A Voz da Escuridão.

By guiguiroseira

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[Obra registrada na Biblioteca Nacional.] Um garoto de 8 anos é sequestrado e morto na pequena cidade de... More

A Voz da Escuridão.
Ato 1 (1988).
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Ato 2 (2009 - 2014).
Parte I
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Parte II
SÁBADO
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DOMINGO
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5 (i)
5 (ii)
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SEGUNDA-FEIRA
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AVISO: Comemoração.
TERÇA-FEIRA
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QUARTA-FEIRA NEGRA (I)
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2 (I)
2 (II)
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PARTE III
Quarta-Feira Negra (II)
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PARTE FINAL
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EPÍLOGO
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FINAL
Nota do Autor.
Comemoração Concurso StoryTeller.
A VIAJANTE. LANÇAMENTO: 12 DE MARÇO.

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By guiguiroseira


Aos domingos, o pequeno lago atrás do convento de Nossa Senhora do Sagrado Coração lotava de famílias que saíam da missa e iam para lá aproveitar o dia. O gramado ficava cheio de tolhas de piquenique, o pedalinho em forma de cisne agitava as águas, as crianças riam e brincavam e os adultos sentavam à sombra de alguma árvore e sorriam enquanto olhavam seus filhos correndo pra lá e para cá, cheios da energia inesgotável e alegre da infância. Durante o resto da semana, no entanto, o lugar era vazio e tranquilo, e Sophia e Pietra costumavam sentar à beira do lago nos fins de tarde, atirando pedrinhas e conversando até depois da noite cair, quando Miranda gritava para as meninas entrarem, tomarem um banho e se prepararem para jantar.

Pietra estava lá agora, de costas para Sophia, as pernas morenas mergulhadas nas águas quase até as coxas. Sophia foi até ela e sentou-se ao seu lado.

- Oi – disse Sophia.

- Oi – Pietra olhava para os pés que espirravam pequenas gotas de água no ar. – Prove a água. Está ótima.

Sophia tirou suas botas cheias de sangue, arregaçou as calças sujas de terra até os joelhos e mergulhou as pernas pálidas no lago. Pietra tinha razão: a água estava ótima.

- O que aconteceu aí? – Pietra apontou o tornozelo direito de Sophia, torcido a tal ponto que os dedos do pé quase apontavam para trás.

- Quebrei – disse Sophia. – Tropecei em algumas raízes. Foi estupidez.

- Sempre a desastrada.

Deram as mãos. Grilos cantavam ao redor e libélulas desferiam pequenos rasantes no lago, abrindo cicatrizes na superfície da água com suas patas e depois ganhando altura, as asas transparentes batendo e espirrando gotas. Galhos estalaram nas árvores à esquerda e um veado saiu delas, negro e balançando com calma uma galhada gigantesca. Deitou-se perto de Sophia e ela lhe acariciou o focinho. O animal soltou um som satisfeito do fundo da garganta e fechou os olhos diante do toque da garota. Ao lado dela, Pietra agitou os pés e criou pequenas ondinhas que transformaram os reflexos das duas em borrões de cores.

- Você e eu estamos desaparecendo – disse Pietra.

- Você não está desaparecendo – disse Sophia. – Você é o quadro mais nítido na parede da minha memória.

Pietra deitou a cabeça um pouco para o lado, um sorrisinho nos lábios.

- Suas paredes estão queimadas – disse Pietra. – Você ateou fogo em si mesma.

- Eu não me importo em queimar.

Devagar, Pietra se debruçou na direção dela. Sophia se inclinou de volta e fechou os olhos, pronta para receber os lábios de Pietra. O que veio não foi um beijo, mas sim uma mordida de ferro em seu estômago. A dor repentina fez Sophia se dobrar para frente e abrir as pálpebras. Encontrou Pietra com o braço estendido, a adaga em sua mão enfiada até o cabo no abdômen de Sophia.

Antes que Sophia pudesse perguntar a Pietra porque ela faria uma coisa daquelas, Pietra a agarrou pelos cabelos e a atirou no lago. A água, até então quente, envolveu a pele de Sophia como se fosse metal gelado, entrando em seu nariz e em sua boca. Ela tentou voltar à superfície, batendo os braços com desespero, mas tudo o que fazia era mergulhar mais e mais. O sangue saía de seu abdômen ferido e se espalhava, cobrindo tudo com uma névoa vermelha. Através dela, Sophia conseguia ver a silhueta escura de Pietra de pé às margens do lago, a adaga ainda em sua mão. Ao seu lado, o wendigo de galhada interminável, ambos observando Sophia afundar na escuridão.

***

Sophia abriu os olhos e percebeu que estava mesmo se afogando. Alguém enfiara um tubo em sua garganta que a impedia de respirar direito, seus pulmões produzindo um barulho sofrível de engrenagens enferrujadas rangendo. Seu primeiro impulso foi pegar aquela coisa em sua boca e arrancá-la, mas seus pulsos subiram apenas meio centímetro. Estavam amarrados à cama. Máquinas apitavam em algum canto à esquerda dela. Ou à direita, não sabia dizer, não desorientada como se sentia. O pânico começou a se instalar, os olhos de Sophia correndo nas órbitas, sem enxergar nada porque uma luz branca havia sido pendurada acima dela, cegando-a quase que completamente. Pensou incoerente: eu ainda estou atravessando o túnel de luz, ainda estou morrendo e preciso chegar ao outro lado. Então a silhueta de um rosto se debruçou sobre Sophia, dizendo que tudo bem, que ela tinha acabado de acordar e precisava se acalmar. E o que Sophia fez foi fechar as pálpebras, duas lágrimas incrivelmente quentes escorrendo até suas orelhas, e se entregar outra vez à escuridão completa.

***

Foi melhor da segunda vez que acordou. Agora, pelo menos, não havia um tubo invadindo sua traqueia nem amarras em seus pulsos. A luz branca também se apagara, embora Sophia ainda conseguisse ouvir máquinas apitando ali perto. Deitada de costas em um colchão macio, ela encarou o teto pálido e piscou, confusa. Tentou engolir, mas foi como empurrar um monte de areia garganta abaixo, tão seca estava sua boca. Sentindo-se insubstancial, estranhamente sem sustentação como uma marionete sem cordas, Sophia içou-se um pouco para cima, apoiando as costas e a nuca em um travesseiro e sentando-se na cama da melhor maneira que conseguiu. Seu abdômen estava envolvido por bandagens e sua perna direita, esticada à frente, não passava de um bloco de gesso.

Bastou uma olhada em volta para perceber que estava em um quarto de hospital. Cortinas brancas fechadas deixavam entrar apenas alguns raios pálidos de sol. Chapman dormia em uma poltrona ao lado da cama de Sophia, queixo no peito e um livro aberto no colo. Roncava um pouco. Ela abriu a boca deserta para chamá-lo, tossiu, então tentou de novo, bem baixinho. Foi o suficiente para que ele abrisse os olhos e a encarasse.

- Ei – sussurrou Sophia.

- Ei – ele disse. Parecia não dormir bem há dias, o rosto com rugas que não estavam ali antes, alguns fios brancos que Sophia nunca vira e bolsões debaixo dos olhos. Mas o sorriso ainda era o mesmo, grande e genuíno. Sorrisos não envelhecem.

- Tô com sede.

Chapman fechou o livro no colo e deixou-o em cima do criado-mudo, de onde pegou um copinho branco com um canudo. Levou-o até a boca de Sophia e a garota se inclinou um pouco para beber.

- Cuidado, vá devagar – disse Chapman enquanto Sophia solvia a água, sentindo o líquido abençoado encher-lhe a boca seca.

- 'Brigada – disse Sophia quando terminou, repousando outra vez a cabeça no travesseiro.

Chapman devolveu o copinho de água ao criado-mudo e puxou a poltrona para mais perto de Sophia, repousando as mãos no colchão. A garota caçou os dedos dele e segurou-os.

- Você me deu um baita susto, garota – disse Chapman.

- Desculpe – respondeu Sophia. E depois que disse isso, começou a chorar. Era um choro que vinha de dentro, tão doloroso que parecia a ponto de cortá-la ao meio. Em algum momento, Chapman a pegou e puxou-a para um abraço. Que bom que eu tenho alguém com quem eu posso apenas chorar, ela conseguiu pensar. Poucas pessoas têm essa sorte. Ela continuou a soluçar com o rosto no peito dele. Chorou por motivos que sabia. Chorou por motivos que não sabia. Chorou porque estava tão cansada, tão vazia e sozinha, com tanta vontade de sair de si mesma, de abrir um zíper em suas costas, deixar para trás sua pele e apenas voar para longe, para algum lugar onde não precisasse mais viver o dia inteiro com toda aquela dor e tristeza e solidão. Quando conseguiu se controlar um pouco, ela se afastou de Chapman, deixando uma mancha molhada de lágrimas secando na camisa dele.

- Você se saiu bem, Sophia – disse Chapman. – Pegou ele.

Ela não se sentia como alguém que tivesse se saído bem. Mesmo assim concordou, enxugando as lágrimas das bochechas.

- O que aconteceu? – ela perguntou, fungando. – Depois que eu apaguei?

Chapman deu um suspiro cansado e contou para ela. Harvey chegara com seus reforços, os cavaleiros de armaduras brilhantes e com o pior timing da história. Levaram Sophia de helicóptero para o hospital de Fallpound e, de lá, a transferiram para Boston, onde ela estava agora. Passara quase duas semanas em coma: o golpe de adaga por pouco não a matara, e por mais pouco ainda não a deixara em uma cadeira rodas. A lâmina errara a coluna da garota por um centímetro e fizera um belo estrago no estômago e nos intestinos quando saiu por sua barriga. E quanto a Abukcheech? Preso. Logo iria a julgamento e, depois, pegaria um voo só de ida para uma cela acolchoada.

- Você falou com ele? – perguntou Sophia.

- Falei – disse Chapman. – Não consegui nada de importante. Abukcheech irá alegar insanidade para amenizar a pena, mas eu não me importo. Ele é louco, e vai passar o resto de seus dias em uma camisa de força por isso.

- Ele não foi o único que matou alguém – disse Sophia.

Por alguns segundos, Chapman estudou o rosto de Sophia. Por fim, ele disse:

- Se você não tivesse matado aqueles Monstros na clareira, nós não estaríamos aqui agora.

Sophia balançou a cabeça.

- Não estou falando dos Monstros – ela disse.

A garota fechou a boca com um estalo. Chapman aguardou enquanto o silêncio se alongava, quebrado apenas pelo apitar incessante das máquinas no quarto e dos passos das enfermeiras no corredor.

- Eu matei Daniel – Sophia olhava para as próprias mãos, uma criança que fez algo terrível e precisa contar para o pai. Sentiu as lágrimas voltando e deixou-as rolar. – Foi sem querer – como se tivesse quebrado um vaso ou chutado uma bola contra a janela do vizinho.Eu estava desenhando, sabe, tinha que desenhar uma ponte para tirar a gente de lá, porque não tinha outra saída, e eu pedi para ele não tocar em mim e nem tentar fazer nada – as palavras saíam num jorro infantil. Chapman provavelmente não entendia coisa alguma, porque Sophia não contara a ele sobre a ponte, mas ela precisava falar. – Ele não me escutou. Tentou falar comigo, mas eu não ouvi, você sabe como eu fico quando desenho, e daí ele me tocou. Encostou em mim. E ah, Chapman, eu ataquei ele. Pulei em cima dele e fiz ele em pedacinhos. Eu não queria, juro que não queria, mas tem alguma coisa dentro de mim que às vezes toma o controle e eu não consegui impedi-la, eu tentei, teimei e teimei, só que ela não me escutou e matou o Daniel e eu...

Chapman agarrou-lhe os pulsos com força e obrigou Sophia a olhar para ele. Através da névoa de lágrimas, o rosto de Chapman parecia oscilar.

- Escute-me, Sophia. E escute-me bem – disse Chapman. – Não foi sua culpa. Você fez o que devia ter feito. Eu já liderei muitas operações antes e, às vezes, alguém morre. Alguém por quem eu sou responsável morre. Daniel não é o primeiro e nem será o último. Mas acredite em mim, garota: no momento em que você deixa isso penetrar em sua pele, você está perdida. Entendeu? Não carregue esse tipo de coisa nos ombros, porque eles não foram feitos para sustentar esse peso.

Ele soltou os pulsos dela. Tinha segurado com tanta força que seus dedos ficaram marcados na pele cor de leite de Sophia.

- Vocês encontraram o corpo dele? – ela perguntou.

Chapman afastou-se um pouco, recostando-se na poltrona, e fez que sim.

- Encontramos. Ele foi enterrado anteontem, em Portland, onde nasceu. Dei pessoalmente a notícia para os pais dele. Contei que ele foi um herói e que ajudou a salvar muitas vidas.

- Em troca da própria vida – Sophia esfregou o nariz vermelho de choro. – Ele nunca me disse que era de Portland.

- Pois é.

Encararam-se, separados pelos raios pálidos de sol que entravam pelas cortinas. De repente, Sophia sentiu-se incrivelmente cansada. Aquela conversa fora difícil e, inflamada emocionalmente como estava, bastou para fazer a cabeça da garota pesar de sono. Chapman deve ter percebido, porque se levantou da poltrona e pegou o livro que trouxera.

- Descanse – ele colocou a palma no rosto dela e beijou-lhe o alto da cabeça. – Mais tarde passo para ver você, está bem?

Ele estava quase chegando à porta quando Sophia o chamou. Chapman olhou por cima do ombro, as sobrancelhas levantadas em um silencioso "o quê?"

- Eu não vou estar aqui – disse Sophia. Chapman franziu a testa. – Quando você voltar, eu não vou estar aqui.

Uma faísca de compreensão relampejou nos olhos de Chapman. Ele soltou a maçaneta e virou-se de corpo inteiro para Sophia.

- Do que você está falando?

- Estou falando para você que vou fugir – os olhos de Sophia, que sempre pareceram gigantescos em seu rosto pequeno, estavam ainda maiores enquanto ela tentava segurar as lágrimas. – Eu não posso mais fazer isso. Está me matando, não consegue ver? – ela fez uma pequena pausa para recuperar o fôlego. – Por favor, não me procure. Não venha atrás de mim. Deixe-me ir embora sem ter que pedir para você ir embora também.

Chapman fechou os olhos e respirou fundo. Limpou a garganta e disse:

- Não vão permitir que você saia desse hospital.

Mesmo naquele momento, Sophia teve vontade de rir daquilo.

- Por favor, não me insulte – ela disse. – Sabe muito bem que eu posso convencê-los a fazer o que eu quiser.

- Mas e Harvey? Ele irá atrás de você, sabe disso.

- Posso lidar com Harvey – disse Sophia. – Por favor, Benny. Se você me ama, me deixe fazer isso.

Chapman deu um passo na direção dela, depois parou e recuou o pé.

- Mas para onde você vai, Sophia? – ele perguntou. O quase desespero na voz dele fez Sophia sentir-se a pior pessoa do mundo. Mas tudo bem, ela estava acostumada. – Pode me dizer ao menos isso?

Não. Ela não podia, porque também não sabia. Por isso Sophia apenas ficou em silêncio, olhando Chapman lutar contra o impulso de convencê-la a ficar. Só que ele a conhecia bem demais para tentar algo assim.

- Tudo bem – ele disse, por fim. – Cuide-se. Foi um prazer trabalhar com você.

Sem esperar resposta, sem dar nela um último abraço ou beijo, Chapman abriu a porta e, naquele momento, Sophia captou com uma clareza tremenda o pensamento dele.

Amo você, garota, ele cravou no coração dela.

Ah, Benny, eu também amo você, ela enviou de volta.

Chapman saiu e fechou a porta. Sophia passaria anos sem vê-lo outra vez, e pensaria nele todos os dias, sempre com a mesma saudade. Assim como os sorrisos, o amor também não envelhece.

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