A Voz da Escuridão.

By guiguiroseira

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[Obra registrada na Biblioteca Nacional.] Um garoto de 8 anos é sequestrado e morto na pequena cidade de... More

A Voz da Escuridão.
Ato 1 (1988).
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Ato 2 (2009 - 2014).
Parte I
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Parte II
SÁBADO
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DOMINGO
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5 (i)
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SEGUNDA-FEIRA
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AVISO: Comemoração.
TERÇA-FEIRA
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QUARTA-FEIRA NEGRA (I)
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PARTE III
Quarta-Feira Negra (II)
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PARTE FINAL
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EPÍLOGO
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FINAL
Nota do Autor.
Comemoração Concurso StoryTeller.
A VIAJANTE. LANÇAMENTO: 12 DE MARÇO.

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By guiguiroseira

Assim que acordou na segunda-feira de manhã, Sophia foi para a sala do apartamento e deparou com uma tela de pintar colocada ao lado da janela. Ficou sem reação, parada ali só de camisola feito uma idiota, sua mente ainda sonolenta sem entender o que eram todos aqueles pincéis e tintas. Havia até mesmo um banquinho de três pernas para o artista sentar enquanto trabalhava. Então as lembranças vieram e Sophia soltou um gritinho de alegria. Não conseguiu evitar.

- Livy! – ela chamou, correu meio caminho até a tela de pintura, depois voltou e enfiou-se na cozinha, onde Lívia sentava-se à mesa e comia bolinhos. – Livy, Livy!

- Pelo amor de Deus, estou aqui – disse Lívia, baixando o jornal que lia. – Pode parar de gritar meu nome.

- Livy! – Sophia gritou mesmo assim. – Aquilo ali na sala é o que eu estou pensando?

- É a sua tela de pintura, sim – Lívia franziu a testa. – Por que o alvoroço? Eu...

Sophia calou-a atirando-se em cima dela, quase a derrubando com cadeira e tudo. Lívia ficou perdida entre abraçar a garota e equilibrar-se para não cair.

- Obrigada por guardar – disse Sophia.

Aquelas telas, com os pincéis, tintas e o cavalete, haviam sido presentes de Lívia e Chapman para ela. A garota os ganhara assim que se mudara para Boston. Chapman, claro, sabia o quanto ela amava desenhar, e Sophia nunca se esqueceria da noite chuvosa em que ele a pegara no convento e a levara para morar em seu apartamento. Assim que chegara, pingando água no tapete da entrada e tremendo de frio, enfiada dentro do casaco gigantesco de Chapman e com o humor mais sombrio que o normal, Sophia encontrara aquele pequeno estúdio de pintor montado no mesmo lugar dessa manhã: próximo à janela, sobre uma lona branca para impedir que o piso ficasse sujo de tinta. Como acontecera ainda há pouco, ela também ficara paralisada na época, sem entender direito o que via.

- Eu sei que você já deixou para trás a época de desenhar coelhinhos – dissera Chapman –, mas achei que você fosse gostar de ter um espaço para pintar outras coisas.

Ah, e como ela tinha gostado. Nos anos em que morou com Chapman e Lívia, ela passou tardes e madrugadas inteiras sentada no banquinho de três pernas, desenhando quase alucinadamente. Se não estava estudando, desenhava. Se não estava na Sede, desenhava. Se não estava dormindo, desenhava. O tempo mais longo que Sophia ficou sem pegar no pincel foi o período em que enfrentou problemas com drogas, mas a pintura a ajudou a vencer o vício e as terríveis crises de abstinência. Toda arte criativa é uma mágica singular; se a medicina é responsável por curar as feridas do corpo, então a imaginação cura as feridas da alma e do coração. Nunca ocorreu a Sophia perguntar a Chapman e Lívia que fim eles haviam dado às toneladas de desenhos que ela fizera durante aquela época.

Sophia soltou Lívia e correu para a sala, mas parou quando a mulher gritou para a garota, pelo menos, tomar café da manhã. A excitação de Sophia permitiu-a agarrar três bolinhos e devorá-los um atrás do outro, quase sem pausa, e depois empurrar tudo para dentro com um grande gole de suco de laranja.

- Se eu soubesse que você ficaria tão animada, teria colocado aquela tela lá antes – riu Lívia, incapaz de se conter diante da animação da garota.

- Você é demais, Livy – Sophia estalou um beijo no rosto dela e voltou para a sala.

É desnecessário dizer que a garota ficou a manhã toda com a bunda sentada no banquinho, desenhando em um ritmo que deixaria qualquer observador tonto. E ela nem estava dando tudo de si. Na realidade, sentia-se meio enferrujada – fazia um bom tempo desde que pegara em um pincel, o que a impedia de pintar a todo vapor. Mas, no fundo, era como andar de bicicleta: você nunca se esquece de verdade daquilo que ama. Enquanto adicionava traços, linhas, cores e formas às telas, criando todo um novo mundo a partir do branco, sem usar nada além das mãos e da imaginação, Sophia sentia-se voando. Um pássaro, ela pensou, devia se sentir exatamente assim ao bater as asas depois de passar um tempo longo demais preso em uma gaiola.

Parou apenas na hora do almoço, e só porque Lívia a obrigou.

- Venha comer alguma coisa, ou vai desmaiar aí – disse Lívia, olhando para os desenhos que já começavam a se acumular aos pés do cavalete.

- Eu estava com tanta saudade disso – sorriu Sophia. Ela tinha tinta nas bochechas, na testa e nos cabelos. A ponta de seu nariz também estava manchada de azul. Lívia lambeu o dedão e passou-o ali para limpar. – Obrigada. Estou muito suja?

- Imunda. Que tal se limpar antes de almoçar? E colocar uma roupa também.

Sophia ainda usava só a camisola. Ficara tão animada com a perspectiva de pintar que se esquecera de todo o resto. Bem a contragosto, ela baixou os pincéis, fechou seus potes de tinta e, sentindo-se uma adolescente outra vez, foi fazer o que Lívia pediu: limpar-se e vestir-se.

Quinze minutos depois as duas estavam na cozinha, devorando o almoço que Lívia preparara.

- Notícias de Chapman? – perguntou Sophia.

- Ele ligou de manhã, antes de você acordar – Lívia deu de ombros e remexeu a comida sem muita vontade. – Ele disse que está bem, mas eu o conheço melhor do que qualquer pessoa no mundo. Sei que ele está abalado.

A foto de Danny Straub surgiu na cabeça de Sophia. Não era para menos Chapman estar abalado. A garota baixou os talheres, subitamente sem apetite, e a reação não passou despercebida a Lívia.

- Você... – ela fez. – Benny não envolveu você nisso, envolveu?

Sophia balançou a cabeça.

- Não – ela disse. – Eu o obriguei.

- Ah, meu Deus...

- Não foi nada demais, Livy. Sério. De verdade. Apenas dei uma olhada em umas fotos para ele e... Bem, você sabe – Sophia balançou os dedos direitos para ela. – Fiz a minha coisa.

-Vocês dois... – Lívia balançou a cabeça. – Eu nunca vi duas pessoas tão teimosas. Vocês são iguaizinhos.

- O que quer que eu diga? – Sophia deu-lhe um sorriso amarelo. – Tal pai, tal filha.

- Parece que sim – disse Lívia. – Você não devia ter entrado nisso, Sophia. E ele não devia ter deixado você entrar.

A preocupação na voz de Lívia fez o coração de Sophia se encolher.

- Escute, Livy – a garota estendeu a mão e segurou os dedos dela. – Eu só o ajudei a conseguir uma informação. Só isso. Não vou me envolver mais.

Mas ambas sabiam que isso não era verdade.

***

Depois do almoço, Sophia voltou para suas pinturas, enquanto Lívia lia no sofá da sala. Por quase uma hora, tudo o que se ouviu no apartamento foi o barulho do pincel riscando a tela e das páginas do livro sendo viradas. Até que, sem mais nem menos, Sophia colocou-se de pé e gritou:

- Filho da puta!

Lívia sobressaltou-se no sofá e olhou para Sophia. A garota tremia da cabeça aos pés, segurando o pincel com tanta raiva que sua mão estava branca.

- O que deu em você? – ela perguntou.

Sophia não respondeu. Atirou o pincel na tela, a tinta vermelha nas cerdas voando para todos os lados, e caminhou com passos duros até a porta do apartamento. Tonta com a reviravolta súbita de humor da garota, Lívia ficou de pé no meio da sala e a chamou:

- Sophia?

- Já volto – Sophia respondeu sem olhá-la.

A garota saiu do apartamento, batendo a porta atrás de si. Estava tão enfurecida que sequer pegou o elevador: desceu de escada, pisoteando com raiva cada degrau, passou pelo porteiro sem dispensar a ele qualquer cumprimento e irrompeu para a rua.

O sol quente da tarde caiu em cheio no rosto dela. Era uma segunda-feira agitada, cheia de buzinas e de automóveis que corriam para lá e para cá, mas o carro que ela procurava estava parado, estacionado na esquina do prédio de Chapman. Um 4x4 negro com janelas escuras e rodas cromadas. Nada discreto. Sophia cerrou os punhos com tanta força que suas unhas teriam se cravado em suas palmas, não fosse a mania que a garota tinha de roê-las.

O homem de terno e gravata atrás do volante do 4x4 a viu, abriu a boca em surpresa e agarrou o iPhone sobre o painel. Mas Sophia foi mais rápida: fechou um grilhão psíquico na mente do sujeito, e ele congelou no meio do movimento de levar o iPhone à orelha. Hora de brincar de estátua. Ainda com passos pesados, como se quisesse abrir buracos no concreto da calçada usando apenas os pés, Sophia caminhou até o carro e parou ao lado da janela de passageiro, que estava aberta.

- Oi – ela disse. – Atrás de mim?

O sujeito não conseguia sequer mover os olhos.

- Vou soltar você – ela disse. – Se você tentar qualquer coisa, como ligar para Harvey ou sacar sua arma, eu vou te machucar pra valer. Entendeu?

Claro que o homem não conseguiu responder. Os tendões de sua boca estavam paralisados, assim como cada músculo de seu corpo. Sophia o havia pegado de jeito. Ela viu uma gota de suor escorrer da testa do sujeito e entrar em seu olho direito petrificado. Devia arder pra caramba. A garota sorriu.

- Vou tomar seu silêncio como um sim.

E o libertou. O homem caiu para frente com um gemido de dor, bateu a testa no volante e seu nariz chocou-se contra a buzina. Antes que o agente conseguisse se recuperar, Sophia enfiou o braço pelo vidro aberto do passageiro e pegou-o pelo punho direito. Depois torceu e o iPhone caiu dos dedos dele.

- Não grite – fez Sophia quando o homem tomou fôlego. Ele fitou-a com o canto dos olhos e soltou o ar devagar por entre os dentes, produzindo o barulho de uma bexiga murchando. – Isso mesmo.

- Como... – o homem lambeu os lábios. Ele estava todo torto no banco de motorista, procurando uma posição na qual o aperto de Sophia em seu punho não doesse tanto. – Como você sabia que eu estava aqui?

- Captei sua mente, seu babaca – disse Sophia. – Não sei o que Harvey contou a você, mas não é fácil me passar a perna. Há quanto tempo você está aqui?

- Desde hoje de manhã – disse o homem, engolindo em seco. Seus olhos não deixavam os de Sophia, e ela via o medo no fundo deles. Bom. Muito bom.

- Harvey sabe que eu estou aqui?

O homem balançou a cabeça. Não.

- Ele só me pediu para ficar de olho – arfou o homem. – Se eu visse você, era para entrar em contato com ele. É só isso, juro.

Sophia acreditou nele, e não precisou entrar na cabeça do sujeito para saber que ele dizia a verdade. O medo nos olhos do agente era o suficiente para ela.

- Certo – disse Sophia. – Não captei direito o seu nome. É Paolo?

- Paul – ele corrigiu.

- Certo, Paul. Escute bem: eu vou soltar seu braço. Depois disso, você vai pegar o celular, ligar para Harvey e dizer que tem certeza absoluta de que eu não estou no apartamento de Chapman – cada palavra que ela dizia era também um pensamento que cravava na mente de Paul. Ele a obedeceria de uma forma ou de outra. – Aí vai jogar o celular fora e dirigir para bem, bem longe daqui.

Paul franziu a testa para ela.

- Para onde eu vou?

Sophia sorriu.

- O quão bem você conhece o Texas?

***

Ela entrou no apartamento de Chapman e soltou um suspiro, apoiando a nuca na porta e esfregando os olhos. Lívia veio correndo do quarto ao ouvi-la chegar, um livro fechado em mãos.

- Vai me explicar o que foi isso?

- Harvey colocou alguém para vigiar o apartamento – disse Sophia. – Um agente. Sintonizei sem querer a cabeça dele, e os pensamentos do cara diziam o meu nome – ela deu de ombros. – Ele deveria avisar Harvey caso eu aparecesse por aqui. Mas não se preocupe, já cuidei dele.

Lívia franziu a testa para a garota.

- E o que você fez com ele exatamente?

- Nada – Sophia voltou para seu banquinho de três pernas e sentou-se. Arrancou a tela que pintava antes de sair – ela tinha estragado o desenho ao tacar nele o pincel – e substituiu-a por uma em branco. Sentia o olhar de Lívia em sua nuca e virou-se para a mulher. – Eu não o matei nem nada, pelo amor de Deus. Ele vai ficar bem.

Lívia balançou a cabeça e foi para o quarto sem dizer uma palavra. Irritada, Sophia tentou voltar à pintura, chegou até a esboçar uma linha e outra, mas o estrago já estava feito. Ela não conseguia deixar sua imaginação fluir quando estava nervosa e, no momento, sentia-se puta da vida. Harvey, o desgraçado do Aiden Harvey. Depois de todos esses anos, ele continuava tentando controlá-la. Desde a primeira vez em que colocou os olhos nela, ele buscava fazer de Sophia seu projeto especial. A arma secreta e superpoderosa do Governo. Ela deveria tê-lo matado em Oldwheel, quando teve a chance.

Pensar em Oldwheel e no que deixara para trás serviu apenas para irritá-la ainda mais. Sophia encarava o desenho pela metade à sua frente, pensamentos furiosos rodopiando em sua cabeça, e um ponto negro surgiu no meio da pintura, soltando fumaça, depois expandiu-se em uma bola de fogo azul que incendiou a tela.

- Ah, merda – fez Sophia.

Ela levantou-se com um pulo e apagou o fogo com um pensamento, depois abriu a janela da sala para deixar sair a fumaça e o cheiro de queimado. De novo, Lívia veio correndo do quarto, com o livro fechado nas mãos. Pelo visto, ela não conseguiria terminar a leitura hoje.

- Desculpe – disse Sophia para ela. – Foi um acidente.

A mulher olhou para a tela queimada e para a fumaça que subia em direção ao teto, antes de encontrar seu caminho para fora do apartamento e rodopiar em tiras escuras pela janela.

- Não tem problema – disse Lívia. – Da primeira vez em que assistimos ao Rei Leão, você ficou com tanta raiva quando o Mufasa morreu que incendiou o sofá. Lembra disso?

Sophia lembrava um pouco. Ela nunca fora capaz de controlar sua pirocinese, de qualquer forma.

- Desculpe pelo sofá também – ela disse.

- Você só tinha 9 anos, Sophia – disse Lívia, voltando para o quarto. – E todo mundo fica com raiva quando o Mufasa morre.

Toda vontade que Sophia tinha de continuar desenhando virou fumaça junto com a tela de pintura, então a garota simplesmente atirou-se no sofá e passou o restante da tarde encarando o teto e fumando um cigarro atrás do outro. Por volta das 17h, Lívia foi até ela e disse que ia dar um pulinho no shopping. Perguntou se Sophia não queria ir também. Podiam jantar por lá e pegar um cinema depois. Só que Sophia não desejava colocar os pés fora do prédio, não após quase ser descoberta por um dos agentes de Harvey. Explicou isso para Lívia, e a mulher acabou concordando que seria melhor e mais seguro a garota evitar sair, pelo menos por enquanto.

- Quer que eu traga alguma coisa para você? – perguntou Lívia.

- O hambúrguer mais gorduroso que o McDonald's tiver no cardápio – pediu Sophia. – E batatas-fritas.

- Como você é magra? – Lívia debruçou-se sobre o sofá onde Sophia estava deitada e beijou a testa da garota.

- Te amo, Livy.

- Também amo você, cupcake.

Pouco depois de Lívia sair, o celular dela começou a tocar na sala. Sophia ergueu a cabeça no sofá, olhou em volta e encontrou o aparelho em cima da mesinha de centro. Livy devia tê-lo esquecido. A garota pegou-o e leu "Benny" na tela.

- Pizza Place, posso anotar o seu pedido? – ela atendeu.

- Errr... – fez a voz de Chapman. – Desculpe, acho que liguei...

- Sou eu, seu bobo.

- Sophia? Porra, garota. Cadê a Livy?

- Ela foi ao shopping. Esqueceu o celular.

- Nem sei o porquê de ela ter esse troço, vive largando em tudo quanto é lugar. Quando ela voltar, diga que eu liguei, está bem?

- Pode deixar.

- Tudo bem aí?

- Tudo ótimo – Sophia enfiou um cigarro entre os dentes e acendeu. – Recebemos uma visita hoje.

- Visita? Que visita?

Sophia contou para ele sobre o agente que Harvey mandara para vigiar o prédio.

- Filho da puta – disse Chapman.

- Concordo – disse Sophia. – Mas eu cuidei do assunto. Não acho que Harvey tenha descoberto que eu estou aqui. E como vão as coisas com você?

Como resposta ela recebeu apenas silêncio.

- Não minta.

- As coisas vão bem ruins – Chapman suspirou. – Continuamos sem pistas do assassino, e a perícia não encontrou merda nenhuma, de novo. A mídia ainda não sabe sobre o segundo homicídio, estamos abafando da melhor maneira que conseguimos, mas é só questão de tempo até a informação vazar e os jornais fazerem a conexão com o caso de Danny Straub. Aí, teremos oficialmente um assassino em série nas mãos. Já imagino as manchetes.

- E a criança? – Sophia dissera a si mesma que não faria essa pergunta, mas lá estava ela, quebrando outra promessa. – Qual é o nome da criança?

- Ashley Morgan – respondeu Chapman. – Ela tinha 8 anos.

Algo se revirou dentro de Sophia. Uma coisa cheia de dentes e com a pele coberta de espinhos, que rasgou suas estranhas ao se mover. A raiva que a garota sentiu fez com que ela trincasse o maxilar, seus dentes produzindo um creck! sonoro.

- Vou dar uma coletiva amanhã de manhã – continuou Chapman. – Para revelar a informação que você nos passou. Sobre a cicatriz no pescoço.

- Se você tornar essa informação pública, o assassino vai saber que temos algo contra ele – era desnecessário dizer isso a Chapman, mas Sophia achou importante frisar. – Aí então ele vai ficar duas vezes mais cuidadoso. E três vezes mais perigoso.

- E você acha que eu não sei disso? – disse Chapman. – Mas estamos sem opções. Depois que a informação sobre o assassinato dessa garota vier a público, seremos cobrados para avançar logo na investigação, e temos que dar alguma coisa às pessoas. Nem que seja um pouco de esperança de que estamos no caminho certo e fazendo nosso trabalho.

- Quem precisa dessa esperança são as outras pessoas ou vocês?

- Ele já matou duas vezes, Sophia – disse Chapman. – Em menos de 24 horas. E Deus sabe o que ele está fazendo neste instante enquanto conversamos. Aliás, eu nem deveria estar falando sobre isso com você. Diga para Livy que liguei.

- Vou dizer.

- E comporte-se.

A linha ficou muda. Sophia passou um tempo com o celular grudado à orelha, o cigarro queimando nos dedos da outra mão, depois jogou o aparelho em cima da mesinha de centro e foi até a escrivaninha que ficava ao lado do bar com as garrafas de vodca e uísque. O notebook de Chapman estava ali, e a garota sentou-se em frente a ele, abrindo o monitor e apertando o botão de ligar.

O notebook era protegido por senha, e Sophia encarou a mensagem que dizia para ela INSERIR O PASSWORD. A garota tentou LÍVIA, e nada. Inseriu SOPHIA. Nada também. Com um suspiro, ela jogou a cabeça para trás e olhou para o teto, pensando. Por fim, escreveu BRUCE SPRINGSTEEN, o músico favorito de Benny. Um segundo depois, estava diante da tela inicial do Windows.

- Ah, Chapman – sorriu Sophia. – Herdei de você o meu bom gosto musical.

Acessou a internet e procurou "Ashley Morgan" no Google. Segundo o Grande Oráculo dos Tempos Modernos, Ashley Morgan era uma jovem que participara do The Voice. E estava muito viva, pelo menos até a semana passada. De qualquer forma, não era a criança que o assassino matara. Sophia digitou então "Ashley Morgan, New Shore". O primeiro link era uma página do Facebook de uma tal de Stella Morgan.

Sophia clicou, torcendo para não encontrar o perfil da mulher bloqueado. Não estava. A publicação mais recente era uma foto de família tirada no lago Whitney. A garota ampliou a imagem e recostou-se na cadeira. Sentiu os olhos encherem-se de lágrimas e os enxugou com raiva. Entretanto, o que mais sentia naquele instante era tristeza. Uma tristeza tão profunda que era quase anestésica, espalhando um estupor por seu corpo. Menos no estômago. No estômago de Sophia, a fúria queimava e começava a crescer.

A foto na tela do notebook mostrava Stella Morgan com a filha e o esposo. Stella era linda – não tinha outra palavra para descrevê-la. Loira, com olhos azuis e aquele tipo de sorriso que faz o mundo parar de girar, a mulher parecia ter acabado de sair de um desfile de passarela. Ela ocupava a parte esquerda da imagem, enquanto que seu marido se encolhia à direita, usando óculos tão escuros quanto os cabelos. No meio do casal, estava a criança, uma miniatura exata da mãe, mas com a vantagem de possuir algo que os pais haviam deixado para trás quando se tornaram adultos: a pureza. Se a inocência tivesse um rosto, esse rosto seria o de Ashley Morgan.

Cada traço da criança – as covinhas de seu sorriso, o franzir de sua testa, o apertar dos olhos claros diante do sol – emanava uma força imaculada que era impossível de ser descrita. Sophia sentia isso mesmo fitando Ashley através da tela de um computador. Perguntou-se se algum dia já fora pura daquele jeito, inocente como aquela garotinha, e a resposta que lhe ocorreu foi que não. Sua infância havia sido mutilada pelo abandono dos pais biológicos que ela nunca conheceu, pelos experimentos que fizeram nela, pelas agulhas que furaram seu corpo uma vez atrás da outra, pela coisa sobrenatural e desconhecida em suas entranhas. Sophia entendia de inocência assassinada como ninguém, e agora algum filho da puta maluco tinha matado a inocência daquela menininha. Roubado dela sonhos a serem realizados, beijos a serem dados, toda uma vida a ser vivida. Assim como fizera com Danny Straub. E assim como faria novamente, se ninguém conseguisse impedi-lo.

A coisa com dentes e espinhos no estômago de Sophia rugiu outra vez, feroz, queimando suas entranhas. A garota empertigou-se na cadeira e olhou para Ashley Morgan na foto: a criança a fazia pensar em pipas num céu azul de verão, em dentes-de-leão sendo soprados pelo vento. Em anjos. Sophia enxugou o rosto molhado de lágrimas.

- Eu vou pegar você, seu filho da puta – disse Sophia. – Eu vou pegar você.

***

Sophia tirava a .380 e as duas caixas de munição do esconderijo no piso solto do seu quartinho quando Lívia chegou do shopping. A garota ouviu-a entrar e fechar a porta.

- Sophia? – chamou Lívia. – Acho que esqueci meu celular. Benny ligou?

- Ligou – gritou Sophia em resposta. Ela enfiou a arma e as balas na mochila e colocou o piso solto de volta no lugar.

Depois, com a mochila jogada sobre o ombro direito, ela foi para a sala, sem saber bem qual reação esperar de Lívia. Quando viu a garota, a mulher apenas parou no meio do movimento de deixar uma sacola parda do McDonald's em cima da mesa de centro e encarou-a.

- Vai sair? – perguntou Lívia. Correu os olhos pela jaqueta de couro, calça jeans rasgada e botas negras que Sophia usava.

- Vou – disse Sophia.

- Para onde?

Passou pela mente de Sophia mentir, mas, antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, Lívia suspirou fundo e balançou a cabeça.

- Entendo – disse Lívia. E, para a surpresa de Sophia, a mulher enfiou as mãos no bolso do casaco, tirou de lá as chaves do carro e atirou-as para ela. A garota quase deixou-as cair. – Leve meu carro.

- Você...

- Você pode ler mentes, mas eu não preciso disso para saber o que se passa dentro dessa sua cabeça – disse Lívia. Cruzou os braços e olhou a garota da cabeça aos pés. – Eu criei você, Sophia. E tenho muito orgulho disso, por sinal.

Ela ia falar algo mais, mas Sophia interrompeu-a, pulando no pescoço de Lívia e apertando-a com força.

- Meu Deus, você é mesmo igualzinha ao Benny – disse Lívia. – Teimosa. Cabeça-dura. Mas com um bom coração. Não achei que você fosse ficar aqui parada, não quando ele precisa da sua ajuda.

- Eu vou voltar – disse Sophia. – Nós dois vamos. Só precisamos resolver isso. - Ele sabe que você está indo?

Sophia balançou a cabeça.

- Não. E pode não contar para ele? Prefiro que ele fique sabendo só quando eu chegar a New Shore.

Lívia prometeu que não diria nada a Chapman, depois pegou a sacola parda do McDonald's que deixara na mesinha e empurrou-a nas mãos de Sophia.

- Aqui – disse Lívia. – Um Big Mac e uma batata grande, como você pediu. Coma na estrada. Você está magra demais.

E Sophia, que seria magra demais para Lívia mesmo que tivesse cem quilos ao em vez dos quarenta e poucos que pesava, assim como todo filho sempre é magro demais aos olhos de uma mãe, abraçou Livy mais uma vez.

- Eu volto – disse de novo.

Lívia não tinha nenhum poder sobrenatural como Sophia. Não podia ler mentes nem possuía premonição. Mas era uma esposa e uma mãe em todos os sentidos que realmente importavam, e levava dentro de si os inexplicáveis dons e instintos que acompanham ambas as condições. Talvez por isso tenha sido tomada por uma sensação de desgraça quando viu a garota que amava como uma filha saindo pela porta. Foi como um cobertor negro, que se enrolou em torno de seu nariz e de seu coração, ameaçando sufocá-la ao mesmo tempo em que quase a matava de terror. Lívia deu um passo à frente, pronta para correr atrás de Sophia, pronta para gritar o nome dela e dizer para que ela ficasse, porque algo ruim, muito ruim, estava prestes a acontecer.

Então, a sensação passou como uma onda que quebra contra rocha e depois segue seu caminho rumo à areia da praia, deixando Lívia parada sozinha no meio da sala do apartamento, com a mão direita apertando a garganta e respirando com dificuldade.

Por um instante, ela pensou que nunca mais veria Sophia ou Benny de novo.

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