Viajamos boa parte da noite com Barbara ao volante e depois de uma pequena parada na estrada voltamos a viajar, só que comigo na direção desta vez.
- O que conseguimos pegar na despensa daquela casa? – Edinho falou para quebrar o silêncio que predominava na cabine.
Todos nós estávamos com sono e creio que essa foi uma estratégia dele direcionada a mim, algo para evitar que eu dormisse ao volante.
- Aveia, leite... – Barbara disse logo após se espreguiçar.
- Já podemos fazer uma papa. – Edinho emendou.
Depois de bocejar mais uma ou duas vezes e coçar novamente os olhos Barbara continuou:
- É uma boa idéia. Também pegamos uns pacotes de arroz, um pouco de tempero em tabletes e duas latas de feijoada.
- Papa ou feijoada em lata. – Dei uma pequena pausa enquanto balançava a cabeça negativamente. – É triste saber que essas são as melhores opções que temos de comida hoje em dia.
- Qual é? Não fala assim, você é a parte otimista do grupo, lembra? – Barbara disse sorrindo e batendo de leve no meu braço.
- Jotah, lembra daquele boi... – Edinho começou a falar para me provocar.
- Não. – Respondi tentando ser firme mas deixando um sorriso correr pelo rosto ao perceber a intenção dele.
-... Que matamos perto de Patos?
- Não. Não.
- Estava muito bom. Você lembra o nome da cidade?
- Não. Você não vai me fazer lembrar disso? Fala sério.
As garotas estavam a gargalhar vendo minha cara após a brincadeira sem graça de Edinho.
- O que aconteceu? Por que você lembrou disso? – Natalia perguntou a Edinho no intervalo entre as risadas.
- Porque eu não me lembro de ter visto ninguém tão animado com um pedaço de carne nas mãos. Nem mesmo um desses zumbis.
- Ah vai se ferrar. – Respondi sorrindo.
- Não se preocupe canibalzinho. – Barbara disse afagando minha cabeça. – Vamos arrumar um pedaço de carne fresco pra você.
Após mais uma série de risadas de todos à minha volta ouvimos um barulho vindo de baixo do carro e eu senti um tranco no volante, que por pouco não saiu do meu controle. Pisei nos freios e fiz de tudo pra manter a caminhonete na estrada até que não muito depois ela parou.
- O que foi isso? – Natalia perguntou assustada.
- Perdemos um pneu. – Falei depois de por a cabeça pra fora da janela e constatar que o pneu havia furado.
- Dois. – Barbara emendou. - O do meu lado também está furado.
- Qual a chance disso acontecer?
- Tem alguma coisa na estrada. – Edinho disse após olhar pela janela que dá vista para caçamba.
- É uma armadilha. – Falei apertando o volante com toda a força. – É uma droga de armadilha.
- Pra nós? – Natalia perguntou.
- Tem alguém vindo. – Barbara disse enquanto olhava pelo para-brisa com a luneta do rifle. – Estão longe, mas se aproximando.
- Que merda.
- Quantos são? – Edinho perguntou enquanto já preparava uma arma em mãos.
- Dois veículos pequenos. – Barbara respondeu ainda olhando pela mira. São quadriciclos.
- A gente tem que dar o fora daqui. – Edinho falou e imediatamente foi seguido pela reação de Natalia partindo para abrir a porta.
- Não! – Falei interrompendo sua ação. – Não abram a porta. Vocês dois saiam pela janela de trás, assim não serão vistos.
- Ainda estão longe, Barbara? – Edinho queria certificasse antes de tomar qualquer atitude.
- O suficiente para fazer o que Jotah disse, vão rápido.
Natalia passou primeiro pela janela e foi seguida de perto por Edinho que levou uma das pistolas com ele. Eles chegaram até a caçamba e desceram para se esconder atrás do carro.
Eu ainda não conseguia enxergar bem os quadriciclos que Barbara disse que se aproximavam, então precisei perguntar novamente a ela o quão perto eles estavam.
- Não vai demorar para enxergá-los sem isso. – Ela respondeu tirando a mira de frente do olho.
- Tá. É sua vez de sair. Aí eu dou o sinal e abro a porta, aí vocês três correm pra fora da pista por trás de mim.
- Eu não vou sem você.
Eu odeio a mania de Barbara em implicar e discordar de mim, mas sei que discutir com ela nunca dá em nada e tempo é um bem escasso na situação que enfrentamos. Nem sequer tentei mais uma vez convencê-la e acabei passando minha atenção a Edinho e Natalia.
- Edinho? Quando eu der o sinal vou abrir a porta do carro para cobrir você e Natalia. Vocês vão correr pra fora da pista e se esconder no meio desses matos até a gente descobrir o que aqueles palhaços querem, beleza?
- É. Entendi. É só falar.
Respirei fundo, olhei pra Barbara mais uma vez e abri a porta do carro ao mesmo tempo em que falei "agora" pra Edinho. Desci imediatamente depois e fiquei ao lado da porta, tampando a visão e permitindo que Edinho e Natalia escapassem sem serem vistos. A caminhonete não estava longe do acostamento e o mato era alto o suficiente para nos cobrir mesmo que estivéssemos em pé e por estar tão próximo da margem da estrada era o único abrigo possível.
Depois de Edinho e Natalia terem saído e Barbara ter decidido ficar comigo não restava mais nada a fazer além de esperar e descobrir quem eram as pessoas que estavam chegando.
Os quadriciclos não tardaram a nos alcançar e quando chegaram perto suficiente deu pra ver que havia dois homens em cada um deles. Os veículos pararam a cerca de oito metros do nosso carro e os homens já desceram com armas em punho. Eu já estava fora do carro e fui o primeiro a ser abordado.
- Aí, levanta as mãos e sai de perto do carro! – O garupa de um dos quadriciclos falou.
Levantei as mãos lentamente e continuei ao lado da porta.
- As mãos na cabeça e sai de perto da porra do carro, você é surdo?! – O mesmo homem repetiu e prosseguiu se aproximando de mim. - Você também piranha, levanta as mãos e sai do carro.
O homem já estava bem próximo a mim quando o garupa do outro quadriciclo foi até Barbara. Ele abriu a porta com força e tirou ela com violência de dentro da caminhonete.
- Sai da porra do carro logo. – Ele falou segurando ela pelos cabelos.
- Tira a mão... – Falei dando um impulso como se fosse partir para cima dele.
- Fica na tua. Não faz eu ter que te matar antes da hora. – O homem perto de mim disse engatilhando a arma e a encostando na minha cabeça, um pouco a frente da orelha.
Eu ainda com as mãos na cabeça, e dessa vez bem mais próximo a ele, apenas o observei de canto de olho esperando que Edinho começasse a disparar contra eles, o que não demorou a acontecer. Quando os outros dois homens desceram dos veículos, os disparos vindos do mato começaram.
O homem que me apontara à arma se assustou e eu não hesitei em acertar o cotovelo em sua arma, seguido de um soco certeiro em seu queixo. O homem se afastou cambaleando e eu partir para cima dele acertando uma joelhada em suas costelas e o derrubando no chão. Montei em cima dele o imobilizando com meu joelho em cima do seu tronco e passei a acertá-lo inúmeras vezes com socos diretos na sua face.
Em meio à seqüência de golpes que desfiguravam o rosto do homem ouvi o grito de Barbara que pedia por minha ajuda. Imediatamente larguei o moribundo jogado no asfalto e partir na direção de Barbara. Ela estava ao chão do outro lado do carro com um dos homens em cima dela a esganando. Joguei-me por cima do capô do carro e puxei a calibre 38 da parte de trás da cintura, disparando repetidas vezes assim que tive visão o suficiente para acertar o homem.
O nosso ataque foi rápido, inesperado e devastador. Em menos de dois minutos tínhamos inutilizados todos os quatro agressores. Rolei por cima do capô até alcançar o chão do outro e me ajoelhei ao lado de Barbara para ver com ela estava.
Seu pescoço estava roxo e bem machucado mas ela estava bem. Após tossir duas ou três vezes ela conseguiu se levantar com minha ajuda. Edinho e Natalia já haviam saído de dentro do mato e analisávamos a situação por um instante.
- A gente tem que ir embora daqui. – Edinho alertou.
- Tá. Nós vamos e... – Em meio à frase que dizia senti uma dor súbita irradiando pela minha cabeça e fazendo meus ouvidos zunirem. Minha visão ficou turva imediatamente e eu senti minha cabeça inclinar para frente fazendo com que meu rosto acertasse o metal da porta do carro. Tudo aconteceu muito rápido e em menos de um segundo eu estava no chão, com a cabeça explodindo, a visão cada vez mais embaçada e a respiração pesada. O que está acontecendo comigo?