A Voz da Escuridão.

By guiguiroseira

53.5K 8.9K 2.9K

[Obra registrada na Biblioteca Nacional.] Um garoto de 8 anos é sequestrado e morto na pequena cidade de... More

A Voz da Escuridão.
Ato 1 (1988).
1
2
3
4
5
6
Ato 2 (2009 - 2014).
Parte I
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19/20
21
22
23
24
25
26
27
28
29/30
Parte II
SÁBADO
1
2/3
4
5
6
7
8
DOMINGO
1
2
3
4
5 (i)
5 (ii)
6/7
8
9
10
SEGUNDA-FEIRA
1
2
3
4
AVISO: Comemoração.
TERÇA-FEIRA
1
2
3
4
5
6
7/8
9
10
12
13
14 (I)
14 (II)
15/16
17
18 (I)
18 (II)
QUARTA-FEIRA NEGRA (I)
1
2 (I)
2 (II)
3
4/5
6
7
8/9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
PARTE III
Quarta-Feira Negra (II)
1
2
3
4
5
6
7
8 (I)
8 (II)
9/10
11
12
13
14
15 (I)
15 (II)
16
17
18
PARTE FINAL
1/2
3/4
5
6
7
8
9
EPÍLOGO
1
2
3
4
FINAL
Nota do Autor.
Comemoração Concurso StoryTeller.
A VIAJANTE. LANÇAMENTO: 12 DE MARÇO.

11

295 48 17
By guiguiroseira


- Fique aqui.

Chapman sentou-a na calçada, à sombra fresca de uma árvore, e ela ergueu o rosto para a manhã. A luz quente do sol, filtrada pela membrana das folhas, caía verde em seu rosto e Sophia fechou os olhos. Sentia-se estranhamente desconectada de si mesma. Havia alguma coisa seriamente errada no maquinário dentro de sua cabeça, e ela sentia isso também. Parecia que ela estava despedaçando.

A palma de Chapman pousou em sua bochecha direita. O toque era quente.

- Entendeu, Sophia? – ele disse, agachado à frente dela. Dava para cheirar o sangue que empastava a camisa que ele usava. – Fique aqui.

Ela apenas assentiu. Tinha medo de falar "está bem" e sair "vejo macacos voadores". As palavras ainda estavam distantes, e ela tinha que pescar cada letra em um lago que rodopiava no fundo de sua cabeça, encaixar na próxima e formar uma sílaba. Depois, repetir o procedimento para formar a sílaba seguinte. Era exaustivo.

Chapman levantou-se, deu uma última olhada nela e se afastou. Não havia mais nenhuma viatura na rua agora – todas estavam perseguindo um "Chevrolet vermelho dirigido por um indivíduo altamente perigoso", para citar a voz que saía dos rádios da polícia. O único veículo em frente à Cathedral Street, 900, era uma ambulância: suas portas traseiras se escancaram e dois paramédicos desceram com macas. Um deles empurrou uma das daquelas camas de metal com rodinhas prédio adentro e a outra ficou largada ali, abandonada debaixo do sol.

A garota viu Chapman parar no meio da rua e chamar o paramédico que não entrara no prédio, depois apontar para Sophia sentada na calçada. Os dois trocaram algumas rápidas palavras, e Sophia sentiu inveja do modo como eles conversavam: com facilidade, sem precisar pescar letra por letra em um lago escuro e frio, onde consoantes e vogais pareciam ter o mesmo som e formular uma sílaba era tão difícil quanto levantar um peso de cem quilos. Mais cedo, ela dissera ao japonês baixinho que sua cabeça estava embaralhada, quando a expressão que realmente buscava era confusa. Agora, via que embaralhada servia bem ao propósito: as coisas dentro dela eram como cartas de um baralho esparramadas no chão, algumas viradas para baixo, e Sophia tinha que colocá-las em ordem outra vez. Às com às, copas com copas, paus com paus. Formar a merda de um royal flush, se possível.

Pensou na coisa escondida nas estantes. Na garra podre retalhando sua mente. As lágrimas ameaçaram escorrer novamente por seu rosto.

- Oi – ela tomou um susto quando o paramédico com o qual Chapman conversara se ajoelhou à sua frente. – O agente Chapman pediu para eu dar uma olhada em você.

Ele usava um crachá que provavelmente anunciava o seu nome, mas Sophia não conseguiu dizer com certeza. As palavras ali não passavam de riscos que estavam além de seu entendimento.

- Está se sentindo bem? – o paramédico enrolara algo em seu bíceps e agora pressionava uma bombinha. Sophia sentiu a coisa apertar. – Sua pressão está boa.

- E-e-e-stou b-b-b – opa, volta aqui "e", seu fujão – bem.

O paramédico assentiu e segurou o braço esquerdo dela.

- Vou passar algo nessas queimaduras. Elas devem estar ardendo como o diabo – ele disse.

Queimaduras? Sophia baixou os olhos e só então viu as bolhas que se acumulavam em seu antebraço esquerdo, cheias de água e pus. Elas brotavam em uma paisagem feita de pele vermelha e irritada. Não doía antes, mas agora a queimadura tinha começado a arder, como se só estivesse esperando ser notada por Sophia.

- Como você fez isso? – perguntou o paramédico. Ele tirava da maleta um pequeno pote de metal e, àquela altura, Sophia tinha conseguido decifrar alguns dos hieróglifos no crachá do homem. Seu nome parecia ser Bruno. Parecia. Assim como parecia ser Bryan, Bobby, Brandon ou Neil Armstrong, porra. Olha lá a minha mente indo para o espaço também.

Em resposta à pergunta dele, Sophia limitou-se a balançar a cabeça. Sentia o lado esquerdo do rosto ardendo tanto quanto o braço e sabia que, se levasse os dedos ali e apertasse, uma bolha iria estourar e cuspir tentáculos de pus amarelo em sua mão. Fora o lado com o qual era caíra ao ter a mente atacada: o esquerdo. Deitar-se naquele asfalto que fervia sob o sol era o equivalente a se esticar em uma chapa quente de fritar hambúrgueres.

O paramédico tirou do potinho de metal uma pomada branca que espalhou no antebraço queimado de Sophia, e o alívio foi simplesmente divino. Ela soltou um suspiro de prazer diante do toque da substância gelada e refrescante em sua pele.

- É bom, né? – o paramédico deu um sorriso. – Usamos isso para queimaduras de primeiro e segundo grau. Você vai sarar rapidinho.

Ele espalhou mais um pouco da substância branca, e franziu o canto da boca ao ver as cicatrizes nos pulsos de Sophia. Não é o que você pensa, eu não tentei me matar. Bom, não assim, pelo menos, mas explicar a situação pareceu cansativo demais para a garota.

- Deixe-me ver seu rosto – disse o paramédico.

Ela ofereceu a face esquerda e respirou fundo quando o paramédico esparramou a pomada na pele queimada em sua orelha, queixo e bochecha. Não era tão bom quanto heroína, mas, por Deus, chegava perto.

- Fique com isso – ele tampou o potinho de metal e entregou a pomada abençoada para Sophia. – Eu sei que é gostoso, mas tente não usar tudo de uma vez. Agora, vou precisar que você...

- Blake! – gritou alguém, e o paramédico virou-se na direção do som. Ah, então o nome dele era Blake. Esse era o palpite seguinte de Sophia, logo depois de Neil Armstrong. – Blake, preciso da sua ajuda!

Sophia olhou para ver quem gritava, e viu que o paramédico que entrara no prédio agora voltava para a rua. Ele empurrava a maca, as rodinhas rangendo na calçada com um som metálico que lembrava de um jeito estranho o choro de um bebê – nhénhénhé –, e a garota notou que havia alguém deitado nela.

- Preciso ir – Blake levantou-se, pegou sua maleta e correu para ajudar o colega.

Sophia também ficou de pé, mas dar um passo parecia tão difícil naquele momento quanto ler um nome em um crachá ou pronunciar corretamente uma palavra, por isso ela encostou-se no tronco da árvore e observou enquanto Blake e seu colega ligavam uma bolsa de soro à mão do homem deitado na maca e depois lhe cobriam o nariz e a boca com uma máscara de respiração.

A próxima pessoa a sair do prédio foi Chapman, que caminhou até a maca e segurou a mão do homem deitado nela. Foi então que Sophia sentiu seu coração gelar, ficando tão frio quanto o sol lá no céu estava quente. Ela saiu capengando pela rua na direção dos paramédicos, erguendo a mão direita para proteger os olhos da luminosidade. Chapman a viu, abriu a boca para mandar a garota voltar e pareceu mudar de ideia, porque fez um gesto para ela se aproximar.

Foi o que ela fez e, assim que viu Watson deitado na maca, com a camisa encharcada de sangue desabotoada e aberta, revelando o buraco no lado direito do seu peito, Sophia recomeçou a chorar.

Chapman colocou uma mão no ombro dela. A outra continuava a segurar os dedos de Watson.

- Olha só quem está aqui, Yuri – disse Chapman. E Watson, de olhos fechados até então, abriu as pálpebras. – Você estava certo: ela realmente nunca me escuta.

Os olhos negros de Watson pareciam ainda mais escuros, talvez devido à sua pele: ela perdera toda pigmentação e agora estava tomada por um cinza pálido, como Ashley Morgan no banheiro do hotel naquela manhã. Ele sorriu ao ver Sophia. Foi um sorriso vermelho, porque os dentes e os lábios de Watson estavam cobertos de sangue. Foi um sorriso difuso, também, devido à máscara de respiração que embaçava a boca dele. E, acima de tudo, foi um sorriso que atropelou o coração de Sophia.

Watson estendeu a mão e Sophia a pegou, levando os dedos dele ao rosto e apertando-os contra a bochecha direita.

- Por que ela escutaria você, Chapman? – disse Watson. Sua voz estava tão falha quanto sua respiração. – Escutar você nunca levou ninguém a nada.

Chapman riu e Sophia também, apesar dos olhos cheios de água. Uma lágrima rolou por sua face esquerda e misturou-se com a pomada para queimaduras.

- Eu preciso levá-lo – o paramédico Blake disse.

Mas nem Chapman nem Sophia queriam soltar Watson. Ficaram ali, ela de um lado dele Chapman do outro, cada um segurando uma de suas mãos.

- Lembre-se de continuar rápida no gatilho, agente – os olhos de Watson fecharam-se, tremeram e então se abriram de novo. Ele virou a cabeça pesada para Chapman: – Diga para a Thabita e para a Giovanna que eu as amo demais.

- Você vai dizer isso para elas, meu chapa – disse Chapman.

- Senhor? – Blake disse para Chapman. – Preciso levá-lo rápido.

Chapman assentiu e soltou Watson. Sophia demorou-se um pouco mais. Beijou-lhe os dedos. Ele apertou a mão dela e disse:

- Garota, você tem os olhos mais bonitos desse mundo.

Foram as últimas palavras que Sophia escutou dele.

***

Eles não falaram durante todo o percurso de volta para o Days Inn.

Chapman dirigiu o Ranger de Watson e Sophia passou o tempo todo com a cabeça apoiada no vidro da janela do passageiro, tentando não olhar pelo retrovisor. Havia uma bonequinha de pano sorridente no banco de trás, de vestidinho verde florido e tranças ruivas que pareciam feitas de cabelo de verdade. Watson a dera de presente para sua filha no mês passado, quando a menininha completou 4 anos, e Giovanna a esquecera no carro depois de um passeio no parque. O nome da boneca era Merida, porque seu cabelo ruivo a deixava parecida com a princesa da Disney, aquela do filme Valente. Sophia captou tudo isso, ao mesmo tempo em que pensava em Watson sendo colocado na ambulância, com o pulmão produzindo um barulho agudo de apito, como se fosse um motor a vapor sobrecarregado e prestes a entregar os pontos.

O silêncio foi quebrado uma única vez, quando o celular de Chapman tocou. Ele colocou-o no viva-voz e atendeu.

- Chapman falando – ele disse.

- Encontramos o Chevrolet vermelho – a voz do policial Cohen encheu o interior deserto de sons do carro. – Foi abandonado em uma ruela perto do centro. Nem sinal do nosso cara. Ele deve ter largado o carro lá e fugido a pé. Estamos realizando uma busca nas proximidades.

Chapman torceu a boca. Ele ainda usava a camisa cheia do sangue de Watson e sua mão direita no volante estava enfaixada, com o dobro do tamanho. Segundo Blake, dois dos dedos de Chapman tinham quebrado, isso sem falar da fratura no osso do punho.

- Deixem para lá – disse Chapman.

- Deixar o quê para lá? – perguntou Cohen.

- A busca. Diga para o seu pessoal voltar.

Houve um silêncio incrédulo do outro lado da linha.

- Você não quer que a gente vá atrás dele? – disse Cohen por fim.

- Vocês não vão encontrá-lo. Ele já deve estar bem longe do nosso alcance agora. Deus sabe que ele é inteligente o bastante para isso – Chapman suspirou. – Deixei Grimmes e dois dos seus homens fazendo a segurança de Jéssica Shepard. Quero que mande mais policiais para lá agora mesmo. Vou pegar o depoimento dela assim que possível, mas até lá não quero dar margem para o azar.

- Você acha que ele pode ir atrás dela de novo?

- Não – mas Sophia sentiu a mentira na voz de Chapman. – Mesmo assim, ela precisa ser mantida em segurança, principalmente depois do que aconteceu hoje.

- Certo – disse Cohen. – Vou mandar meus homens para o apartamento dela. Escute... Como você sabia?

- Sabia do quê?

- Que ele iria atrás de Jéssica Shepard? Nós nunca tínhamos ouvido falar dessa garota antes dessa manhã.

Chapman lançou um olhar para Sophia no banco de passageiro e disse:

- Eu tenho minhas fontes.

- Primeiro a cicatriz, depois essa garota – Cohen deu um risinho nervoso. – Estou começando a achar que o FBI trabalha com médiuns.

- Quem dera, Cohen. Quem dera – disse Chapman. – Mande os policias para fazer a segurança da garota. Encontro você no apartamento dela em uma hora. Duas, no máximo.

- Pode deixar.

Entraram no estacionamento do Days Inn New Shore. O morador de rua continuava lá, sentado no mesmo lugar na calçada, balançando sua latinha de trocados. Sophia sentiu pena ao vê-lo ali, abandonado como um monte de lixo para secar debaixo de todo aquele sol, então lembrou-se do mendigo a chamando de putinha na noite anterior e a empatia deu lugar a um sentimento mesquinho de satisfação. Pegou-se desejando que aquele homem de dentes estragados e barba cheia de pedaços mastigados de comida morresse de insolação.

Chapman parou o carro de Watson e desceu. Sophia ficou por mais alguns segundos no banco de passageiro, então abriu a porta e saiu para a manhã abrasadora. As queimaduras em seu braço e rosto tinham voltado a arder, e ela não via a hora de tirar do bolso o potinho que Blake lhe dera e se lambuzar com aquela pomada branca.

Ela já tinha atravessado quase todo o estacionamento e estava praticamente na porta de entrada do hotel quando se deu conta de que Chapman não a acompanhava. A garota estancou, olhou em volta e viu que ele continuava parado ao lado do Ranger, encostado no capô e fitando os próprios sapatos. Havia sangue neles também, respingos escarlates que pareciam negros à luz do sol. Sophia esperou que ele se mexesse ou a chamasse, mas, quando ele não fez nenhuma das duas coisas, ela lhe enviou um pensamento. Era mais fácil do que tentar falar.

(você não vem?)

Ele ergueu os olhos dos sapatos sujos de vermelho e pousou-os em Sophia. Havia sofrimento no rosto de Chapman, uma dor que puxava para baixo os cantos de sua boca e lhe curvava os enormes ombros. Era mil vezes pior ver aquela expressão de derrota do que a mancha de sangue na camisa dele. Chapman enfiou a mão esquerda no fundo do bolso, a direita inchada e quebrada repousando ao lado da coxa.

- Você fez bem, Sophia – ele disse. Sua voz ecoou pelo estacionamento, tão alta quanto as moedinhas que colidiam na lata de trocados do mendigo. – Salvou a vida daquela garota.

Sophia continuou onde estava, a pelo menos quinze metros de Chapman, fitando-o enquanto ele voltava a baixar os olhos.

- Eu... – ele começou, engoliu em seco e balançou a cabeça. – Eu achei que soubesse o que estava fazendo. Ele era só um cara, e nós éramos três. Quer dizer, basta fazer as contas, certo? Só que ele não era só um cara. Não era.

(foi você quem salvou a vida dela, Benny. não eu. eu não fiz nada)

Mais uma vez, Chapman balançou a cabeça. Então tirou a mão esquerda do bolso, virou as costas para Sophia e desceu o punho no teto do carro de Watson. Uma, duas, três vezes, até que começou a bater também com a mão direita quebrada. Devia estar doendo pra caramba, mas ele não parou. E, provavelmente, teria continuado com aquilo por um bom tempo, não fosse Sophia abraçá-lo por trás e afastá-lo do veículo. O corpo dele tremia com um choro tardio e cansado. O tipo de choro que Sophia conhecia intimamente.

Ela manteve os braços fechados em torno da cintura dele e enterrou o rosto nas costas de Chapman. A camisa dele estava suada e fedendo, mas Sophia não se importou.

- Eu amo você, Benny – e, dessa vez, ela não teve problema algum para encontrar as palavras certas. – Amo você.

***

Não dava para dizer o que zumbia mais alto na recepção do hotel: os mosquitos ou o ventilador no teto. Assim que Chapman e Sophia entraram, a velha de óculos quadrados e cabelo de nuvem voltou-se para eles e soltou um gritinho diante do estado em que se encontravam. O sangue na camisa de Chapman, o rosto queimado de Sophia, tudo isso não devia ser uma coisa muito bonita de se ver.

- Oh, meu Deus – a velhinha largou em cima do balcão o leque que usava para se abanar e correu até eles. – Eu vi tudo na televisão. Vocês estão bem?

Os olhinhos dela, agigantados pelas lentes de fundo de garrafa dos óculos, corriam de Chapman para Sophia.

- Está tudo bem com a gente, Sra. Dulce – disse Chapman. – Não se preocupe.

Pendurada na parede da recepção, a televisão estava ligada em um canal de notícias, onde uma repórter de terninho bege e cabelos curtos e negros falava sem parar para a câmera. Atrás dela via-se a Cathedral Street, agora já liberada outra vez para carros e pedestres, embora todo mundo parasse diante da porta do prédio de Jéssica Shepard para dar uma espiada lá dentro.

- ...e duas mortes foram confirmadas – dizia a repórter. – Ambas as vítimas trabalhavam como seguranças no prédio e, segundo as testemunhas, tentaram...

- Desligue essa televisão, Arthur, seu cabeça oca – disse a velhinha para a única outra pessoa na recepção: o menino que lembrava o John Lennon cheio de espinhas. Ele sentava-se em um dos banquinhos negros da entrada e olhou assustado para a Sra. Dulce. – Tenha respeito com nossos hóspedes, eles não querem ter que reviver isso.

- Não tem problema – disse Chapman. – Nós já...

Mas o John Lennon com espinhas, também conhecido como Arthur Cabeça Oca, já tinha mudado o canal da televisão. Ele olhou por cima do ombro, primeiro para Chapman e depois para Sophia, e seu rosto ficou tão vermelho quanto o sangue na camisa de Chapman. Devia estar se lembrando do que acontecera mais cedo, quando Sophia aparecera à sua frente como veio ao mundo.

- Perdoem o meu neto, ele é meio avoado – disse a Sra. Dulce. – Às vezes acho que ele fuma maconha, mas a mãe dele garante que não – ela suspirou fundo e balançou a cabeça como as pessoas fazem diante de uma das fatalidades da vida. – Por favor, fiquem à vontade. Se eu puder fazer alguma coisa para ajudar, não hesitem em pedir.

Chapman agradeceu e seguiu para o número 19, com Sophia logo atrás e segurando o braço dele. Chapman enfiou a chave na fechadura e parou.

(o que foi?)

- Dezenove – ele disse, olhando para o "9" na porta do quarto. Outra vez, o número tinha caído e formado um "6". – O mesmo número do apartamento de Jéssica Shepard. Eu não tinha notado essa coincidência até agora.

Na opinião de Sophia, isso não era coincidência de forma nenhuma, mas ela não deu voz a esse pensamento. Novamente, pensou em destino e em fios invisíveis que ligam todas as coisas e sentiu um frio subir por sua espinha.

O interior do quarto estava tão abafado que parecia uma sauna. Sophia foi logo ligando o ventilador. As pás giraram sem vontade no começo, mas depois ganharam velocidade. A garota abriu também as janelas, mas não havia vento soprando naquele dia quente, e a única coisa que chegou vinda lá de fora foi o som do morador de rua no estacionamento balançando a lata de trocados, as moedinhas tinindo sem parar.

- Esse cara ainda vai me deixar louco – disse Chapman. Ele tinha tirado a camisa manchada de sangue, amassado a roupa e a jogado no cesto de lixo do quarto. – Sophia?

Ela virou-se para ele, as sobrancelhas erguidas em um "o quê?" silencioso.

- Quer falar sobre o que aconteceu lá? – Chapman perguntou. – Porque eu vi você caindo naquela rua. Eu estava na janela, gritando seu nome, mas você não me escutou.

(como sempre), ela sorriu.

- É, como sempre. Planeja voltar a falar um dia?

Ela fez uma careta, arrancou as botas e sentou-se no sofá. Tirou do bolsinho de traz do jeans o potinho com a pomada branca, abriu a tampa e cheirou a substância.

- Sophia?

(podemos falar sobre isso depois? por favor?)

Chapman suspirou e levou a mão esquerda aos olhos, apertando-os.

- Tudo bem, como quiser – ele disse. – Vou tomar um banho e voltar para a Cathedral Street. Pode fazer uma coisa por mim?

Ela apenas encarou-o, o potinho em uma das mãos e a tampa na outra.

- Fique aqui – ele disse. – Por favor, garota. Por favor. Não saia desse quarto até eu voltar.

Ela respirou fundo e fez que sim com a cabeça, enquanto pegava um pouquinho daquela pomada e a espalhava nas bolhas em seu braço esquerdo. As tatuagens ali tinham estragado, ela percebeu com uma dor no coração.

- Prometa-me – insistiu Chapman.

- P-p-p-pro... – ela fechou os olhos com força e concentrou-se nas letras. – Pro-me-to – pronunciou assim mesmo, com uma pausa depois de cada sílaba. Soou infantil – uma criança aprendendo a falar teria feito melhor –, mas, pelo menos, a palavra que saiu de sua boca foi a mesma que ela visualizou em sua mente. Já era um avanço.

- O gato não comeu a sua língua, afinal.

Uma coisa bem pior que um gato comeu minha língua, Chapman, mas esse pensamento Sophia não dividiu com ele.

Blake dissera para Sophia não usar a pomada toda de uma vez, mas a tentação era grande. Terminou de passar a substância no rosto, recebendo com alívio o frio anestésico que se espalhou por sua face esquerda cheia de bolhas, depois deixou o potinho no chão ao pé do sofá e deitou-se. Podia escutar o chuveiro ligado no banheiro e o barulho da água caindo no piso ninou-a. Suas pálpebras começaram a pesar, e só então Sophia notou o quanto se sentia cansada. Mas é difícil pegar no sono quando sua mente está perigosamente equilibrada no limite entre a sanidade e a insanidade, feito um trapezista em uma corda bamba. Um trapezista ruim, ainda por cima. Pela primeira vez em anos, Sophia se viu desejando uma dose de heroína. Uma picadinha direto na veia e, pimba!, todos os seus problemas acabaram.

Ela gemeu e se contorceu no sofá, pensando nos Walker. Josh e seu eterno cheiro de cigarro de palha; Lizzie com seu violão e a filhinha dela, Evangeline, que Sophia trouxera ao mundo, ensinara a nadar e de quem salvara a vida. Eles deviam estar preocupados com ela, perguntando-se o porquê de ela tê-los abandonado.

- Não foi por querer. Juro que não foi.

Sophia sequer reparou no fato de ter pronunciado direito cada palavra. Estava no limbo que separava o sono da realidade, flutuando.

Quando Chapman saiu do banheiro, encontrou a garota dormindo no sofá.

Continue Reading

You'll Also Like

762K 6.3K 6
(Primeiros Capítulos para degustação) Sinopse: Erick, o beta da alcateia dos lobos, era o mediador e braço direito do alfa. Belíssimo e bem-humorado...
19K 1.4K 13
No dia do casamento com seu amado e prometido guerreiro Dasan, a princesa Aiyana vê seu mundo desmoronar com a invasão de homens brancos e bárbaros...
988 124 5
João Vitor se fantasiava todas as quintas de homem aranha e ficava fazendo brincadeiras na faculdade de artes. Pedro é um calouro que por acaso se ap...
34.8K 3.9K 55
Lorena é uma jovem brilhante que aos 17 anos tem seus sonhos de futuro e faculdade abalados após ser sequestrada no corredor de sua escola. Levada pa...