O Receptáculo de Téldrin

By AbrahamKirquin

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SINOPSE: Croune Wilan é um garoto pobre, de 11 anos, que mora em um pequeno e excluído vilarejo chamado Quiri... More

PRÓLOGO
2 - OS GAROTOS DE QUIRIATE - PARTE 1
2 - OS GAROTOS DE QUIRIATE- PARTE 2
3 - Uma História Intrigante
4 - Um Passeio de Carroça
5 - Um Bando de Estranhos
6 - Dois Indesejáveis na Taberna
7 - Discussão no Pomar
8 - Carmonélias, Carniça e Lobo
9 - Um Salvador Inesperado - Parte 1
9 - Um Salvador Inesperado - Parte 2
10 - Édrei
11 - O Sinogo
12 - O Patrocinador
13 - Palunfax
14 - O Broche
15 - A Loja Bergarus
16 - A Origem do Receptáculo
17 - Um Diálogo Agradável
18 - Passeio Noturno
19 - O Duelo no Sinogo
20 - O Torneio Mirim
21 - Perseguição Furtiva
22 - O Palácio de Salum
23 - Um Lanche no Telhado
24 - Presentes Para a Viagem
25 - Erioque Conta uma História
26- Caminho Alternativo
27- Uma Noite na Floresta
28- O Quarto Número 5
29 - O Dente de Ibrakul
30- Lítria
31 - O GUIA

1 - O Cliente do Cavalo Branco

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By AbrahamKirquin

A Floresta Velha tinha o ar insalubre e úmido, repleto de minúsculas partículas de mofo. O sol que resplandecia sobre as copas das árvores altaneiras encontrava dificuldades para lançar frágeis fios de luz sobre as raízes mais salientes e aquecer os galhos mais baixos dos pinheiros. O solo era fofo, coberto por folhas e galhos secos, e as pedras, nos pontos menos visitados pelo sol, eram cobertas de musgo.

Mesmo que a natureza, em sua sabedoria, decidisse enviar um canário caridoso para sobrevoar aquela floresta, trazendo em seu bico uma semente qualquer, e, por um breve momento de descuido, o grão resvalasse e descesse quicando pelos galhos ocos de alguma árvore, ele não encontraria ali um local receptivo, pois a vegetação rasteira não tinha espaço naquele perímetro. E o vento não perdia seu tempo zanzando entre as árvores acinzentadas; preferia fazer sua viagem por cima, acariciando a parte mais verde da flora.

A pobre floresta era um lugar excluído, repleto de lendas falsas. Um ambiente inapropriado aos pulmões sensíveis. Um lugar onde poucas pessoas enfiariam seus pés, pois nada de interessante habitava ali.

Mas havia na orla desta floresta um amontoado de madeiras, no formato de casas, divididas por uma única rua de terra batida. As casas, embora velhas e desajeitadas, não eram exatamente uma barafunda arquitetônica – eram apenas simples.

Os telhados de palha eram manchados por fezes de pombas que voavam de casa em casa à procura do melhor lugar para construírem seus ninhos. A rua era suja e malcuidada, e barris velhos e rançosos (antigos recipientes de vinho) apodreciam nos cantos excluídos pelo sol, servindo de residência para baratas, ratos e outros bichos que habitam esses ambientes com cheiro desagradável. Cachorros sarnentos perseguiam gatos magricelas de um lado a outro, cruzando portas, pulando janelas, sem que fossem enxotados pelas travessuras.

No geral, era um local tranquilo, pobre, e totalmente sem graça. E poucas pessoas no mundo, tirando algumas dezenas de indivíduos que habitavam ali, tinham ouvido falar naquele vilarejo chumbrega chamado Quiriate.

Mesmo esquecido no recanto mais isolado das vastas terras do Sul, corria o comentário de que Quiriate fazia parte das terras de Édrei. Mesmo que fosse verdade, isto pouco importava, pois o poderoso rei Salum nunca enfiaria as rodas de suas ricas e belas carruagens naquele lugarzinho sujo.

A monotonia englobava os moradores dia a dia, e a mesma rotina cansativa renascia todas as manhãs: os mesmos indivíduos, as mesmas conversas, as mesmas crianças molambentas e desarrumadas agitando-se de um lado para outro à procura de algum divertimento naquele fim de mundo.

Para que acontecesse uma tênue mudança no convívio social, era preciso que algum desorientado cruzasse por ali para encher a cara na Taberna Moruski – de longe, o recinto mais visitado –, trazendo em seus lábios alguma notícia (ou fofoca) do mundo lá fora – o que era raro de acontecer.

O sortido comércio abria suas portas ao nascer do sol, na vã expectativa de receber novos clientes. As pequenas lojas só não entravam em completa falência porque moradores compravam de moradores, e às vezes também surgia um vendedor ambulante vendendo ou comprando algumas quinquilharias.

Entretanto, apesar de ser um vilarejo um tanto desagradável e sem muito a oferecer, Quiriate gozava de uma vantagem inalienável. Esta prerrogativa ficava no final da rua, ao lado da última casa do vilarejo. Era um galpão velho, com paredes escurecidas pelo tempo e frestas da largura de um dedo. A chaminé escurecida pendia para um dos lados, olhando amuada na direção de dois tijolos que um dia fizeram parte de sua estrutura, mas que agora adormeciam sobre o telhado sujo. Uma placa desnivelada posicionava-se acima da porta carunchada. As letras garrafais, entalhadas na madeira, diziam: "UNTUÁRICA WILAN SEJA BEM-VINDO".

Lucios Wilan, morador da última casa daquela rua, era um granfar muito habilidoso, e os produtos que manipulava em sua untuárica eram vendidos em uma estreita salinha localizada na parte frontal do velho galpão. Havia, ali, posicionados em dezenas de prateleiras, uma variedade gritante de antídotos, unguentos, chás e outros medicamentos.

Era um orgulho tê-lo como vizinho, diziam os moradores, pois dificilmente uma doença tomava um estágio avançado ou virava uma epidemia. E qualquer morador de Quiriate que não se encontrasse em boa saúde, poderia facilmente se locomover até a untuárica e sair com um produto receitado pelo próprio granfar.

Lucios tinha um filho de onze anos chamado Croune. Era um garoto mirrado, de pele bronzeada, que dificilmente penteava o cabelo castanho escuro. Este ficava encarregado das entregas no vilarejo, das coletas de ervas no campo e, raras vezes, ajudava a misturar os ingredientes na panela de ferro. O menino não gostava de exaltar-se para os amigos, mas aprendera, por si só, a manipulação de cinco antídotos e sentia-se orgulhoso por este feito. O pai, no entanto, nunca arriscou colocá-los nas prateleiras de sua loja.

Não seria mentira afirmar que a Untuárica Wilan era o terceiro ponto mais procurado do vilarejo – o que deixava claro que as pessoas preferiam encher a cara na Taberna Moruski antes de comprar algum medicamento para ressaca, ou se empanturrar com os doces da Confeitaria Líria, o que levava muitas vezes a uma má digestão, e consequentemente a uma futura ida à untuárica.

E, para alegria dos moradores, de tempos em tempos surgiam pessoas de outras terras à procura dos bem falados produtos do Sr. Lucios Wilan, o que geralmente levava lucro, também, a outros pontos comerciais. Claro, isto se o viajante resolvesse bebericar um vinho na taberna, comer um docinho na confeitaria ou comprar um inútil e tosco utensílio na loja de velharias.

E foi exatamente este o motivo que mudou para sempre a rotina de Quiriate naquele dia.

Era o início de uma manhã ensolarada, no horário em que o Sr. Tom Moruski, como de costume, varria a frente de sua taberna com aquela vassoura desengonçada feita de palha, quando aquele estranho homem adentrou o vilarejo.

O cavalo, conduzido pelo sujeito, possuía uma bela pelagem branca e galopava de peito estufado e cabeça encolhida. Ninguém arriscou dizer o lugar de origem daquele homem, pois suas roupas não eram moda naquelas terras, e sabe-se lá onde poderiam ser. Tinha o porte de um príncipe, mas alguns requisitos não ajudavam nesta conclusão: não vinha acompanhado por escolta, e sobre a cabeça não trazia coroa. Suas roupas eram brancas como a neve. Vestia um sobretudo de malha fina, com detalhes dourados nas mangas e nas lapelas. Era um homem alto e robusto. Jovem de aparência. Um par de olhos esverdeados destacava o rosto pálido e bem desenhado. O cabelo liso e claro mantinha-se perfeitamente jogado para um dos lados. A bainha que trazia na cinta era de ouro, o mesmo material do cabo de sua espada.

Cavalgou lentamente pela rua, postura ereta. Ignorou o olhar carrancudo do Sr. Moruski e a curiosidade do Ancião Regente, que enfiou a cabeça gorducha pela janela, em análise ao recém-chegado. O que um homem bem vestido queria naquele lugar?

Parou quando alcançou o galpão da Untuárica Wilan. Desceu do cavalo e não o amarrou. Ergueu a cabeça e leu a placa de identificação. Aproximou-se e bateu duas vezes na porta, ignorando o bilhete grampeado na mesma, com o aviso "Não abriremos hoje. Atendimento somente em caso de emergência", e aguardou.

Um cão de pelo negro, que lambia um osso de carneiro ao lado da porta, se aproximou, cheirou os calcanhares do desconhecido e balançou a cauda à espera de uma carícia na cabeça. O homem lhe dirigiu um olhar complacente, mas não esticou a mão para atender ao pedido do animal que, não parecendo decepcionado, farejou outra vez as pernas imóveis antes de voltar para seu brinquedo em forma de osso.

Ouviu-se o som de um trinco, e um palmo de porta foi aberto. A metade do rosto de um garoto magricela ficou visível no vão.

– O que deseja? – perguntou o menino.

– Preciso comprar um antídoto – falou o homem.

O menino esticou a cabeça pelo vão e espiou o bilhete cravado no centro da porta de madeira.

– Não estamos atendendo hoje, senhor – disse, apontando com o dedo indicador na direção do bilhete.

– Percebi o bilhete... No entanto, gostaria de falar com seu pai.

– Ele realmente está muito ocupado com uma encomenda, senhor – respondeu Croune. – Não pode atender hoje.

O homem prontamente replicou:

– É que se trata de uma emergência.

O semblante do menino mudou de repente.

– Emergência? – disse rapidamente. – Espere um minuto, por favor.

E fechou a porta.

O homem permaneceu do lado de fora e, pela primeira vez desde que chegara, deu uma olhada à sua volta. Contemplou uma rua poeirenta e pouco movimentada. Uma mulher, com um lenço mal adaptado na cabeça, chutou um gato pela porta de uma casa e o animal correu com um pedaço de peixe roubado entre os dentes. Duas crianças idênticas – provavelmente gêmeas – correram na direção de um comércio, onde aparentava ser a confeitaria. Seus olhos alcançaram o Sr. Moruski, o qual estava com a vassoura imóvel junto ao corpo e a carranca de sempre voltada para a Untuária Wilan. Quando percebeu o olhar do desconhecido, o taberneiro girou sobre os pés, encostou a vassoura de palha na parede e entrou com passos largos e pesados em sua taberna, resmungando palavras ininteligíveis.

Um breve som de porta se abrindo.

– Em que posso ajudá-lo? – disse o Sr. Lucios Wilan, cortando a concentração do desconhecido. Usava um avental sujo e esfregava as mãos em um trapo velho.

O homem esticou a mão para um cumprimento formal.

– Me chamo Guilbor Spartex – disse. – É um prazer conhecê-lo, Sr. Lucios.

Lucios esticou a mão em resposta ao cumprimento. Ao seu lado surgiu a cabeça de seu filho, curioso e admirado com o jeito singular daquele estranho pregado diante da porta.

– Meu filho falou-me de uma emergência... – disse o granfar analisando o homem de cima a baixo.

– O que procuro não é para mim, mas sim para um amigo – respondeu Spartex.

– Entendo... E o que procura, Sr. Spartex?

– Alquiméria.

O Sr. Lucios esboçou um rosto pensativo. Demorou-se, enquanto esfregava as mãos novamente no trapo. Por fim, fez o convite.

– Entre, por favor.

O recinto era pequeno e um tanto empoeirado. Havia uma cadeira velha em um canto isolado e um balcão de mogno, bem aplainado, com arranhões superficiais na base. O ambiente cheirava a muitas ervas. Potes e garrafas estavam organizadamente enfileirados nas prateleiras junto às paredes velhas e salpicadas de furos, do outro lado do balcão. Raios de sol matutinos penetravam pelos indesejáveis furos nas paredes e minúsculos flocos de poeira brincavam nos feixes de luz.

– Acho que devo ter alguma coisa ainda – disse Lucios, pegando uma pequena escada de quatro degraus e ajeitando-a em uma das paredes. As madeiras rangeram quando jogou seu peso sobre o primeiro degrau. Achou sensato esclarecer um detalhe: – Poucos sabem, mas o veneno de uma serpente laodicéia age lentamente no organismo humano – observou. – A pessoa infectada não demonstra sintomas nas primeiras 24 horas, mas logo em seguida o corpo começa a enfraquecer até que ela... – Achou sensato não dizer a palavra que completaria a frase. Prosseguiu: - Por isto é fundamental que ingira o antídoto nas primeiras 24 horas após a picada deste ofídio.

– Estou ciente – disse Spartex.

– Faz quanto tempo que seu amigo foi picado?

– Ele será medicado a tempo, não se preocupe.

Lucios voltou a vasculhar as prateleiras, enquanto o menino Croune, debruçado no balcão, ficava olhando em completo silêncio para o cliente incomum. Seus olhos castanhos desceram até a bainha de ouro, depois às botas marrons, e por último subiram para o rosto plácido do Sr. Spartex.

Lúcios Wilan subiu mais dois degraus e vasculhou uma prateleira. Colocou um pote próximo à luz de uma fresta e leu o rótulo. Largou novamente. Desceu e trocou a escada de parede.

– Alquiméria bloqueia completamente os efeitos do veneno – continuou ele. – Uma vez houve uma infestação de laodicéias em um vilarejo chamado Kérnia, e mais de vinte pessoas morreram por não terem conhecimento deste antídoto. Dizem que foi algo horrível!

Mais alguns rótulos foram averiguados e as garrafas colocadas de lado.

– Acho que tenho alguma coisa no estoque – comentou Lucios, descendo a escada e ignorando o último degrau. – Vou dar uma olhada lá dentro.

E logo o Sr. Lucios desapareceu atrás de uma porta estreita.

O cão de pelo escuro, que a pouco brincava com um osso de carneiro em frente à untuárica, entrou pela porta e cheirou as pernas de Spartex. Ergueu a cabeça, exibindo uma linha larga de pelos brancos que nascia no pescoço e estendia-se até o peito, botou metade da língua para fora e ficou abanando a cauda. Desta vez, Spartex desceu a mão e massageou a cabeça do canino, dando um motivo para sua cauda aumentar o balanço.

– Sua espada é muito bonita – disse Croune, ainda debruçado no balcão.

O cliente acariciou uma última vez a cabeça do cão antes do animal retirar-se do recinto.

– Gostou da espada? – perguntou Spartex a Croune. Olhou para sua espada e logo para o menino – Quer vê-la mais de perto?

Antes que o menino tivesse a oportunidade de responder – o que seria um sorridente "sim" – Spartex desembainhou a espada e largou-a sobre o tampo do balcão.

Croune ficou surpreso com a atitude do estranho, já que nunca um cliente havia lhe dado autorização para segurar sua espada. A maioria não era muito cortês – não com crianças. Olhou para Spartex para ter certeza que não era uma pegadinha, e só então apanhou o instrumento.

Poucas vezes Croune teve a oportunidade de segurar uma espada de verdade, mas podia afirmar que aquela era a mais linda de todas as que tinha visto. Balançou-a. Era pesada, muito pesada. O maior peso estava concentrado no cabo de ouro maciço. Sua lâmina, sem marcas de uso, brilhava intensamente em meio a pouca luz daquele ambiente. Era possível ver um nariz e um cabelo despenteado na lâmina prateada.

Teria feito um exame mais minucioso, não fosse seu pai surgir com uma garrafa de vidro em mãos e interromper sua concentração.

– Devolva a espada ao moço, Croune – ordenou. – Desculpe-me, Sr. Spartex. Meu filho é fascinado por estes objetos cortantes. Acha que essas coisas são brinquedos. Essas crianças de hoje não possuem noção do perigo.

– Ele parece ser um bom garoto, Sr. Lucios – comentou Spartex. Pegou a espada das mãos do menino e embainhou-a. – Um garoto adorável... Croune, não é? Bonito nome.

O menino devolveu o sorriso, mas evitou olhar para o pai, pois temia ver um rosto neutro em desaprovação ao elogio.

– Aqui está! – disse Lucios, largando sobre o balcão uma garrafa transparente, arredondada e de gargalo comprido. Uma rolha prendia um líquido verde-claro e viscoso. – A última garrafa.

– Qual o valor? – perguntou Spartex.

– Três níquens – Lucios deu o preço.

Spartex arredou o sobretudo com a mão e deixou a parte interna à mostra. Era uma vestimenta diferente de qualquer outra já vista por Croune e Lucios. Continha oito bolsos, cada um medindo cerca de um palmo, divididos em duas fileiras verticais. De um deles, Spartex retirou um saquinho marrom com uma cordinha prendendo a boca frouxa. Largou-o no balcão, fazendo soar um seco ruído de metal.

Lucios levou os olhos do saquinho a Spartex, um tanto perturbado. Passou por sua cabeça que o cliente desejava que ele mesmo abrisse voluntariamente o saquinho e pegasse os níquens correspondentes ao valor do produto.

– Tem 10 aguiluns aí dentro – disse Spartex. – Fique com eles. É o pagamento pelo incomodo causado.

Lucios ficou confuso – para não dizer embasbacado. Aguiluns não eram vistos frequentemente naquelas terras e todos sabiam que um único aguilun valia no mínimo cinco vezes mais que um níquen. Nem uma pessoa em sã consciência gastaria essas valiosas moedas em Quiriate, o que levou o Sr. Lucios a pensar que aquilo se tratava de uma brincadeira. Ele simplesmente riu, como se ri de uma piada mal entendida.

– Não me farão falta – comentou Spartex.

O dono da loja assumiu de repente uma expressão séria. Catou o saquinho com os olhos fitos no cliente, desamarrou a cordinha que prendia a boca e espiou o interior.

– Sr. Spartex, eu...

– De onde venho, Sr. Lucios – interrompeu o cliente -, aprendemos a ser generosos com o próximo. Uma dezena de moedinhas prateadas não me fará falta.

Foi visível a felicidade que Lucios demonstrou ao perceber o quanto tinha lucrado naquela manhã. Abriu um sorriso largo e imediatamente correu as mãos na prateleira, embaixo do balcão, e pescou um pote verde e achatado, não muito menor que a palma de uma mão, e colocou-o ao lado da garrafa com o líquido viscoso. A seguir, juntou tudo dentro de um saco cinza-escuro, cedido apenas aos melhores clientes.

– Leve esta amostra grátis de unguento cicatrizante – disse Lúcios. – Ainda está em fase de aperfeiçoamento, mas demonstrou bons resultados até agora. – Em seguida, deu uma ordem ao filho. – Leve os produtos do Sr. Spartex à sua montaria, Croune. Agradeço pela preferência, Sr. Spartex. Prometo lhe dar um desconto na próxima compra.

O menino de bom grado apanhou os produtos e acompanhou Spartex até o cavalo branco, depositou o saco cinza-escuro no alforje, certificando-se de que não cairia quando o cavalo se movimentasse. Quando se afastou, Spartex agradeceu, encaixou o pé no estribo, ajeitou-se na sela e despediu-se. O cavalo branco movimentou-se sem comando algum.

Croune, ainda admirado com o aparecimento daquele simpático homem, ficou observando-o enquanto o cavalo tomava distância. Provavelmente, não teria a oportunidade de ver outra espada tão bonita quanto aquela. Um homem gentil com crianças seria ainda mais difícil. Não era o tipo de cliente que aparecia com frequência no vilarejo.

O cavalo alvo havia tomado uma boa distância, enquanto Croune fervilhava seus pensamentos. Havia passado pela taberna, floricultura, e aproximava-se, agora, da Confeitaria Líria. Mas foi no momento que cruzava pela primeira casa da rua, a casa do Ancião Regente, que Croune viu o Sr. Spartex soltar uma das mãos e levá-la ao peito. Quando sua mão voltou às rédeas, um volume escuro, do tamanho de um punho fechado, escorregou por baixo de seu sobretudo, deslizou pela perna e caiu murcho ao chão.

Croune imediatamente semicerrou os olhos, para ter certeza que um pequeno volume disforme estava jogado no meio da rua. E tão logo fez isto, bateu em disparada pela via empoeirada. Lux, seu cão de estimação, ao ver seu dono correr, deixou o osso ao lado da porta e seguiu-o por instinto.

O menino cruzou como uma flecha por dois garotos que acabavam de sair pela porta da confeitaria, obrigando-os a recuar um passo, e quase trombou com uma mulher que cruzava a rua segurando um cesto de roupas sujas. O saquinho marrom foi recolhido do chão com um grito:

– SR. SPARTEX! ESPERE!...

Spartex estava longe e não escutou. Mas não foi motivo para Croune deixar de correr atrás do complacente homem aos berros.

– SR. SPARTEX!

O cavalo branco deixou a trilha gasta e adentrou a Floresta Velha, e o garoto não conseguiu alcançá-lo antes que desaparecesse entre as árvores. Ficou parado na borda da floresta, esperando seus olhos se adaptarem a pouca claridade do novo ambiente. Avançou, espiando de um lado a outro, Lux sempre ao seu lado.

A floresta exalava seu costumeiro odor de madeira velha. Fileiras e fileiras de árvores altaneiras se espalhavam por todos os lados e poucos filetes de luz conseguiam passar espremidos entre um galho e outro. Raízes grossas e disformes nasciam e se escondiam, formando ondulações no solo, em meio a folhas e galhos secos.

Cão e dono caminharam pela estreita trilha que ziguezagueava entre as árvores. Croune viu, de relance – ou pensou ter visto –, o lombo do cavalo branco desaparecer atrás de um cedro, em uma das curvas da trilha. Correu, conforme a liberdade concedida pela flora, parando na árvore de referência, mas não avistou nenhum cavalo. Girou de um lado para outro, desconsertado.

Atrás dele, Lux, com seu focinho fino, roçava as folhas secas no chão. Afastou-se da trilha, seguindo um cheiro imperceptível ao olfato humano. Latiu duas vezes e correu mata adentro.

Croune seguiu-o, esgueirando-se entre galhos e construindo a ideia de seu cão ter avistado o cavalo branco. Saltou por cima de uma árvore caída e resvalou em uma pedra coberta de musgo. Só permaneceu em pé porque conseguiu ser ágil o suficiente para se agarrar em um galho baixo. Seus olhos então deram de encontro com Lux, a poucos metros de distância, parado junto a uma velha figueira. A cabeça, movimentando-se para cima e para baixo, deixava claro que lambia alguma coisa ao pé da árvore.

Croune avançou alguns passos e pôde ver claramente o motivo das lambidas incessantes de seu cão. Sangue. Sangue seco no braço de um homem.

Não conseguiu definir a idade do moribundo que estava escorado na figueira, devido à barba cerrada e camadas finas de barro que cobriam diferentes partes do rosto, com uma concentração maior na bochecha esquerda. A capa marrom estava rasgada e molhada, com um bom número de folhas secas grudadas a ela. Aglomerações maiores de sangue cobriam o ombro direito e a nuca.

Croune aproximou-se um pouco mais, os olhos cravados no pobre homem. Parou e correu os olhos pelo terreno em volta dos pés. Catou um galho seco e disforme e, com a ponta, cutucou, meio receoso, o braço desfalecido do homem.

Nada aconteceu.

Estaria morto?

Cutucou uma segunda vez.

Sem resposta.

– Pare de lambê-lo, Lux – cochichou, mas o cão não obedeceu.

A cabeça do homem, pendida sobre o peito, apontava com o queixo um medalhão de ouro. "Não pode ser!", pensou Croune.

O próximo movimento foi levar o galho ao objeto dourado. Tentou erguê-lo com a ponta da vara, mas o metal resvalou e caiu novamente sobre o peito. Em uma segunda tentativa, segurou a vara com mais firmeza e conseguiu ver o que estava impresso no medalhão: o desenho de um sol, rodeado por ramos de louro. O homem ferido era um Ancião Regente.

Croune ficou encarando o objeto dourado por um tempo, apenas pensando em voltar correndo ao vilarejo e contar a seu pai que um Ancião Regente estava morto na floresta. Mas quando tentou largar o medalhão e recolher a vara, foi pego de surpresa.

Como se despertasse de um sono não planejado – da mesma forma que um soldado que dorme em serviço é despertado pelo som da espada de seu antagonista –, o homem agarrou bruscamente o galho e encarou quem estava na outra ponta. Tudo aconteceu tão rápido, que Croune arregalou os olhos, assustado, e não atinou soltar a vara. E com a mesma rapidez com que agarrou o galho, o homem soltou-o, aos gemidos.

Croune deu alguns passos para trás, olhos arregalados, vareta na mão.

Lux, a esta altura, tinha escondido a língua e saltado para o lado, mais assustado que o próprio dono. Surpreso e com o coração ainda descompassado, Croune finalmente soltou o ar e jogou o galho no chão, as pernas frouxas e trêmulas.

Aos poucos, ele voltou a raciocinar. Foi aí que falou, mas se tivesse a oportunidade de voltar atrás, não teria feito aquela pergunta idiota:

– O senhor está bem?

Dois gemidos e nenhuma resposta.

O pobre homem estava muito debilitado. Tentou ajeitar as costas no tronco da figueira, mas conseguiu apenas lamúrias. Respirou fundo. Fechou os olhos, como se aquela atitude o ajudasse a amenizar a dor.

– O senhor é um Ancião Regente, não é? – perguntou Croune. Novamente não obteve resposta.

O moribundo abriu os olhos morosamente e moveu a cabeça na direção de Croune. Examinou-o de cima a baixo, com um olhar apertado, parando na mão direita, onde estava o saquinho marrom.

– O que está fazendo aqui, moleque?... Responda! – vociferou ele, em um tom nada amigável.

Croune achou que a pergunta havia sido feita pela pessoa errada; afinal de contas, o intruso ali não era ele. Mesmo assim, respondeu:

– Vim atrás de um homem a cavalo que...

– Um Soldado? – interrompeu o homem.

– Não, não. Um cliente de meu pai. Ele deixou cair...

– Saia daqui, pulguento! – xingou o Ancião, empurrando Lux com a perna no momento em que ele deu uma segunda lambida no sangue seco de seu braço. – Não sou um pedaço de osso para que fique me lambendo...

Sentiu uma dor no ombro e descansou o braço no colo.

– Quem mais está com você, além deste cão fedorento?

– Ninguém, senhor – respondeu Croune.

– E você... – disse o Ancião Regente, ou pelo menos tentou dizer, pois o grito de um animal desceu pelos galhos, desviando sua atenção. Ele ergueu o rosto ao céu, com dificuldade, e Croune acompanhou o olhar debilitado do homem, que levava ao topo da figueira, onde fiozinhos de sol se infiltravam entre as apertadas folhas. Lá em cima, bem no topo, no último galho, estava uma águia, solitária e inquieta.

O animal berrou outra vez, e o som estridente desceu pelos galhos. Alguma coisa naquela ave preocupou o homem, pois sua respiração ficou agitada de repente. Mas como, no momento, aquilo não era a melhor atração para Croune, ele disse:

– Espere aqui, senhor. Vou chamar meu pai para ajudá-lo.

– Não, não faça isto! – retorquiu o homem, tirando os olhos da ave e baixando-os a Croune. Tentou apoiar o braço saudável no chão, mas a mão resvalou e ele caiu sentado outra vez. – Não chame ninguém!... Estou bem... Estou apenas... apenas descansando.

– Mas o Senhor está machucado. Tem sangue ali, olha. Meu pai pode ajudá-lo com...

– Falei que estou bem! – respondeu o homem, novamente ríspido. Olhou de soslaio para o topo da figueira. – Não quero que traga ninguém aqui.

Manteve os olhos em Croune por um tempo, analisando-o de cima a baixo. Depois, olhou para o vazio, e uma pequena linha de decepção se formou em seu rosto.

– Qual seu nome, menino? – indagou.

– Croune. Croune Wilan.

– De onde você é, Troune Wilan?

– É Croune Willan, senhor – corrigiu Croune.

– Que seja!

– Sou de Quiriate, senhor.

– Quiriate? É um vilarejo não é?

- Sim, senhor.

- Fica longe daqui?

– Não. Fica aqui ao lado, próximo à floresta – Croune apontou com o polegar por cima do ombro.

O homem encheu os pulmões cautelosamente. Soltou o ar em uma só lufada.

– Preciso que me faça um favor... Um favor muito, muito importante – falou.

Croune não ousou perguntar o que era. Ficou apenas matutando em sua pequena cabeça se o tal favor seria mais importante que os cuidados com aqueles ferimentos.

– Primeiro, diga para seu cão parar de me lamber – pediu o Ancião, não ousando meter outro pontapé na direção no animal. Era melhor evitar uma dor desnecessária.

Lux se afastou depois que Croune chamou duas vezes sua atenção.

Então o homem arrastou-se para o lado, com seus inseparáveis gemidos, e um buraco escuro e disforme apareceu no tronco da figueira, rente ao chão. Enfiou o braço saudável no vão estreito e retirou uma bolsa rasgada, úmida e embarrada. Deitou-a sobre as pernas; e enquanto tirava um embrulho de couro do interior da mesma, Croune conseguiu visualizar o toco de uma flecha enterrado abaixo de seu pescoço. Virou o rosto, sentindo náusea.

– Quero que tome conta disto... Guarde-o muito bem... Muito... muito bem mesmo.

Croune ficou olhando par ao embrulho enquanto o homem falava.

– Pegue! – disse o Ancião, alcançando o embrulho.

Croune guardou o saquinho marrom no bolso da calça. Achegou-se morosamente e esticou as mãos vazias.

O objeto não era exageradamente pesado, mas era rígido como uma pedra. O couro, o qual envolvia seja lá o que fosse, estava molhado, e duas cordas velhas e gastas, amarradas em forma de cruz, impediam que se soltasse.

– O que é isto, senhor? – perguntou, analisando o fardo que tinha em mãos.

– Não importa! – vociferou o homem. – Apenas quero que guarde com você.

Resmungou duas vezes em voz baixa devido à dor que sentiu no braço direito ao se ajeitar no tronco da árvore.

– Não o mostre a ninguém... Guarde em um local seguro, e não tire os olhos dele. Entendeu?

– Tenho certeza que meu pai o guardará em um local bastante seguro.

Outros dois guinchos da águia repercutiram pela floresta, mais fortes que os primeiros. O homem mirou o topo da árvore.

– Venha cá! – pediu ele, olhos agora em Croune. – Apro... aproxime-se de mim.

Croune deu um passo à frente.

– Mais perto... Quero conferir se o couro está bem amarrado – apontou o dedo para o embrulho. – Venha, venha... mais perto. Não posso me esticar.

Croune inclinou o corpo, esticou os braços e ficou encarando aqueles olhos cansados, em meio ao rosto sujo, esperando que o homem pegasse o pacote.

Sem tempo para revidar, foi agarrado de supetão pelo colarinho. O embrulho caiu sobre as pernas do Ancião e resvalou para o chão quando Croune desequilibrou-se para a frente.

– Escute aqui, garotinho – disse o homem, entre dentes apertados, boca colada no ouvido direito de Croune. –, não ouse descumprir minhas ordens, entendeu? Eu disse para não contar a ninguém, o que inclui seu pai ou qualquer outra pessoa que viva em seu vilarejo. Deve fazer exatamente como lhe ordenei, está me ouvindo? – Segurou Croune um pouco mais à frente, olho no olho. – Há pessoas muito más atrás disso que lhe dei. Farão muito mal a você se descobrirem que está me ajudando. Por esta razão, não deve mostrar a ninguém, ninguém mesmo. É melhor que fique de bico calado, entendeu?... Conhece as Três Leis Supremas, não conhece?

Croune balançou a cabeça, concordando.

– Sabe elas de cor? – indagou o homem. – Ótimo! Recite-me a terceira lei. Vamos, diga!

Assustado, de olhos arregalados e sendo chacoalhado por aquela mão ensanguentada, Croune obedeceu:

To... Todo residente de um Vilarejo está... está sob a autoridade da Ordem dos Anciões Regentes, devendo, assim, respeitar e obedecer a qualquer membro pertencente à mesma.

Muito bem! – disse o Ancião. – Acredito que não sairá correndo como uma menininha quando eu soltá-lo, não é? Pois, se fizer isto, vou até seu vilarejo e relato sua desobediência a seu Ancião Regente. Depois levarei seu nome ao Conselho dos Anciões Regentes, e eles expulsarão sua família do vilarejo.

Fez que ia largar Croune, mas puxou-o novamente.

– E tem mais: se realmente decidir não me ajudar, citarei seu nome para as pessoas más que estão me procurando. Direi que é meu cúmplice. Virão atrás de você e de sua família... Agora, prometa que vai fazer como lhe disse. PROMETA!

Croune assentiu com a cabeça, enquanto era sacolejado para frente e para trás.

Lux, que até o momento apenas lambera, sem maldade, um braço ensanguentado, agora rosnava, com os dentes à mostra. O Ancião jogou o menino para trás assim que o cão latiu duas vezes e ameaçou morder uma perna suja que estava estirada ao chão.

Croune engatinhou de costas. Levantou-se de um salto, alisando a nuca. Percebeu que o saquinho marrom tinha caído de seu bolso quando foi lançado ao chão e agachou-se recolhendo-o dentre as folhas secas, tornando a depositá-lo no bolso. Manteve certa distância da figueira. Lux havia parado de rosnar e agora estava ao lado de seu dono, como um fiel guarda-costas.

– Pegue isto! – ordenou o moribundo, empurrando o embrulho a Croune.

O objeto não se moveu mais que quinze centímetros. Foi recolhido pelo menino.

– Não pense que fico feliz em pedir um favor a um fedelho como você... Mas não tenho outra opção.

Croune retrucou em pensamento ao ouvir a palavra "favor". Um favor poderia ser negado; ele, por outro lado, estava sendo forçado a obedecer. O coração acelerado lhe trazia arrependimento por ter entrado naquela floresta. Não negou que a ideia de correr tinha passado por sua cabeça antes de ser ameaçado.

– Guarde esse objeto até que eu o procure. Para seu próprio bem, espero não ter nenhuma decepção quando lhe encontrar novamente. Se fizer tudo direitinho, pedirei a seu Ancião Regente que lhe dê gratificações. Agora, vá, e leve seu cão fedorento junto. O que está esperando? Quero que saia imediatamente desta floresta! Anda, anda!

– Mas...

– Falei para ir! Não quero mais ouvir sua voz. Saia, saia daqui!

A pobre criança, confusa e desorientada, tentou lançar outro questionamento, porém não teve chance. Retirou-se às pressas. O barulho das folhas secas sob seus pés não foram suficientes para abafar os gritos que ribombaram à suas costas.

– E NÃO ME APAREÇA NESTA FLORESTA ATÉ QUE EU O PROCURE! – berrou o Ancião Regente, uma última vez. Finalizando estas palavras, voltou a encarar a águia no topo da figueira.

Croune só parou de correr quando alcançou a trilha entre as árvores. Pensativo, olhou na direção que tinha vindo. Deu um tapinha no bolso, para certificar-se de que o saquinho marrom não havia caído e seguiu caminhando.

Assim que saiu da floresta, acompanhado por seu inseparável amigo canino, e com a cabeça cheia de perguntas que não podiam mais ser respondidas, a águia cruzou o céu, piando alto, e seguiu na direção do Norte, desaparecendo atrás das montanhas.


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