Capítulo 8

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Tive que dividir a discussão em dois capítulos, peço desculpas.
Boa leitura e deixem uma estrelinha no final, por favor, se não a raquel vai achar que eu sou uma completa fracassada. "-"

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Assim que as xícaras foram distribuídas e Lauren serviu o chá, com sua gravidade de mandarim, passamos a falar na loucura induzida pelos deuses: poética, profética e, finalmente, dionisíaca.

- Que, de longe, é a mais misteriosa -, Vanessa disse. - Acostumamo-nos a pensar no êxtase religioso como uma característica exclusiva das sociedades primitivas, embora ocorra com frequência entre os povos mais civilizados. Os gregos, como sabem, não eram muito diferentes de nós. Um povo muito formal, extraordinariamente civilizados, bem reprimido. E, contudo, eram frequentemente levados en masse ao entusiasmo mais turbulento - em danças, frenesis, matanças, visões -, que para nós, suponho, pareceria demência clínica, irreversível. Mesmo assim os gregos - alguns deles, no mínimo - entravam e saíam de tal estado conforme o desejavam. Não podemos descartar por inteiro tais relatos como mitológicos. Existe documentação confiável, embora os comentaristas antigos se mostrassem tão espantados com tais fenômenos quanto nós. Alguns alegam que resultavam de rezas e jejuns, outros, que a bebida os provocava. Sem dúvida o caráter coletivo da histeria tem algo a ver com isso também. Mesmo assim, é difícil compreender o extremismo desse fenômeno. Os participantes ao que parece retroagiam a um estado não racional, pré-intelectual, onde a personalidade era substituída por algo de todo diferente - e por 'diferente' entendam um estado não mortal em todas as suas características. Inumano.

Pensei nas Bacantes, uma peça teatral cuja violência e selvageria me incomodam, tanto quanto o sadismo e sanguinolência do deus em questão. Comparada a outras tragédias, dominadas por princípios reconhecidos de justiça, por mais medonhas que sejam, representa o triunfo da barbárie sobre a razão: sombria, caótica, inexplicável.

- Não gostamos de admitir -, Vanessa continuou, - porém a idéia de perder o controle fascina pessoas controladas como nós mais do que a maioria dos outros temas. Todos os povos verdadeiramente civilizados - os antigos tanto quanto nós - atingiram a civilização por meio de repressão voluntária dos instintos animais anteriores. Nós, aqui nesta sala, seríamos, no fundo, tão diferentes assim dos gregos ou romanos? Obcecados pelo dever, piedade, lealdade, sacrifícios? Todos esses fatores que para o gosto moderno são tão arrepiantes?

Olhei em torno da mesa, para os seis rostos reunidos. Para o gosto moderno, eram mesmo de arrepiar. Imaginei que outro professor, em cinco minutos, telefonaria para o Apoio Psicológico, quando Lauren falou em armar a turma de grego e marchar sobre a cidade de Hampden.

- E qualquer pessoa inteligente sente a tentação - em especial perfeccionistas como os antigos e nós aqui presentes - de tentar assassinar o ego primitivo, emotivo, ávido. Mas cometem equívoco.

- Por quê? -, Robin disse, debruçando-se ligeiramente.

Vanessa arqueou uma sobrancelha; o nariz longo, fino, conferia a seu perfil certa agudeza, como um etrusco em baixo-relevo.

- Porque é perigoso ignorar a existência do irracional. Quanto mais instruída, inteligente e reprimida é a pessoa, mais necessita de métodos para canalizar os impulsos primitivos que subjugou com tanto esforço. Caso contrário, essas forças ancestrais poderosas acumularão força e energia até se tornarem violentas o bastante para romper as amarras, e tanta violência acumulada costuma, com frequência, suplantar totalmente a vontade. Como alerta para o que pode ocorrer na ausência de uma válvula de escape, temos o exemplo dos romanos. Dos imperadores. Pensem, por exemplo, em Tibério, o filho adotivo rebelde, tentando corresponder às expectativas de seu pai Augusto. Pensem na pressão tremenda, insuportável, que aguentou, seguindo as pegadas de um salvador, de um deus. As pessoas o odiavam. Por mais que tentasse, jamais era bom o suficiente, não conseguia se livrar do ego odiado, até que por fim as comportas se romperam. Ele foi arrastado por suas perversões e morreu, velho e louco, perdido nos adoráveis jardins de Capri. E nem ali foi feliz, como se esperaria, mas desgraçado. Antes de morrer, escreveu uma carta ao Senado: 'Peço a todos os deuses e deusas que me tragam devastação mais completa que a sensação diária de sofrimento'. Pensem nos que o sucederam. Calígula. Nero.

Depois de uma pausa:

- O gênio romano, e o defeito romano -, disse, - talvez tenha sido a obsessão pela ordem. Podemos  ver na arquitetura, na legislação, na literatura - a negação feroz do caos, da escuridão, do irracional. -, Ela riu. - É fácil perceber por que os romanos, no geral muito tolerantes com as religiões estrangeiras, perseguiram tão impiedosamente os cristãos. Absurdo pensar  que um criminoso comum teria ressuscitado dos mortos, e mais absurdo ainda que seus seguidores o adorassem bebendo seu sangue. Por ser ilógico, isso os apavorava, e fizeram de tudo para esmagar tal fé. No fundo, penso que tomaram medidas tão drásticas porque essa religião não só os assustava, como os atraía terrivelmente. Os pragmáticos  mostram-se com frequência supersticiosos. Apesar de toda a sua lógica, existiu povo mais mergulhado no medo abjeto do sobrenatural do que os romanos?

- Os gregos eram diferentes. Possuíam a paixão pela ordem e simetria, tanto quanto os romanos, mas reconheciam a insensatez de se negar o mundo invisível, os deuses antigos. Emoção, trevas, barbárie. -, Ela olhou para o teto por um momento, o rosto quase perturbado. - Lembrem-se do que falamos há poco, das cenas terríveis, sanguinárias, que por vezes são mais sedutoras? -, disse. - Trata-se de um conceito bem grego, e muito profundo. Beleza é terror. O que chamamos de belo provoca arrepios. E o que poderia ser mais aterrorizante e belo, para mentes como a dos gregos e a nossa, do que a perda total do controle? Soltar as amarras do ser por um instante, estraçalhar a estrutura de nossos egos mortais? Eurípides descreve as mênades: cabeça virada para trás, garganta voltada para as estrelas, 'como corças, mais do que seres humanos'. Ser absolutamente livre! As pessoas podem, sem dúvida, lidar com tais paixões destrutivas de maneiras mais vulgares, menos eficientes. Quanta glória, contudo, há em libertá-las num único estouro! Cantar, gritar, dançar descalço na mata, no meio da noite, sem noção da mortalidade, como um animal! Falo em mistérios poderosos. Falo nos urros dos bois. Mel jorrando da terra. Se tivermos força suficiente na alma, poderemos rasgar o véu e olhar direto para a beleza crua e terrível; deixar que Deus nos consuma, nos devore, nos descarne. E, depois, nos devolva renascidos.

Estávamos todos debruçados, paralisados. Meu queixo, caído. Tomei consciência de minha respiração ofegante.

- E esta, para mim, é a sedução terrível do ritual dionisíaco. Difícil para nós imaginá-lo. O fogo do puro ser. -, Concluiu Vanessa.

A História Secreta - CamrenWhere stories live. Discover now