Croune acordou com os olhos pesados. Fez uma cara feia ao notar que sua boca descansava na crina do cavalo, e quando enfim se localizou, levou imediatamente a mão ao lado do corpo e conferiu a presença da bolsa.
– Como foi a noite? – perguntou Vanguelb. – Não são muitos que conseguem dormir sobre o dorso de um cavalo em movimento.
Croune esfregou os olhos remelentos.
– Felizmente meus braços sustentaram os balanços que seu corpo fez nas últimas horas – continuou Vanguelb. – Estava ficando cansado.
Ainda costeavam a Floresta Velha. O terreno era plano e as sombras das árvores protegiam suas cabeças do sol matutino. Pararam na borda da floresta para o desjejum. Vanguelb pegou o cavalo, levou-o um pouco mais para dentro da floresta e voltou com ele preso a uma carroça de madeira, velha e com algumas bugigangas dentro.
Estavam prontos para partir quando um som baixo, quase abafado pelo farfalhar das folhas das árvores, chamou a atenção de Croune.
– Ouviu isso? – disse ele, permanecendo imóvel, para não perder os detalhes do som que ecoou novamente por entre as árvores. – LUX! É ele!...
Croune correu desesperadamente, tropeçou em uma raiz exposta e caiu de quatro pés, mas se levantou com a mesma rapidez com que se desequilibrara e continuou correndo. Olhou para baixo assim que alcançou a borda de um barranco entre árvores e deu com a figura de um cão de pelagem negra, peito branco e pernas embarradas.
– LUX! – berrou Croune com um sorriso no rosto.
A cauda de Lux aumentou o balanço quando ele olhou para cima. Cão e garoto rolaram pelo chão quando se encontraram.
– Pensei que tinha perdido você para sempre! – Croune apertou o cão com um abraço enquanto o animal lambia incessantemente seu rosto. – Que bom que me encontrou! Que bom!
Croune pôs-se em pé, com parte de sua roupa suja pelas patas embarradas de Lux. Conforme o cão se contorcia de felicidade, emitindo sons incessantes de alegria, as pernas de Croune eram fustigadas pela cauda inquieta.
– Ele precisa comer alguma coisa – falou Croune quando retornou à entrada da floresta.
– Não temos tempo a perder – Vanguelb disse.
– Mas ele está com fome.
– No caminho cuidaremos disso.
Não se demoraram a partir. Croune tomou assento ao lado de Vanguelb e Lux se aconchegou na parte traseira da carroça, entre embrulhos e potes, de bruços, língua de fora e pernas esticadas.
Seguiram por uma trilha durante duas horas e o assento da carroça não era nada confortável – um dos poucos motivos que levava Croune a manter-se acordado. Suas pernas estavam cansadas de permanecer na mesma posição. Porém, um pensamento lhe tomava mais a atenção do que as pernas formigantes: conheceria Édrei. Ah, se seus amigos soubessem para onde ele se encaminhava agora. Rudi e Nevery sentiriam ciúmes se ficassem sabendo daquele detalhe!
– Espero que não pregue os olhos – disse Vanguelb. – Tente, pelo menos, não cair da carroça se adormecer. E tire a alça do ombro ou acabará deslocando o braço se ficar o tempo todo com esta bolsa dependurada.
– Não está pesado – afirmou Croune. Mesmo assim, descansou a bolsa sobre as pernas.
Vanguelb segurou as rédeas com uma das mãos, com a outra tateou o fundo da carroça. Puxou um dos pequenos pacotes que continha um pedaço de bolo de milho e alcançou-o a Croune que desembrulhou-o e comeu. Vanguelb também pegou um para si. Retirou o envoltório, com a ajuda dos dentes, e comeu a metade. A sobra jogou por sobre o ombro, um pouco relutante, e Lux enfiou o focinho entre a bagagem, catando os pedaços destroçados e devorando-os com poucas mastigadas. Beberam alguns goles de água para tirar os farelos dos dentes.
A noite se aproximou de forma preguiçosa. Atrás deles, o sol havia se despedido, deixando um contorno amarelo-alaranjado no horizonte. Adiante, as estrelas mais robustas começavam a cintilar. O solo seguiu pedregoso por um longo trecho até que a trilha se alargou, dando vida a uma estrada larga e poeirenta. Quando o terreno se elevou, Croune pôde visualizar centenas de candeeiros iluminando um enorme reino no horizonte.
– Quantas luzes – balbuciou Croune, deixando seu pensamento se expressar através de palavras.
A extensão de Édrei era assustadora. As muralhas construídas com blocos gigantescos de pedra – aos olhos de Croune, impossíveis de serem penetradas –, ganhavam postura e grandeza com a aproximação da carroça. Croune foi atraído para o topo da muralha, onde era possível observar, quase cegamente, o contorno de um vigia noturno manchando a claridade que provinha do interior de uma guarita. Enxergou outra e mais outra em pontos estratégicos, todas com sentinelas em guarda, atentos a qualquer movimento naquela escuridão.
Pararam ante o portão. Madeiras grossas, com cravos da grossura de um polegar, mantinham aquele monumento ereto, esbanjando postura e grandeza.
– Como iremos entrar? – perguntou Croune.
– Que pergunta mais boba! Pelo portão, é lógico – respondeu Vanguelb. – Não está pensando em escalar este muro, está?
Uma portinhola se abriu em um dos lados do portão duplo e um soldado com candeeiro em mãos apareceu e começou a se aproximar da carroça.
– De onde estão vindo? – perguntou de longe, ainda caminhando.
– Quiriate – respondeu Vanguelb.
O soldado parou ao lado da carroça, olhou para a parte traseira e apalpou os pacotes, bolsas e potes jogados na superfície de madeira. Lux levantou-se quando uma mão tocou sua cauda. O soldado recolheu o braço, assustado.
– E o que desejam fazer em Édrei? – perguntou, dando uma espiada em Lux, para comprovar que era o animal que ele imaginara que fosse.
– Motivos particulares... – falou Vanguelb. – Agora, se não se importar, Saul, gostaríamos de arrumar algum alojamento para passarmos à noite.
O soldado franziu o cenho ao escutar seu nome. Caminhou à frente da carroça e ergueu o candeeiro acima da cabeça.
– Vanguelb? – disse.
– Com todo o peso da idade – respondeu o velho.
O soldado afastou um pouco o candeeiro.
– Vai nos deixar entrar ou vamos ter que dormir aqui fora? – perguntou Vanguelb.
O candeeiro foi erguido em direção ao muro.
– PODE ABRIR! – gritou o soldado.
Com três estalos e um ringido longo o portão partiu-se ao meio, arrastando-se para dentro e deixando visível uma larga rua deserta.
– Mande lembranças ao seu pai – falou Vanguelb quando o cavalo agitou as patas.
– Mandarei – afirmou o soldado.
Graças aos candeeiros presos aos postes, em ambas as margens da rua, podia-se ter uma ótima visibilidade do caminho. O chão era muito limpo – pelo menos era o que podia ser afirmado em meio às sombras da noite. O som dos cascos do cavalo e do ringir das rodas de madeira interrompiam a vasta quietude que se estendia pela via deserta.
Os olhos de Croune corriam por todos os lados. Tudo era exageradamente organizado. Altas construções erguiam-se à sua volta e lojas robustas tomavam espaço entre prédios menores, porém não menos graciosos.
Convergiram à esquerda e continuaram por uma travessa menor, ocupada por dezenas de tendas enfileiradas nas margens.
Em meio a toda aquela observação meticulosa, Croune estacou uma olhadela curiosa ao lado de uma das tendas, onde um homem armado com um porrete cutucava com o bico da bota um moribundo adormecido no chão.
– Guardas noturnos – disse Vanguelb quando passaram. – Eles têm a obrigação de manter a ordem em Édrei.
– E o que vai acontecer com ele? – perguntou Croune, ainda olhando os homens.
– É provável que o soldado deixe-o dormir ali mesmo, assim que confirmar a embriaguez. Não se pode fazer muito por um bêbado. Alguns não conseguem nem mesmo apontar a direção da própria casa.
A carroça parou em frente a um prédio de dois andares. Uma placa de madeira sobre a porta dizia "Hospedaria Aurora". Vanguelb desceu da carroça num salto desenvolto demais para alguém de sua idade e bateu duas vezes na porta de madeira.
– Vamos! – disse. – Me ajude a descarregar.
Foi para a traseira da carroça e começou a catar algumas bolsas. Croune saltou ao chão. Lux desceu no mesmo instante.
Enquanto pegavam as poucas bagagens na carroça, uma senhora idosa surgiu à porta da hospedaria.
– Não imaginei que chegaria a esta hora – disse a velha. – Pensei ter lido no bilhete que você chegaria amanhã à tarde.
– O tempo é algo que não controlamos, Diná – disse Vanguelb. Adentrou a hospedaria abraçado em alguns embrulhos e com duas bolsas dependuradas nos ombros. Croune pegou as poucas coisas que ficaram na carroça e seguiu atrás.
A hospedaria não era das melhores, se avaliada aos olhos de alguém entendido do assunto. Mas para um garoto de vilarejo como Croune, era o maior e mais confortável local que já havia entrado. Cortinas limpas cobriam as janelas, o chão era bem encerado e um cheiro de flores pairava no ar.
Seguiram a velha por uma escada de madeira que levava ao segundo andar.
– Ficarão no quarto da frente – falou ela –, pois é o único que possui duas camas.
O quarto era grande e o ar ali em cima lembrava o cheiro de jasmim, porém um pouco mais suave. O assoalho brilhou ao receber a luz mortiça do candeeiro que a velha carregava pela alça. Havia uma mesa logo na entrada, acompanhada por duas cadeiras almofadadas. No canto direito da porta ficava um armário vazio, e no fundo, próximo a uma janela que dava para a rua, duas camas bem arrumadas. Um grande baú de madeira, com uma chave presa à fechadura, estava aos pés de uma das camas.
Diná conferiu o óleo dos dois candeeiros dependurados em paredes opostas. Acendeu-os e uma luz amarelada inundou o aposento.
– Meu sobrinho, Lupos – disse a velha –, levará sua carroça e seu cavalo ao estábulo. Prepararei um ótimo desjejum quando o sol nascer. Tenham uma noite agradável!
Saiu e fechou a porta.
As bagagens foram colocadas sobre a mesa. Lux correu a uma das camas e saltou sobre ela, girando em círculo e aninhando-se no lençol limpo.
– Aquela é sua – apontou Vanguelb. – Não gosto de animais em cima da cama.
Croune largou a bolsa sobre a cama e sentou-se de supetão. O colchão era extremamente confortável.
– Há um pequeno pátio e um estábulo atrás da pousada – comentou Vanguelb. – Pela manhã, quero que leve seu cão para fazer as necessidades ali. Espero que ele não use este quarto como latrina.
Vanguelb abriu alguns de seus pacotes, conferindo o conteúdo interno.
– Você era amigo do Ancião Regente que morreu? – questionou Croune.
– Responderei seus questionamentos com o tempo – respondeu Vanguelb. A seguir pegou um dos potes e saiu.
Croune levantou-se e arredou a cortina que mascarava a janela, tirou a pequena tranca e empurrou as duas asas de madeira para fora. Teve uma visão panorâmica dos telhados de algumas residências e das inúmeras tendas que ocupavam a rua em frente à hospedaria. Ficou com os braços cruzados na moldura da janela, observando os barulhos peculiares de uma noite qualquer e deixando que o ar circulasse dentro do quarto abafado.
Vanguelb retornou minutos depois segurando duas canecas de metal. Fechou a porta com o pé, arredou alguns embrulhos para um canto da mesa, usando o braço, e largou as canecas.
– Vamos tomar um chá antes de dormir – disse ele.
Alcançou a Croune uma das canecas. Estava quente, com uma linha de vapor serpenteando para fora da borda. Croune bebericou o chá, temendo queimar os lábios. O gosto era suave como cidreira quando tocava a língua, mas tornava-se amargo ao passar pela garganta.
– É bom ir dormir agora – disse Vanguelb depois que terminaram a bebida quente. – A rua ficará movimentada em breve e o barulho não é nada agradável.
Foi o que Croune fez com muito prazer. Estava exausto, tanto física como mentalmente. Passara o dia inteiro pensando em seu pai e imaginando mil coisas que poderiam, ou, na pior das hipóteses, teriam acontecido a ele. Pegou a bolsa e guardou-a sob o travesseiro de pena de ganso. Deitou com o rosto voltado para a cama de Vanguelb. Lux aninhou-se a seus pés.
Quando virou para a parede, sentiu algo pressionar sua perna e sentou-se. Enfiou a mão no bolso e retirou o saquinho marrom com o colar esquisito e suas três moedas de bronze. Depositou tudo dentro da bolsa, afofou o travesseiro e voltou a deitar. Ficou olhando para Vanguelb, que organizava algumas de suas tralhas no armário ao lado da porta. A última coisa que ouviu foi o barulho de uma das portas do armário se fechando.
Croune acordou muito assustado. Tinha tido um longo e estranho sonho, onde um homem lhe forçava a comer maçãs bonitas e maduras dentro de um quarto escuro e frio.
Demorou a se localizar e quando assimilou onde estava, seus ouvidos captaram dezenas de vozes falando ao mesmo tempo do lado de fora, porém a mais visível delas, dizia: "Maçãs, maçãs. Maçãs bonitas e maduras. Maçãs."
Respirou fundo e sentiu a cabeça doer. Levou a mão à testa e alisou a fronte. Quando a dor amenizou, levantou-se vagarosamente, arredou a cortina, retirou a tranca, empurrou a janela e o sol penetrou no quarto, fazendo-o semicerrar os olhos e protegê-los com a mão.
Os olhos se acostumaram à claridade e Croune contemplou um imenso fuzuê de pessoas abaixo da janela: mulheres com enormes vestidos, crianças caminhando em grupos e, dos dois lados da rua, tendas abertas, oferecendo seus variados produtos à clientela desorganizada. Croune sorriu quando um menino, aparentemente da sua idade, tropeçou em um cesto exposto em frente a uma das tendas e caiu por cima de uma pilha de vasos de barro, levantando-se num salto com o xingamento do vendedor, que só não lhe deu um tabefe porque estava mais preocupado em verificar os estragos na mercadoria. Viu um garoto maltrapilho e sujo se aproveitar da distração de um vendedor de laranjas e tomar posse indevida de uma de suas frutas. Naquele mesmo instante, o pivete começou a correr e Croune entendeu que fugia dos três garotos armados com pequenas espadas que vinham atrás dele.
Quando as crianças desapareceram da vista, Croune largou a cortina e espreguiçou-se, e só então deu falta de Vanguelb. A cama onde o velho dormira – pelo menos era o que Croune imaginava, pois mergulhara em um sono tão profundo que não percebera a presença de Vanguelb no quarto durante a noite –, estava arrumada; no entanto, o mesmo não se encontrava no aposento.
A mesa estava arrumada para o desjejum. Croune foi até ela e encontrou um cesto com pães, fatias de bolo, talheres, canecas, mel, manteiga e uma vasilha com leite. Uma das xícaras estava com o fundo sujo, e uma faca lambuzada com mel. Croune sentou-se no lado oposto.
Fez um farto e agradável desjejum.
Ao terminar, deu com os olhos em um comprido pedaço de papel mal-rasgado, ao lado do cesto de pães. Catou o papel e limpou os dedos melecados e a boca rebocada de leite. Colocou dois pedaços de pão com manteiga no chão e Lux comeu, lambendo primeiro a mistura. Também deixou que ele bebesse um pouco de leite em sua própria caneca.
Pensou em ir à janela para ver a multidão outra vez, mas antes que deixasse a cadeira, Vanguelb entrou no quarto. Tinha o olhar sério e o pensamento distante.
– Vejo que teve um bom desjejum – comentou Vanguelb, olhando para o cesto de pães, o qual estava quase vazio.
– Onde esteve? – perguntou Croune.
– Não leu o bilhete?
– Que bilhete? – indagou Croune.
Vanguelb aproximou-se da mesa e ergueu, com a ponta dos dedos, o pedaço de papel lambuzado com mel e leite.
– Era um bilhete? – perguntou Croune, surpreso.
- Não conseguiu perceber que havia algo escrito nele?
Croune encarou o papel lambuzado nas mãos de Vanguelb. Riscos grandes ocupavam uma das faces. Eram aquelas coisas chamadas letras.
– Não sei ler – disse.
Vanguelb jogou o papel melecado na mesa, desgostoso. Limpou os dedos no casaco.
– Em Quiriate eles não ensinam as crianças a ler?
– Às vezes – disse Croune. – Meu pai ia começar a me ensinar.
Vanguelb balançou a cabeça e foi até o armário. Mas parou com a mão diante da porta, decidindo que não queria nada, e que na realidade nem precisava ter caminhado até ali.
– O que escreveu no bilhete? – perguntou Croune.
– Avisei que iria falar com o rei. Também pedi que não se esquecesse de levar o pulguento para fazer as necessidades lá fora.
– Você é amigo do rei? – perguntou Croune. O baú aos pés da cama de Croune estava com a tampa aberta e Vanguelb fuçava em seu interior.
– Sim.
– E o que foi falar com ele? Contou sobre meu pai? Ele vai nos ajudar?
– Ele é um dos poucos em quem coloco minha confiança. Entretanto, o rei não estava. Foi para Adorain, com o príncipe e a rainha. Em breve o príncipe se casará com a princesa Sara e os dois reis estão organizando os preparativos para o casamento. Infelizmente ficarão fora por alguns dias.
Croune deixou a mesa e sentou-se na cama. Ficou acariciando a cabeça de Lux enquanto olhava para Vanguelb. Arredou as bagunçadas cobertas para um canto, pegou a bolsa debaixo do travesseiro e colocou-a sobre as pernas. Resolveu retirar o embrulho, largou a bolsa de lado, desatou os nós que prendiam o couro e deixou a peça de metal à mostra. Passou a mão vagarosamente pela superfície fria. Arriscou perguntar:
– Por que todos querem esta coisa?
Vanguelb fechou a tampa do baú e guardou algo no bolso de seu casaco marrom.
– Porque essa "coisa" é muito valiosa – disse.
– E o que tem de tão valioso em um pedaço de metal?
– Não estão exatamente atrás deste "pedaço de metal", garoto... – Estendeu a mão. – Me dê aqui.
Croune entregou o objeto.
– Isto não é um simples pedaço de metal, como você está pensando. – Vanguelb girou o objeto nas mãos. – Este é o "Receptáculo de Téldrin". E ele guarda algo que é capaz de acabar com o reinado de Shenack.
– Está dizendo que tem alguma coisa aí dentro?
– Sim.
– E o que é?
Vanguelb passou a palma da mão na saliência hemisférica e dourada do Receptáculo. Entregou-o a Croune.
– Não sei – disse sucintamente. – Está hermeticamente fechado. Não consegui abrir.
Croune ficou sobressaltado.
– Tentou abrir? – perguntou, sobrancelhas franzidas. – Quando?
– Durante a noite, enquanto você dormia. Mas não é tão simples como pensei.
– Mexeu em minha bolsa enquanto eu dormia? Como não percebi?
– Estava em um sono muito profundo, certamente.
– Eu... – Croune alisou a testa dolorida. – Espera aí... Você... você colocou sonífero no meu chá, não foi? Por isto minha cabeça está doendo... Como pôde?...
– Se eu estivesse em seu lugar, ficaria agradecido! – exclamou Vanguelb, fechando grosseiramente a porta do armário. – Isto só demonstra que sou uma pessoa confiável.
– Confiável?
– Bem... Sim. Não por ter lhe dado sonífero, ou por mexer em sua bolsa sem permissão, mas por não roubar o que tinha nela... E precisa ensinar boas maneiras a esse cão. Por pouco não mordeu minha mão.
Croune bufou. Estava indignado com a atitude traiçoeira de Vanguelb... Bem, o Receptáculo estava ali, e isto era o que importava.
– Se nunca viu o que tem dentro do Receptáculo, como sabe que o que ele guarda pode acabar com o reinado de Shenack? – perguntou Croune, grosseiramente.
– Vai fazer muitas perguntas? Não tenho tempo para conversar agora. Preciso sair. E leve seu cão para fazer as necessidades lá fora, como lhe recomendei, antes que ele suje o chão.
– Aonde vai?
Vanguelb tateou o bolso do casaco e deixou o quarto sem responder.
Croune jogou as cobertas bagunçadas por cima do receptáculo, para ocultá-lo, e desceu com Lux até os fundos da hospedaria.
O local era pequeno, com um estábulo abrigando três cavalos – um deles o de Vanguelb –, uma vaca malhada e um bezerro. A carroça de Vanguelb estava empinada ao lado do estábulo, com a traseira tocando o chão. No canto mais isolado do pátio, um homem usava um machado para cortar lenha. O ar cheirava a estrume e terra molhada.
Lux sapateou de um lado a outro, cheirando alguns barris velhos, roçando um amontoado de palhas com o focinho e fazendo uma rápida vistoria em torno do estábulo. Parou ao lado de um poste, andou em seu contorno, cheirou, ergueu a perna e urinou. Em seguida, retornaram para a hospedaria.
Quando o sol chegou ao centro do céu, a hospedeira abriu a porta.
– Trouxe uma sopa deliciosa – disse ela. Usava panos para segurar uma panela de ferro pelas alças. – Dizem que faço a melhor sopa de Édrei. Para ser sincera, eu concordo.
– Eu também concordo – disse um menino de pele clara e cabelos negros, aparecendo de repente na porta com pratos e talheres em mãos.
– Este é Lupos, meu sobrinho – disse Diná a Croune. Largou a panela na mesa.
– Olá! – falou Lupos. Seu rosto e estatura deixavam claro que não era muito mais velho que Croune.
Diná ajeitou os pratos e largou uma colher ao lado de cada um.
– Pronto! – disse ela. E procurou alguma coisa no quarto. – Onde está o velho?
– Saiu – respondeu Croune. – Não disse aonde ia.
– Fique de olho naquele velho resmungão. Ele costuma desaparecer a todo instante. Uma vez me disse que nos veríamos muito em breve e sabe o que aconteceu? Só fui ver aquela cara enrugada cinco anos depois. Agora, aproveite e beba sua sopa enquanto está quente. Se Vanguelb demorar, que beba fria. Ele deve respeitar o horário das refeições.
Croune sentou-se. Lux se aproximou com as orelhas em pé.
– Onde está a bandeja de pães que pedi que trouxesse? – berrou Diná com Lupos. – Desça lá e pegue os pães. E mais uma coisa: traga uma tigela para o cachorro, ele também vai provar minha sopa.
Às pressas, Lupos se retirou.
– Bom apetite, filho – desejou Diná. E saiu.
Croune pegou a concha e encheu o prato com a sopa. Exagerou tanto que precisou curvar a cabeça sobre o prato e beber um pouco com os lábios contraídos.
A porta se abriu mais uma vez e Lupos entrou com o cesto de pães e uma tigela de madeira. Pediu perdão pela demora e desejou uma boa refeição ao sair do quarto.
Croune encheu a vasilha de madeira e a colocou ao lado da cadeira. Lux cheirou, deu duas lambidas e ignorou. Saciou um pouco a fome quando um pão foi jogado ao chão.
Três pratos de sopa e um pão inteiro satisfizeram Croune. Ele afastou o prato, deixou a mesa e recostou-se na cama, e Lux se enroscou a seu lado.
Desta, como da outra vez, Vanguelb apareceu de surpresa, trazendo nas mãos três livros. Um era grande e volumoso, com capa grossa e folhas amareladas. Os outros dois eram menores, tanto em tamanho como em espessura, ambos com capa desgastada. Largou os livros na mesa, olhou para a panela e deu uma cheirada, fazendo uma cara de aprovação.
– A famosa sopa da Diná – disse Vanguelb. – Pena eu não estar com fome. – Enfiou o dedo dentro da panela. – E também está fria.
Retirou um pedaço de papel do bolso e largou na mesa. Arredou a panela e os pratos para um canto, abriu o livro mais volumoso, sentou-se e começou a folhá-lo. Fingindo que lia uma das páginas, olhou de soslaio para Croune, depois para a bolsa sobre a cama, e novamente para o menino. Voltou a folhar o livro e correr o dedo sobre as folhas.
– Gostaria de sair deste quarto? – perguntou.
Sem delongas, Croune respondeu:
– Sim!
Vaguelb virou outra página do livro.
– Estive pensando e cheguei à conclusão de que você poderia aprender a ler e escrever, o que acha? – disse.
Croune sorriu.
– Seria legal! Vai me ensinar?
– Não! Não tenho paciência.
– E como quer que eu aprenda?
– Inscrevi você no Sinogo.
Croune franziu o sobrolho.
– E o que é Sinogo?
– É onde as crianças aprendem a ler, escrever, desenvolver uma profissão e ter um pouco de cultura, o que você precisa muito.
Vanguelb folhou o livro. As folhas estavam grudadas e ele utilizou as duas mãos para desprendê-las em estalos surdos e breves.
– Foi apresentado a Lupos, não foi? – indagou. – O sobrinho de Diná?
– Sim.
– Ele estuda no Sinogo. Pedi a ele que fosse seu guia, que lhe explicasse como tudo funciona por lá. Pode começar em quatro dias.
O menino sorriu. Precisava ocupar-se com alguma coisa, para parar de pensar no pai. Não gostaria de ficar enfurnado naquele quarto até o retorno do rei.
– Mas, se aceitar ir ao Sinogo – falou Vanguelb –, não poderá levar o Receptáculo.
Croune eliminou o sorriso. Olhou para a bolsa, depois para Vanguelb. A ideia de aprender a ler e escrever era tentadora, pois poderia andar pelas ruas de Édrei, conhecer novas crianças e possivelmente conversar com algum garoto do Exército Mirim. Mas sentiu um pesar no peito ao ver o dedo enrugado de Vanguelb apontando o Receptáculo.
– Não seria uma boa ideia sair deste quarto – replicou Croune. – Pode ser perigoso lá fora.
Vanguelb fechou o livro de súbito, como se estivesse prestes a perder uma disputa.
– Quanto a isso, não se preocupe – disse. – Édrei é um lugar muito seguro. Há guardas por toda parte. Sua bolsa poderá ficar trancada dentro do baú.
Parou de falar e abriu o livro novamente. Virou duas páginas. Fingiu ler algumas linhas e disse, sem olhar para Croune:
– Agora, se preferir ficar alguns dias trancado neste quarto, não o impedirei. Não quero que pense que vou fugir com o Receptáculo. Só não seria aconselhável ficar andando com ele por aí. E se eu tivesse a intenção de tomá-lo de você, acha que salvaria sua vida e lhe protegeria até aqui? Teria deixado os soldados lhe matarem, e só depois teria acabado com eles. Seria um problema a menos pra mim.
Voltou a folhar o livro. De tempos em tempos levantava a cabeça, mas sempre que os olhos do menino iam de encontro aos seus, desviava o olhar e voltava ao livro.
– Está bem – disse Croune. – Mas tem uma condição.
– E qual seria? – perguntou Vanguelb, olhos no livro.
– Prometa-me que não tirará a bolsa de dentro do baú.
Vanguelb marcou a página com o dedo, no ponto onde parara de ler, retirou uma chave do bolso de seu casaco e jogou no tampo da mesa.
– Pode ficar com a chave do baú – completou.