A Voz da Escuridão.

By guiguiroseira

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[Obra registrada na Biblioteca Nacional.] Um garoto de 8 anos é sequestrado e morto na pequena cidade de... More

A Voz da Escuridão.
Ato 1 (1988).
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Ato 2 (2009 - 2014).
Parte I
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Parte II
SÁBADO
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DOMINGO
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5 (i)
5 (ii)
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SEGUNDA-FEIRA
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AVISO: Comemoração.
TERÇA-FEIRA
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QUARTA-FEIRA NEGRA (I)
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PARTE III
Quarta-Feira Negra (II)
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PARTE FINAL
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EPÍLOGO
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FINAL
Nota do Autor.
Comemoração Concurso StoryTeller.
A VIAJANTE. LANÇAMENTO: 12 DE MARÇO.

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By guiguiroseira

Sophia já tivera muitos sonhos ruins na vida, mas aquele ali com certeza era um forte concorrente ao prêmio de pior de todos.

Soube que estava sonhando assim que abriu os olhos e viu o wendigo parado ao seu lado. O enorme animal debruçava-se sobre ela no sofá, suas galhadas tão altas quanto torres quase tocando o teto. Aqueles olhos laranjas brilhavam como dois sóis alienígenas na escuridão do quarto, e a besta tinha a cabeça um pouco inclinada para a direita, o que lhe dava um ar de curiosidade. Parecia perguntar "quem é você?" para Sophia. A garota estendeu a mão e lhe acariciou o focinho, e o wendigo lambeu os dedos dela com uma língua vermelha e áspera feito lixa. Depois afastou-se, seus cascos reverberando como pequenos abalos sísmicos toda vez que tocavam o chão.

Sophia sentou-se no sofá, achando que o sonho terminaria ali e ela logo acordaria, mas não foi isso o que aconteceu. Algo se fechou em seu punho direito. Algo frio e molhado, que apertou. Quando ela olhou para ver o que era, deu de cara com Danny Straub. O garoto morto a encarava com coisas que não eram olhos, e sim dois poços escuros e vazios. Sua pele não passava de um papel cinzento e quebradiço esticado sobre os ossos, e seus cabelos negros, antes tão brilhantes, tinham caído, sobrando apenas alguns tufos aqui e ali no crânio coberto de feridas abertas. De sua testa, brotavam dois chifres de veado. Ele escancarou para Sophia uma boca de lábios carcomidos e dentes faltando, e um cheiro de podridão atingiu-a em cheio no rosto.

Ela encheu os pulmões para gritar, mas então outra mão fechou-se em seu outro braço, e Sophia soube o que encontraria antes mesmo de se virar. Lá estava Ashley Morgan, tão cinzenta quanto Danny Straub, o vestidinho branco todo rasgado e farfalhando com um som de folhas secas se partindo, embora não houvesse vento algum. Ao contrário do garoto morto, ela ainda tinha cabelos, mas o dourado desaparecera: os fios estavam brancos e sem vida. Uma venda encardida com manchas velhas de sangue cobria os olhos de Ashley, deixando-a cega. De suas costas, brotavam dois esqueletos de asas, com algumas plumas castigadas penduradas.

- Vem com a gente – disse Ashley Morgan.

- Vem com a gente para o Infinito – disse Danny Straub.

- Vem com a gente para as prateleiras.

Sophia tentou levantar do sofá, mas as crianças mortas a puxaram de volta e depois a jogaram no chão. Ela caiu de joelhos, como Ashley Morgan no altar, gritando, tentando acordar, mas o pesadelo continuava e continuava. Então, ocorreu-lhe um pensamento assustador o bastante para acabar com a pouca sanidade que ela ainda conservava e enlouquecê-la de vez:

Isso não é um sonho.

- Chapman! – ela gritou. E depois começou apenas a berrar.

A porta do quarto abriu e um vento frio entrou. Sophia ouviu o barulho de passos se aproximando de onde ela estava caída de joelhos, gritando e tentando se livrar das crianças mortas que seguravam seus braços. O som de alguém chegando perto ficou mais alto. Dava até para escutar a respiração daquela coisa: um som baixo e gorgolejante de um rio correndo por entre pedras. O que quer que aquilo fosse, caminhou até ficar de frente para Sophia e parou. Ela manteve os olhos fechados.

Chega. Por favor, me deixa acordar. Vou enlouquecer. Se eu não acordar, eu vou ficar louca.

Só que ela não acordou, e a coisa à sua frente colocou um dedo que parecia um pedaço de gelo sob seu maxilar e obrigou-a a erguer o rosto. Sophia viu-se encarando Yuri Watson. Ele tinha sangue na boca, nos dentes e na camisa, e o som de água batendo em pedrinhas vinha de seu peito baleado. Era o barulho de seu pulmão destruído, mas ainda funcionando. Nas mãos, Watson trazia um fio de arame farpado.

- Yuri... – Sophia chorou. – Por favor, sou eu, sou eu.

Ela ficou repetindo "sou eu, sou eu", mesmo quando Watson contornou-a e parou atrás dela. A garota gritou e tentou livrar-se outra vez de Ashley e Danny; chegou a levantar-se um pouco antes das crianças a puxarem de volta para o chão com uma força que não era desse mundo. Bracinhos de oito e sete anos não deveriam ser fortes assim. Sophia caiu de joelhos novamente, e então Watson passou o fio pela cabeça dela, e o arame farpado mordeu seu pescoço.

- Yuri... Não faça isso. Sou eu. É a Sophia.

A única resposta que ela recebeu de Watson foi um som horrível de ar escapando de uma bexiga furada: vrrruuuuusshhh. Watson respirou e Sophia sentiu gotas quentes de sangue caindo em sua nuca, expiladas por aqueles pulmões destruídos.

- A gente está esperando para brincar com você – disse Danny Straub.

- Tem um lugar especial à sua espera nas estantes – disse Ashley Morgan.

Vruuuuuuusshh, fez Yuri Watson.

Depois, ele colocou o pé no meio da coluna de Sophia e empurrou-a para frente, ao mesmo tempo em que puxava o fio de arame farpado para trás. O grito da garota perdeu-se em um som engasgado e os dentes do arame rasgaram seu pescoço. Sangue jorrou e encharcou a frente de sua camiseta.

Quando Ashley Morgan e Danny Straub finalmente soltaram seus braços, Sophia já estava morta, decapitada quase até a espinha por um fio de arame enferrujado. 

***

Não acordou gritando, suando frio, tremendo ou caindo do sofá. Sua volta à realidade foi suave, como se para compensar a brutalidade do sonho. A garota simplesmente abriu os olhos e pronto. A única coisa que seguiu Sophia do pesadelo ao mundo real foi o choro. Lágrimas escorriam e entravam quentes nos buracos de seus ouvidos. Fora isso, qualquer um diria que ela dormiu a tarde inteira como um bebê.

Ficou feliz por não ter gritado. Escutava o som de dedos esmurrando teclas, o que só podia significar que Chapman estava no quarto. Se ela berrasse, ele com certeza ficaria todo preocupado. Ela pensou que Chapman tinha ido ver Jéssica Shepard e, quando sua mente sonolenta registrou o fato de o sol ter se posto, Sophia tomou um susto.

Sentou-se no sofá e esfregou o rosto. Sua mão colidiu contra a pomada seca na pele queimada da face esquerda e a garota soltou um esgar de dor. O som fez Chapman, sentado na cama, erguer o rosto da tela do notebook que ele colocara sobre as pernas esticadas.

- Oi – ele disse. – Sente-se melhor?

- Um pouco – era mentira. Na verdade, ela estava pior. Resquícios do pesadelo flutuavam à sua volta, e Sophia ainda podia sentir as mãos geladas e molhadas de Danny Straub e Ashley Morgan fechadas em seus braços. Olhou para os pulsos, aliviada por não encontrar nenhuma marca de dedo ali. – Que horas são?

Chapman consultou o relógio na tela do notebook.

- Oito da noite.

- Eu dormi o dia inteiro?

- Inteirinho.

- E você deixou? Porra, Chapman. Por que não me acordou?

Com um suspiro que indicava mais cansaço do que irritação, Chapman tirou os óculos de leitura e esfregou o rosto. Se Sophia dormira demais, então ele parecia ter dormido de menos. Havia dois bolsões escuros debaixo de seus olhos, e Sophia podia jurar que o cabelo de Chapman estava mais grisalho do que nunca.

- Não acordei você porque, antes de dormir, você estava tão ruim que sequer conseguia falar – ele disse, encarando-a. – E não faça essa cara, porque deixar você dormir funcionou. Se não percebeu, agora você está tagarelando sem parar.

Sophia congelou no meio do movimento de levantar-se do sofá, a boca boquiaberta e os olhos arregalados como quem depara com alguma coisa na qual não pode acreditar. Aquele lago cheio de letras estranhas dentro de sua cabeça tinha parado de rodopiar, e agora ela conseguia ver com clareza que B+A formava "BA" e não "RÁ". Mais do que isso: as cartas esparramadas no piso de sua mente haviam sido postas em ordem. Ela estava pronta para uma partida de pôquer. All-in, baby.

- Você não tinha notado, né? – disse Chapman, e Sophia fez que não com a cabeça. – O que aconteceu, Sophia? Por que você estava naquele estado? Parecia... – Chapman calou-se e engoliu a palavra, mas Sophia vomitou-a por ele:

- Louca? – ela disse. – Lelé da cuca?

- Eu não disse isso.

- Mas ia dizer. E tudo bem, porque é verdade. Eu me sentia sem juízo.

E ainda se sentia. Um pouco, pelo menos. As palavras estavam outra vez ao seu alcance, e seus pensamentos e memórias não eram mais cartas espalhadas pelo chão, mas algo continuava errado com sua cabeça. Era como se a máquina lá dentro, responsável por fazer tudo funcionar corretamente, tivesse emperrado ou começado a trabalhar com a metade da capacidade. Seus neurônios pareciam ter entrado em greve. Isso era o mais próximo que Sophia conseguia chegar de descrever aquela estranha sensação de letargia que acometia seu cérebro.

Ela foi até a cama e subiu no colchão, sentando-se de frente para Chapman. Ele fechou o notebook e escutou enquanto Sophia contava o que acontecera quando ela tentara entrar na mente do homem da máscara negra.

- Era como uma muralha, sabe? – ela disse. – Bati nela em cheio.

Depois que ela terminou de falar, Chapman cruzou os braços e encarou-a.

- Talvez você devesse ir a um neurologista.

Sophia deu um risinho de desdém diante da sugestão.

- Nenhum médico pode me ajudar, Chapman – ela balançou a cabeça. – Não. Aquela coisa que mora na cabeça dele, seja lá o que for, fodeu comigo aqui – Sophia bateu com o dedo indicador na têmpora. – Com a minha mente. Não é algo que vá aparecer em um exame.

Ela parou de falar, baixou os olhos para as mãos – a esquerda coberta pela pomada para queimaduras – e tornou a encarar Chapman.

- Você tem que cuidar de mim, está bem? – ela disse.

- É o que eu tenho feito nos últimos vinte anos mais ou menos, se você não percebeu.

- Não, Benny – ela tomou as mãos dele nas suas. – Quero dizer que você tem que cuidar de mim se eu começar a pirar. Você precisa me avisar se eu, sei lá, começar a falar coisas sem sentido ou errar as palavras. E precisa me prometer que fará o que for necessário caso eu tenha um blecaute geral. Não quero passar o resto da minha vida presa em uma cama como a merda de uma planta no vaso.

Chapman torceu a cara diante da sugestão implícita naquele pedido.

- Se eu virar um vegetal, quero que...

- Watson está em coma – Chapman cortou-a, e tanto o corte quanto a informação foram tão brutais que Sophia realmente calou-se. – Eles o operaram, tiraram a bala do pulmão dele, mas ele continua em estado crítico. Liguei para a mulher dele e a deixei a par de tudo. Ela queria vir para cá, mas consegui convencê-la a esperar em Boston.

Um silêncio caiu no quarto. O calor insuportável do dia tinha dado lugar a uma refrescante brisa noturna, que entrava pela janela aberta e balançava os cabelos negros de Sophia. Ela soltou as mãos de Chapman e cruzou os braços. O gesto foi gêmeo àquele feito por Jéssica Shepard.

- E Grimmes? – ela perguntou.

- Também está no hospital. Vai passar a noite lá, sob observação. Não parece estar realmente machucado, mas o barulho que a cabeça dele fez quando... – Chapman estremeceu. – Também tive uma conversa bem interessante com Jéssica Shepard.

- E como foi? Como ela está?

- Bem. Ela me lembra muito você, para falar a verdade.

- Que azar o dela.

Chapman riu e contou para Sophia como foi a visita à Jéssica naquela manhã. Explicou também que não tinham tido o menor sinal do homem de máscara negra pelo resto daquele dia. Encontraram o carro dele – um Ford que Jéssica ajudou a identificar – estacionado na Cathedral Street. A perícia iria realizar testes e procurar por evidências no veículo.

- Ele vai voltar – disse Sophia. Ele está atrás de mim, segundo Ashley Morgan, minha amiga do Além.

- Eu sei. A questão é: quem vai morrer quando ele voltar? – Chapman disse. – Escute, tenho algo para você. Acho que você pode me ajudar.

- Claro. O que é?

Ele tirou do bolso o celular, acessou os arquivos de áudio e encontrou a conversa que tivera com Jéssica Shepard, onde a garota lhe dava uma descrição do assassino.

- Quando conversei com Jéssica, pedi para ela descrever o homem com a cicatriz no pescoço que ela conheceu na igreja – disse Chapman. – Então, gravei o que ela me contou. Talvez você...

E parou de falar. Olhou para Sophia e o que viu fez sua espinha se encher de gelo. A garota o encarava com a boca meio aberta, os ombros caídos, as mãos flácidas e sem vida no colo e a cabeça tombada de lado. Um filete de baba se pendurava em seu queixo e balançava ao sabor da brisa da noite. Sua longa cabeleira negra caía por seu rosto e lhe tampava a face direita, de modo que apenas a esquerda, queimada e cheia de pequenas bolhas, ficava visível.

O pior, no entanto, era o olho daquele lado: o verde brilhante tinha sido substituído por uma cor suja de musgo. Não havia nada para se ver nele, apenas vazio.

Se eu virar um vegetal, quero que...

Chapman largou o celular e agarrou Sophia pelos ombros. Ela estava dura como uma estátua de pedra. Gritou o nome dela.

- Eu perdi minhas sapatilhas – disse a garota com uma voz pastosa, encarando algum ponto acima do ombro de Chapman. – Acho que elas estão nas prateleiras.

O fio de baba pingou de seu queixo para o lençol do colchão, a garota fechou as pálpebras e, quando tornou a abri-las, Chapman viu a consciência retornar a Sophia. Seus olhos se acenderam como se alguém tivesse substituído a lâmpada queimada dentro de seu crânio por uma nova. Ela piscou, confusa, encarou as mãos de Chapman em seus ombros, então franziu a testa para ele.

- O que foi? – Sophia disse.

Ele não respondeu. Apenas soltou-a. Sophia jogou os cabelos para trás, bocejou e perguntou:

- E então?

- O quê?

- Você disse que eu podia ajudar você com uma coisa. O que é?

- Eu... – Chapman começou, pensou no vazio que tomou conta dos olhos dela e então balançou a cabeça. Só Deus sabia quanto mais ela podia aguentar antes de quebrar. Pegou o celular caído na cama e enfiou-o de volta no bolso. – Acho melhor deixar para mais tarde.

- Tem certeza?

- Tenho. Foi um dia cheio, e eu não quero sobrecarregar você. Para ser sincero, também preciso de um descanso – ele disse, depois sorriu. – A televisão tem TCM. Vai passar uma maratona do Poderoso Chefão esta noite.

Sophia abriu-lhe um sorriso imenso, e isso foi o suficiente para Chapman saber que a garota tinha voltado de vez. Voltado de qualquer que fosse o lugar insano no qual tinha ido parar alguns segundos atrás. Toda ela estava ali.

Por enquanto, pelo menos.

***

Assistiram ao primeiro filme do Poderoso Chefão apertados no sofá, separados por uma tigela de pipoca de micro-ondas dada a eles pela Sra. Dulce. O quarto estava escuro, e a única luz vinha da tela da televisão, que pintava as paredes e o teto com um azul elétrico. No momento, a TV mostrava a cena em que Jack Waltz acorda e começa a gritar quando vê a cabeça de cavalo decepada em sua cama, banhando os lençóis caros com sangue.

Chapman apontou para a tela com uma mão cheia de pipoca.

- Sabia que essa cabeça é de verdade?

- Cai fora – disse Sophia.

- Estou falando sério. Eles usaram uma cabeça de cavalo real nessa cena. Esses gritos que o John Marley dá não são atuação. O cara esperava uma cabeça de cavalo falsa e deu de cara com uma de verdade – ele jogou uma pipoca dentro da boca e mastigou. – Caramba, quem não gritaria?

Sophia assistiu John Marley se esgoelar na tela da televisão. Agora que ela olhava bem, a cabeça decepada do cavalo até que parecia mesmo ser de verdade.

- Mas eles o quê? – ela disse. – Arrancaram a cabeça de um cavalo só para fazer um filme, é isso?

- É. A equipe de produção achou um cavalo doente para a cena – Chapman deu de ombros. – O animal ia ser sacrificado de qualquer jeito. Li que arrancaram a cabeça dele com um machado. Foi rápido, ele nem deve ter sentido dor.

- Ai – de repente, o Poderoso Chefão não parecia mais assim tão divertido. – Coitadinho dele.

- Estou brincando. O cavalo já estava morto.

Sophia encheu uma mão com pipocas e atirou-as em Chapman. Ele riu e se afastou, encolhendo-se para longe da garota.

- Não tem graça, Chapman!

- Mas a cabeça é de verdade.

Ficaram alguns minutos em silêncio. Sophia acendeu um cigarro, e a fumaça subiu para o teto em fiapos que brilhavam azulados à luz da TV. Ela não sabia se era permitido fumar ali, mas a janela estava aberta para deixar a brisa da noite entrar e o cheiro sair, então achou que a Sra. Dulce nem perceberia.

- Conversou com a Lívia? – ela perguntou depois de um tempo.

- Liguei para ela hoje à tarde – disse Chapman. Ele tinha esticado as pernas e cruzado os pés descalços em cima da mesinha que ficava entre o sofá e a estante com a televisão. – Ela está bem. Mandou um beijo para você.

- Da próxima vez que ligar para ela, diga que eu sinto muito por causa do carro.

O capô do Sedan de Lívia tinha sido amassado como um copinho plástico quando o homem com a máscara negra caiu em cima do veículo. O para-brisa também quebrara, ficando cheio de teias esbranquiçadas de vidro trincado. Tinha conserto, mas um carro estragado estava longe de ser a prioridade dela ou de Chapman naquele momento.

- Não foi sua culpa. Você deveria fazer o quê? Adivinhar que um maluco iria pular da janela de um prédio e cair em cima do carro?

Sophia se lembrou da premonição que tivera e que salvara a vida de Jéssica Shepard, e pensou que a palavra "adivinhar" tinha ganhado todo um novo significado.

- Não sei como ele conseguiu – ela disse. – Sair andando depois de uma queda daquelas, quero dizer. Você deveria ter visto, Chapman. Ele sequer mancava.

- Grimmes e eu o acertamos pelo menos sete vezes, Sophia – disse Chapman. – Uma atrás da outra, direto no peito. E o filho da puta continuou de pé – ele balançou a cabeça, pescou algumas pipocas que tinham ficado em sua camisa quando Sophia as atirara nele e comeu. – Estou dizendo: ele não é um homem. Não pode ser.

A garota bateu as cinzas do cigarro no copo com o restinho de Coca-Cola.

- Talvez ele seja como eu.

A ideia rondava sua cabeça desde que ela colidira com aquela muralha na mente do homem da máscara negra. Não, antes: desde a visita de Ashley Morgan naquela manhã. Chapman olhou-a de soslaio.

- Está sugerindo que ele tem poderes? Que pode... ler mentes e fazer todas as outras coisas que você faz?

- Não acho que ele possa ler mentes – disse Sophia. – Mas ele é diferente. Eu nunca vi uma barreira como aquela que protege a cabeça dele – fez uma rápida pausa. – Já conheci algumas pessoas que eram difíceis de ler. Lembra-se de Slendy? O homem para quem eu trabalhei em Newburyport?

- Claro.

- Ele, por exemplo, era impossível de ler. Sempre que eu tentava captar alguma coisa, eu só recebia branco. A mente de Slendy emitia, não sei, uma espécie de estática que interferia no rádio na minha cabeça. Há outras pessoas assim no mundo, tenho certeza. Com mentes menos suscetíveis à manipulação ou invasão – ela tragou o cigarro e balançou a cabeça. – Mas esse cara? Esse cara tem uma muralha protegendo sua mente. Ele deve ter levado anos para construir uma defesa assim. Quase como...

- Se ele soubesse que, um dia, você iria tentar invadir a mente dele – completou Chapman e Sophia assentiu. Ele suspirou. – Isso é loucura.

- Você me viu crescer, Chapman. Uma menina que brincava de prender pratos no teto da sua cozinha com a mente e que estalava os dedos para mudar o canal da televisão porque estava com preguiça de levantar do sofá e pegar o controle. Você deveria ter a cabeça mais aberta quando a questão é loucura.

Ele deu outro daqueles suspiros profundos que deixavam seus ombros maiores e não respondeu, apenas voltou a atenção para o filme. Sophia também não insistiu no assunto. Terminou o cigarro e puxava outro do maço quando Chapman perguntou:

- O que aconteceu depois que você acordou na casa de Josh Walker? Depois que foi atacada pelos lobos naquela floresta do Canadá?

Sophia balançou a cabeça.

- Eu não me lembro – ela disse. – Não dos primeiros dias, pelo menos. Meu corpo estava se livrando da heroína, e a crise de abstinência sublimou todo o meu mundo. Eu só conseguia pensar na sensação da agulha me picando, e mais nada.

- Ele levou você para um hospital?

- Não – ela acendeu o segundo Malboro. – Nem para tratar meus ferimentos nem para tomar uma metadona. Acho que Josh teria me levado a um hospital se eu tivesse pedido. Mas não pedi.

- Por que não? Conte-me.

- A história toda?

- O quanto puder. Não vou conseguir dormir tão cedo. E você também não, imagino.

Sophia pensou no pesadelo que tivera mais cedo. Se dormir significava abrir a porta para sonhos como aquele, então ela evitaria pegar no sono o máximo possível.

- Está bem – disse.

Empertigou-se no sofá, bateu novamente as cinzas do cigarro e começou a falar:

- Como eu disse, eu não me lembro muito daqueles primeiros dias depois de acordar no quarto de Josh Walker. Minha memória mais nítida é, na verdade, uma sensação fantasma: a agulha picando minha veia e depois injetando a droga no meu sistema nervoso central. Eu revivia e revivia essa sensação sem parar durante minha crise de abstinência. Engraçado, não é? Eu tive medo de agulhas a minha vida inteira, mas não sentia medo quando a agulha em questão vinha acompanhada de uma bela dose da Madame H. Eu desejava a heroína com todas as minhas forças.

- E o desejo é a perdição da alma – disse Chapman.

- Quê?

- Nada, só uma coisa que minha mãe costumava dizer.

- Sei. Bom, não sei se o desejo é a perdição da alma ou não, mas sei que ele quase foi a minha perdição. Quase foi mesmo.


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