Capítulo 15

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A semana seguinte foi solitária e surrealista. As folhas caíam; chovia bastante, escurecia mais cedo; em Monmouth House as pessoas se reuniam sem sapatos em volta da lareira do térreo, queimando a lenha da reitoria, roubada furtivamente durante a noite, e bebiam sidra quente. Eu passava direto, a caminho da aula, e voltava direto para à beira do fogo, mal falava com os presentes, nem mesmo com os mais animados, que me convidavam para descer e participar da alegria comunitária do dormitório.
            
Suponho que eu estivesse apenas meio deprimida, uma vez que se encerrara o período das novidades, devido às características inesperadas do local onde eu me encontrava: uma terra estranha, com pessoas e costumes estranhos e clima imprevisível. Acreditava estar doente, mas não creio que estivesse; apenas sentia frio sem parar e não conseguia dormir mais do que uma ou duas horas por noite às vezes.
            
Nada é mais solitário ou perturbador que a insônia. Passava as noites estudando grego, até as quatro da madrugada, até que meus olhos ardessem e a cabeça zumbisse, até que a única luz acesa em Monmouth House fosse a minha. Quando não conseguia mais me concentrar no grego e o alfabeto começava a se transformar em triângulos e garfos incoerentes, eu lia O grande Gatsby. Era um de meus livros favoritos, retirado na biblioteca numa tentativa de encontrar algo que me animasse. Mas, claro, o livro só me fez piorar, uma vez que o mau humor impedia a visão de qualquer outra coisa além das trágicas semelhanças que imaginava haver entre mim e Gatsby.
            
Em uma dessas noites mal dormidas, resolvi ir a uma festa que estava tendo em uma das fraternidades.
            
- Sou um sobrevivente -, um garoto me disse, na festa. Era louro, bronzeado e alto demais e antes mesmo de perguntar eu já sabia que vinha da Califórnia. Calculo que tenha sido algo em sua voz, algo na pele avermelhada, cheia de sardas, esticada por cima dos ossos da clavícula, esterno e das costelas, sem que músculos de qualquer tipo se destacassem.
          
Ele gritava para mim, vencendo a música.

- Sabe, sofri muito na vida, por causa do acidente e tudo mais -, (já ouvira a história; problemas nos tendões; grande perda para o mundo da dança; sorte das artes performáticas), - mas como tenho personalidade muito forte, sei o que desejo. As outras pessoas são importantes para mim, claro, mas sempre consigo o que eu quero delas.
          
Sua voz ríspida exibia o staccato que os californianos por vezes adotam quando exageram na tentativa de parecerem nova-iorquinos, embora conservasse um traço radiante e arrastado do otimismo do Golden State. Ex capitão da liga uniformizada dos malditos atletas olímpicos. Era o tipo de garoto galã, entediado, fútil, que em minha terra natal não me daria a menor bola. Ele tentava me cantar, notei. Não dormira com ninguém em Vermont, fora um rapaz ruivo, da qual eu nem me recordo o nome, que eu havia conhecido em uma festa na primeira semana. Alguém me contou depois que ele era herdeiro de uma fábrica de papel no Meio-Oeste. Passei a desviar os olhos sempre que o encontrava (a saída da perfeita gata-aborralheira, como diziam minhas colegas de classe).
          
- Quer um cigarro? -, eu gritei para ele.
          
- Não fumo.
          
- Eu também não. Só em festas.
     
Ele riu.
          
- Está bem, me dá um -, disse na minha orelha. - Não sabe onde a gente pode arrumar um baseado?
       
Quando eu estava acendendo o cigarro dele, alguém acertou uma cotovelada nas minhas costas que me atirou para frente. O pessoal dançava, a música estava alta de alucinar, a cerveja empoçava na pista e uma turma promovia arruaças no bar. Não dava para ver muita coisa, fora a massa dantesca de corpos no salão e uma nuvem de fumaça pairando próxima ao teto. Só onde a luz do corredor lançava um facho eu distinguia um copo virado aqui, uma boca com batom rindo acolá. A festa estava horrível e ia piorar - alguns calouros já vomitavam enquanto esperavam a vez desconsolados na fila do banheiro -, mas era sexta-feira, e depois de ter passado a semana inteira estudando grego, eu não me importava. Sabia que não encontraria meus colegas de classe ali. Tendo comparecido a todas as festas de sexta à noite desde o início do ano, aprendera que eles as evitavam como se fossem a Peste Negra.
           
- Obrigado -, o garoto disse. Ele me levou até perto da escada, onde havia menos barulho. Ali era possível conversar sem gritar, mas depois de seis vodkas com tônica eu não conseguia pensar no que dizer a ele, aliás nem me lembrava de seu nome.
           
- Você estuda o quê? -, perguntei finalmente, meio tonta.
           
- Artes performáticas. Você já me perguntou isso.
           
- Desculpe. Esqueci.
          
Ele me olhou, crítico.
           
- Você precisa relaxar um pouco. Olhe para suas mãos. Está tensa demais.
           
- Já relaxei o máximo que consigo -, respondi com sinceridade.
          
Ele me encarou e notei por sua expressão que me identificara.
            
- Sei quem você é -, ele disse, examinando os botões da minha blusa social branca. - Ariana contou tudo a seu respeito. É a caloura que estuda grego com aquela turma cavernosa.
            
- Ariana? Como assim? O que ela andou falando a meu respeito?
            
Minha pergunta foi ignorada.
            
- Acho melhor tomar cuidado -, ele disse - Ouvi uma puta coisa horrível sobre esse pessoal.
            
- O quê?
            
- Dizem que eles adoram o diabo, porra.
            
- Os gregos desconhecem o diabo -, rebati pedante.
            
- Bem, não foi o que eu soube.
            
- E daí? É tudo mentira.
            
- E tem mais. Soube de outra coisa também.
            
- É mesmo?
            
Ele não quis contar.
            
- E quem falou? Ariana?
            
- Não.
            
- Quem mais poderia ser?
            
- Austin Mahone -, ele disse, como se isso encerrasse o caso.
        
Por coincidência, eu conhecia Mahone. Um péssimo pintor, fofoqueiro incorrigível, cujo vocabulário se compunha quase totalmente de palavrões, obscenidades e a palavra pós-modernista.
            
- Aquela porco -, falei. - Você o conhece?
         
Ele me olhou com certa hostilidade.
            
- Austin Mahone é meu amigo.
         
Eu realmente havia bebido demais.
            
- É mesmo? -, falei. - Então me explique uma coisa: por que a namorada dele vive de olho roxo? É verdade que ele mija nos quadros, que nem Jackson Pollock?
            
- Austin -, ele retrucou friamente - é um gênio.
            
- Acha mesmo? Só se for um mestre na fraude.
            
- Ele é um pintor sensacional. Conceitualmente, sabe. Todo mundo no Departamento de Arte diz isso.
            
- Sei. Bem, se todos dizem isso, deve ser verdade.
            
- Muita gente não gosta do Austin -, ele estava furioso. -, Creio que a maioria sente inveja dele, só isso.
       
Alguém puxou minha manga, na altura do cotovelo. Livrei-me com um puxão. Com minha sorte, só poderia ser Ariana Grande, tentando me atacar como inevitavelmente ocorria no final das festas de sexta-feira. Senti o puxão novamente, desta vez mais forte e mais impaciente; irritada, dei meia-volta e quase derrubei a pessoa que estava fazendo isso.
        
Era Lauren. Vi primeiro os olhos verdes, luminosos, confusos, faiscantes na luz mínima do bar.
           
- Oi -, ela disse.
         
Encarei-a.
           
- Oi -, falei, tentando sem sucesso disfarçar o quanto me sentia radiante e encantada ao vê-la. - Como vai? O que está fazendo aqui? Quer que eu pegue uma bebida?
           
- Está ocupada? -, ela perguntou me ignorando.
         
Era difícil raciocinar. Os cabelos pretos se derramavam de modo tentador sobre suas têmporas.
           
- Não, claro que não -, falei, sem fitá-la nos olhos, concentrando na área fascinante em torno da testa.
           
- Se estiver ocupada, tudo bem. -, ela disse baixando a voz, olhando por cima do meu ombro. - Não pretendia interromper nada.
        
Claro. O sr. Galã. Dei meia-volta, esperando um comentário ferino, mas ele havia perdido o interesse em mim e conversava animado com outra garota.
          
- Nada disso. -, falei. - Não estava fazendo nada, mesmo.
          
- Quer passar o fim de semana fora?
          
- Como?
          
- Vamos sair agora. Robin e eu. Ela tem uma casa de uma hora daqui.

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