das palavras.

- Não – disse Sophia. – Estou nervosa pra cacete, e não sei o porquê. Nunca fiquei assim antes.

Um carro passou buzinando ao lado deles e Sophia se sobressaltou. Viu um táxi estacionando no meio-fio, as portas amarelas abrindo para vomitar um casal elegante vestido com roupas de gala, e o aperto em seu estômago aumentou.

- Acho que vou para casa – disse Sophia. – Me leva de volta, Benny. Vou ligar para Pietra e dizer que fiquei doente. Virose, sei lá. Aí...

- Não vou levar você de volta – disse Chapman. Ele deu uma olhada no relógio de pulso. – Você tem dez minutos para as 20h, ou a reserva vai deixar de valer. Então desça logo desse carro.

- Mas... – Sophia engoliu em seco. – E se eu fizer besteira? Se eu der uma de Sophia?

Devagar, Chapman estendeu a mão e segurou a dela. Sophia virou para ele o rosto, os olhos maiores por causa da maquiagem negra que os envolvia, e esperou em silêncio enquanto Chapman dizia:

- Você não vai fazer besteira. O que você vai fazer é entrar naquele restaurante, de queixo erguido e nariz empinado, sentar-se à mesa que reservei e esperar Pietra chegar. Depois, vai aproveitar a noite. Já vi você derrubando homens com o dobro do seu tamanho e descarregando um pente inteiro no centro do alvo. Acho que você consegue sair desse carro e encarar um encontro, Sophia.

Ela respirou fundo, fechou os olhos e abriu a porta. Quando colocou o pé na calçada, sua perna não cedeu.

- Tá bem – ela disse, olhando para a entrada do restaurante. – Deseje-me sorte.

- Você não precisa de sorte. E Sophia? – ela olhou-o. – Você está mesmo linda.

Isso ajudou a inflar sua confiança e acalmou um pouco seu estômago. A montanha russa em suas entranhas deu uma trégua com aquele sobe e desce desgovernado, e Sophia conseguiu entrar no restaurante sem vomitar de nervoso ou cair no meio da calçada, a despeito dos saltos que castigavam seus tornozelos e queimavam os músculos de suas panturrilhas. Um sujeito alto, vestido com um terno de gravata borboleta e ostentando um bigode engraçado e com curvas para cima nas pontas, recebeu-a, caçou o nome de Sophia no computador e apontou para a mesa dela.

Sophia agradeceu e caminhou pelo restaurante. Era um lugar bonito e um tanto escuro, principalmente porque caixas de um tecido translúcido e vermelho, cheio de símbolos japoneses, envolviam as lâmpadas do teto. A maioria das mesas era redonda, aberta no centro para deixar passar uma árvore oriental (Sophia achou que fossem cerejeiras), mas havia algumas poucas reservadas para casais. Essas eram simples e quadradas, com duas cadeiras uma de frente para a outra. O garçom puxou um dos assentos e Sophia sentou-se de frente para a porta. Queria ver o exato momento em que Pietra entrasse.

- Posso trazer alguma coisa para a senhorita? – perguntou o garçom oriental, com um sorrisinho que deixava seus olhos puxados ainda menores. – Água, talvez, enquanto sua companhia não chega.

- Água seria ótimo – disse Sophia. – Obrigada.

O garçom pediu licença e afastou-se, e Sophia colocou em cima da mesa o embrulho com os colares. O relógio na parede dizia que ainda faltavam cinco minutos para as 20h, então Pietra devia estar a caminho. Quando trouxeram-lhe a água, Sophia bebeu tudo com um só gole e pediu outra, fazendo malabarismo para não manchar seu batom vermelho. Meu Deus, como as mulheres conseguiam usar aquela coisa nos lábios todos os dias?

Pietra chegou ao restaurante japonês às 20h 15min. Sophia sabia a hora exata porque não conseguia parar de olhar para o relógio, perguntando-se a cada minuto que passava onde estaria Pietra, se ela tinha desistido de aparecer ou se algum acidente acontecera. Então ela entrou pela porta, deslumbrante em um vestido branco e com uma tiara nos cachos, e as horas perderam qualquer significado para Sophia. Na verdade, ela não se importaria nem um pouco se o tempo parasse bem ali. Assim, poderia olhar Pietra para sempre.

Ela era o tipo de pessoa que silenciava o mundo. O mundo de Sophia, pelo menos. Sempre fora assim, e não podia ser diferente naquela noite. Quando Pietra entrou pela porta, o restaurante, até então cheio de conversas animadas e gargalhadas, calou-se completamente. Era como se alguém tivesse apertado o botão de colocar o universo no modo mudo. Pietra conversou baixinho com o recepcionista de bigode engraçado, e ele apontou o lugar onde Sophia se sentava.

Sophia ergueu uma mão e acenou. Pietra fez o mesmo e sorriu. Então o mundo voltou ao normal, enchendo-se outra vez com todos aqueles sons de conversa que, na maior parte do tempo, Sophia achava fúteis e desnecessárias. Pietra veio até ela, desviando das pessoas pelo caminho, segurando contra o ventre uma pequena bolsa de colo negra. O friozinho no estômago de Sophia persistia, mas agora era um friozinho gostoso. Aquele tipo de antecipação ansiosa que as crianças sentem antes de chegar em casa na noite de Natal e abrir os presentes deixados pelo Papai Noel.

Deus sabe por que, Sophia levantou-se da cadeira quando Pietra se aproximou, quase derrubando o copo d'água no vestido.

- Oi – disse Sophia.

Pietra estancou enquanto o garçom puxava a cadeira para ela. Seus olhos amendoados correram pelo rosto de Sophia, depois por seu corpo e subiram outra vez.

- O que você... – Pietra disse. – O que é isso que você está vestindo? E o que é isso na sua cara?

- O quê? – Sophia tocou a bochecha.

- Sophia, você está... Isso é maquiagem?

- Ah, é – Sophia sentiu algo dentro dela murchar. – Eu pedi para Livy me arrumar. Quer dizer, mais ou menos. É que havia tanta coisa para passar no rosto que eu fiquei meio perdida, sabe, aí pedi para ela... – percebeu que as palavras se enrolavam em sua língua e parou de falar. – Esquece. Foi uma ideia ridícula, eu sei. Desculpe.

Ela sentou-se de novo na cadeira, pegou um guardanapo e o levava à boca para tirar o batom quando a mão de Pietra fechou-se na sua. Sophia ergueu os olhos e viu que Pietra sorria.

- Você está linda – disse Pietra. E tirou ela mesma um pouco do batom de Sophia ao beijar-lhe de leve os lábios. – Esse vestido também é de Lívia?

- É – Sophia disse, enquanto Pietra se sentava à sua frente. – Os brincos também. Tudo é dela. Acha que ficou exagerado?

- Nem um pouco. Se eu soubesse que você iria se arrumar toda, eu teria colocado uma roupa melhor.

- Mas você está ótima assim.

Pietra olhou para o vestido branco que usava. Ao contrário de Sophia, ela sempre fora mais do que só um pouco vaidosa.

- Não sei – disse Pietra. – Era o único vestido que eu tinha. Mamãe não me deu tempo para passar no shopping antes de me arrastar para Boston. Aliás, ela te mandou um beijo.

- Ela está gostando daqui?

- Está de brincadeira? Mamãe está amando. Ainda mais presidindo aquela reunião idiota dos jovens com Cristo.

- Algum problema com os jovens com Cristo? – disse Sophia. – Quer dizer, além de todos eles compartilharem o mesmo amigo imaginário?

- Sophia.

- Acha que é algum tipo de alucinação coletiva? Talvez eles coloquem alguma coisa no vinho da Comunhão. Já pensei nisso. Assim todo mundo vê o...

- Ai, você é terrível – Pietra estendeu a mão e segurou a dela, depois franziu a testa. – Não tenho nenhum problema com os jovens, nem com minha mãe presidindo a reunião. Mas, não sei, não me sinto mais tão à vontade morando naquele convento. Acho que preciso de novos ares. Igual a você. Queria ter sua coragem, conseguir largar tudo para trás e me aventurar em uma cidade como Boston. Como andam os estudos?

Então Sophia começou a mentir. Ensaiara aquilo vezes sem conta e sabia como prosseguir. Contou que tudo corria bem, que estava se adaptando aos estudos e à rotina. Saia-se bem em várias matérias – principalmente em Língua Inglesa. Seu professor de Biologia era um homenzinho careca e baixinho que lembrava um pinguim, e a mulher que ensinava Química possuía um par de peitos de fazer cair os queixos.

- Ai! – Sophia fez quando Pietra apertou-lhe os dedos.

- Fique de olho nos meus peitos, não nos da sua professora de Química.

Matemática era uma merda. Física então, nem se fale, embora Sophia conseguisse se sair bem em ambas as coisas (não era de todo mentira, ela realmente levava jeito com números. Descobrira isso durante as aulas particulares). E aquele roxo em seu ombro, ou o inchaço no pulso? Apenas lembranças das Aulas de Educação Física.

- Educação Física?

- É – disse Sophia. – Colocam a gente para escalar paredões, correr por pneus, subir em cordas, esse tipo de coisa.

- Meu Deus, você entrou em uma escola de ninjas?

- Não. Na verdade, estou treinando para virar uma agente secreta do Governo. A mais jovem da história, se quer saber.

O sorriso de Pietra congelou, e Sophia encarou-a com os cantos dos lábios ligeiramente levantados. Pietra olhou-a por quase um minuto sem dizer nada, então jogou a cabeça para trás e começou a gargalhar, embora fosse um riso meio histérico.

- Claro, Sophia. Como eu não desconfiei disso?

Sophia sorriu e encostou-se na cadeira.

- Vamos pedir alguma coisa para comer – ela disse. – Tô faminta.

O garçom trouxe-lhes o cardápio, e elas pediram um prato que consistia em vários petiscos e iscas com nomes bizarros que terminavam em "kis". Era basicamente um monte de salmão grelhado e peixe cru enrolado em arroz com molho escuro e forte para acompanhar. Sophia nunca foi muito fã de comida japonesa – para ela, nada se igualava a um x-burguer com bacon e fritas cheias de ketchup – mas comeu mesmo assim. Teve problema com os hashis, no entanto.

- Mas que merda – ela soltou um pouco alto demais quando o sashimi escapou daqueles malditos pauzinhos pela terceira vez. – Qual é o sentido de comer com isso?

E Pietra, que manuseava os hashis com maestria, disse:

- Não é tão difícil. Mas se quiser, peça um elástico para o garçom. Fica mais fácil.

- Elástico? – Sophia largou os hashis e chamou o garçom. – Pode me trazer talheres, por favor? Garfo e faca.

O garçom deu um sorrisinho amarelo e se retirou.

- É meio ofensivo comer comida japonesa com garfo e faca, sabia? – disse Pietra.

- É mesmo? – Sophia pegou um bolinho de arroz com os dedos e enfiou-o na boca. – E assim, que tal?

Pietra suspirou e balançou a cabeça. Quinze minutos depois, as garotas já tinham esvaziado a porção e estavam de mãos dadas, olhando os outros clientes papearem e beberem de copinhos pretos. As lâmpadas cobertas por aqueles quadrados de tecido vermelho lançavam uma luz rubra em tudo, criando sombras e alongando silhuetas. Sophia sentia-se sentada dentro de um pôr-do-sol.

- Vai me dizer o que é isso? – disse Pietra.

- Hum? – Sophia virou o rosto para ela. – Desculpe, que foi?

- Isso aí – Pietra apontou para o embrulho em cima da mesa. – Você ficou remexendo nesse presente a noite toda, e aposto que nem notou. É pra mim?

Sophia soltou a mão dela e pegou o presente. O embrulho era verde, cheio de ursinhos de pelúcia com caras fofinhas e corações na barriga. Agora que e a hora chegara, Sophia sentia-se meio envergonhada.

- É pra você, sim – ela disse. – Não é muito, só uma coisa boba que eu fiz.

- Eu decido se é bobo ou não – Pietra tomou o presente dos dedos dela e pesou-o na mão com um sorrisinho no rosto.

Sophia entrelaçou as mãos no colo e esperou com o coração disparado enquanto Pietra desembrulhava aquele papel verde com os ursinhos idiotas. Quando terminou de abrir o presente, ela ergueu até a altura dos olhos os dois colares. Eles caíram, ficando pendurados nos dedos dela pelos cordões, os triângulos de gravetos envolvidos por fitas vermelhas girando preguiçosamente acima dos pratos vazios.

- É Akai Ito – disse Sophia, enquanto Pietra acompanhava com os olhos o rodopio lento dos colares. – É uma lenda chinesa que eu achei na internet. Dizem que, quando duas pessoas estão predestinadas a serem almas gêmeas uma da outra, os deuses as unem por um fio vermelho. Para que elas jamais se separem de verdade, não importa a distância – ela engoliu em seco, bebeu um gole d'água e continuou: – Você é minha Akai Ito, Pietra.

Os olhos amendoados de Pietra dardejaram dos triângulos com fitas vermelhas para o rosto de Sophia. Então ela levantou-se, puxando a cadeira sem se importar em fazer barulho e chamar a atenção de todos os clientes ao redor, e sentou-se ao lado dela. Pegou um dos colares e passou pela cabeça de Sophia. Depois, colocou o outro na mão da garota.

- Ponha em mim.

Ela baixou a cabeça, como uma rainha que espera para ser coroada, e Sophia passou o cordão pelos cachos dela.

- Você fez mesmo isso? – ela perguntou, segurando o colar.

- Fiz – disse Sophia. – Gostou?

- Muito. Nunca mais vou tirar.

Por baixo da mesa, Pietra colocou a mão na coxa esquerda de Sophia e subiu até aquele ponto que, ela sabia, fazia Sophia delirar. Sophia arfou e segurou a mão dela ali. Beijaram-se. Por longos e preciosos minutos, beijaram-se, e ainda assim pareceu ser pouco. O tempo que você tem com as pessoas que ama nunca é o suficiente.

Mesmo assim, se Sophia soubesse que aquela era a última vez que Pietra e ela se beijavam, teria aproveitado muito mais.

***

- Sua mãe é minha Akai Ito – repetiu Sophia. – Era. Agora eu já não sei.

Joanna a encarava com aqueles olhos iguais aos da mãe. Apertava a tartaruga de pelúcia e balançava de leve o potinho com a lagarta. Parecia prestes a fazer algum comentário, mas Miranda aproximou-se e colocou a mão no ombro da neta.

- Parece que vocês estão se dando bem.

- Sophia vai me ajudar a soltar a lagarta – disse Joanna, pegando a mão de Sophia. – Lá no lago. Né, Sophia?

- Não invente moda, Joanna. Sophia está com pressa.

- Mas a gente vai rápido.

Joanna virou o rosto para Sophia, implorando por apoio, e Sophia sorriu para Miranda.

- Não tem problema, Miranda – disse Sophia. – Vou lá com ela, não vamos demorar.

Miranda suspirou fundo, a boca crispada em uma careta irritada, e disse:

- Tudo bem. Mas levem um guarda-chuva.

Mas o guarda-chuva vermelho de Miranda se mostrou desnecessário. Quando saíram do convento para o lago atrás da igreja, a chuva já tinha passado, embora o céu continuasse cinzento e triste. De mãos dadas, Sophia e Joanna caminharam pela grama molhada, debaixo das árvores que pingavam gotas geladas. Sophia não se lembrava da última vez que estivera ali, mas sempre visitava o lugar em seus sonhos, geralmente ao lado de Pietra, e seu subconsciente não errara muito nas projeções: o tronco caído perto da margem do lago, o pedalinho em forma de cisne, as mesinhas de piquenique, agora dobradas e guardadas, tudo era igual.

- Vamos soltá-la ali – Sophia apontou para o lago. – Na margem.

Joanna concordou com a cabeça, o semblante infantil concentrado e sério como o de um adulto em uma importante reunião de negócios. As duas sentaram-se lado a lado na grama molhada, no mesmo lugar que um dia Sophia sentara-se com Pietra para brincar de atirar pedras no lago, e Joanna abriu o potinho, dando palmadinhas nele para expulsar a lagarta. Ela saiu rastejando, impulsionando devagar seu corpo mole e colorido para fora de sua prisão e caindo na grama. Contorceu-se por alguns instantes, depois voltou a se arrastar.

- Elas viram borboletas – disse Joanna.

Sophia não disse nada. Ficou olhando a lagarta sumir na grama, depois voltou sua atenção para o lago. Estava mais cheio que o normal por causa da chuva, e o pedalinho de cisne balançava para lá e para cá em suas águas agitadas.

- Você vai ficar para ver minha mãe? – perguntou Joanna. – Não consegui falar com ela ainda, mas ela vai vir me pegar hoje. Aí vocês podem conversar.

Sophia suspirou fundo e passou um braço pelos ombrinhos de Joanna.

- Não, querida. Não posso ficar.

- E visitar a gente? Moramos em um acampamento de trailers que fica logo na saída da cidade. Você pode passar lá depois.

Sophia pensou no acampamento de trailers que vira ao chegar na segunda-feira, tentou imaginar Pietra vivendo ali e não conseguiu.

- Acho que sua mãe não quer me ver, Joanna.

- Mas você quer ver ela?

Boa pergunta.

- Quero – disse Sophia. – Só que não hoje. Tenho um homem mau para pegar, e meus amigos vão precisar da minha ajuda.

- O mesmo homem mau que pegou a menininha loira?

Sophia virou o rosto para Joanna.

- Que menininha loira?

Joanna apertou Lancelot contra o queixo e baixou os olhos amendoados para os pés calçados com meias rosa-choque.

- A menininha loira que falou comigo – disse Joanna. – Eu estava aqui no lago ontem à tarde, brincando sozinha com Lancelot depois que Pietra foi embora, e a menininha loira apareceu. Foi estranho porque ela tinha um cheiro engraçado. Um cheiro doce. E parecia não ser de verdade. Ela sentou do meu lado, chorando, e falou que estava com saudades da mãe dela.

Sophia escutava tudo boquiaberta. Joanna mordeu a boquinha e continuou a falar:

- Aí ela disse outra coisa.

- O quê, Joanna? O que ela disse?

- Disse que o homem mau que a pegou ia pegar Pietra também – contou Joanna. – Depois eu me distraí um pouco, porque vovó me chamou, e, quando olhei, a menininha loira tinha sumido.

Sophia colocou-se de pé, e uma sensação semelhante à que experimentara na noite que dera o colar para Pietra tomou conta de seu estômago: aquela montanha russa sem controle subindo e descendo, chocando-se contra as paredes de seu intestino.

- Você contou para sua avó? – perguntou Sophia. – Que o homem mau está indo pegar Pietra?

Joanna balançou a cabeça. Projetara o lábio inferior para frente e lágrimas brilhavam em seus olhos.

- Não – ela disse. – Vovó não ia acreditar. Ela ia achar que eu estava inventando coisas. Que eu sou uma garota má.

- E você não conseguiu falar com sua mãe hoje?

- Ela não atende ao telefone – disse Joanna, e começou a chorar em silêncio, enterrando o rosto na tartaruga de pelúcia.

Merda. Sophia agachou-se e pegou Joanna no colo, e a criança envolveu seu pescoço com os bracinhos, apertando com força.

- Não se preocupe – disse Sophia, balançando a menina para cima e para baixo à margem do lago. – Tenho certeza de que sua mãe está bem. Vamos...

E calou-se, porque escutou algo tão estranho naquele lugar e naquela manhã chuvosa que, por um segundo, até mesmo a preocupação com Pietra desapareceu de sua mente. Parecia o som de um liquidificador ligado, um barulho que ela ouvira certa vez em uma floresta escura e cheia de monstros, enquanto se esvaía em sangue nos braços de Chapman. Ergueu o rosto para o céu cinzento, atrás da fonte daquele trum-trum-trum abafado, e viu o ponto negro que se aproximava a toda velocidade, girando suas hélices.

Continue Reading

You'll Also Like

19K 1.4K 13
No dia do casamento com seu amado e prometido guerreiro Dasan, a princesa Aiyana vê seu mundo desmoronar com a invasão de homens brancos e bárbaros...
922K 52.6K 37
Meu nome é Emma, tenho 18 anos, e apesar de já ter idade para ser adulta, tenho um pai super protetor que não me deixa crescer, e como se não bastass...
762K 6.3K 6
(Primeiros Capítulos para degustação) Sinopse: Erick, o beta da alcateia dos lobos, era o mediador e braço direito do alfa. Belíssimo e bem-humorado...
61.9K 1.9K 34
• Frases Tumblr em Português, Inglês e Francês. Para pôr no status de qualquer rede social. • Seja Tumblr, venha conhecer todas essa frases! • Com tr...