Ângulo De Depressão

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ONZE DIAS ANTES

- Ouvi que todo mundo grita quando cai... Mesmo os que pulam.

A voz veio do nada, fazendo Kara levar um susto, e fazendo seu estômago estremecer e despencar na barriga, como se ela realmente tivesse se soltado e estivesse em queda livre através do nevoeiro. Kara não conseguia ver ninguém. A bruma era grossa, a oportunidade perfeita para ela se deixar levar pelo branco aveludado sem ninguém saber. A espessura enganava, a densidade a embalava numa falsa sensação de segurança, a envolvendo como se fosse agarrá-la, como se ela pudesse se esconder nela por um tempo. Num sussurro úmido, a névoa dizia que se entregar seria mais fácil, indolor, que ela seria simplesmente envolta em uma nuvem, que não cairia. No entanto, parte de si queria cair. Era por isso que ela estava ali. E não conseguia tirar aquela música da cabeça.

Oh, my darling Alex, up in heaven, so they say
( Ah, minha querida Alex, lá no céu é o que dizem )

And they'll never take you from me, anymore
( E nunca mais vão tirar você de mim )

I'm coming, coming, coming, as the angels clear the way
( Eu estou indo, indo, indo, com os anjos limpando o caminho )

So farewell to the old Kentucky shore.
( Por isso, do litoral do velho Kentucky me despedirei. )

- Desce daí. - A voz veio novamente. Sem corpo. A loira não conseguia nem dizer de que direção vinha. Era rouca, suave. Voz de mulher.

A paciência na voz fez Kara lembrar de seu pai. Ele teria tentado convencer alguém a descer de uma ponte. Talvez convencer essa pessoa cantando. Sorriu um pouco com isso. A voz do pai estava em suas primeiras lembranças. Rica e familiar. No começo Kara sempre levava a melodia, seu pai assumia o tom de tenor e sua avó entrava com as harmonias agudas. Cantavam durante horas. Era isso o que faziam. Era nisso que eram bons. Era por isso que viviam. Mas a garota não queria mais viver por aquilo.

- Se você não descer, eu vou subir. - Outro sobressalto. Tinha esquecido que ela estava ali. Rápido assim, tinha esquecido que ela estava ali. Seu cérebro estava tão nebuloso quanto o ar à sua volta, como se tivesse respirado a bruma. Kara reparou no sotaque da outra, sem conseguir identificá-lo.

Sua mente falhou por um instante. Boston. Ela estava em Boston. Tinha estado em Nova York na noite anterior e na Filadélfia duas noites antes. Tinha sido Detroit na última segunda-feira? Tentou se lembrar de todas as paradas, de todas as cidades, mas tudo estava misturado num borrão. A jovem raramente via muito das cidades onde se encontrava. Um lugar apenas se fundia no outro.

De repente ela estava ao seu lado, equilibrado-se na grade, com os braços apoiados nas treliças, sua postura imitando a da loira. Ela era pouco mais baixa que Kara, que notou seu tamanho depressa, olhando ao redor dos seus próprios braços erguidos e agarrados à viga de suporte acima da sua cabeça. Seu coração afundou no peito e aterrissou com um baque nauseante no fundo da barriga. Bateu e pulou. Ficou se perguntando se a mulher era uma aproveitadora ou uma assassina em série. Deu de ombros, cansada. Caso estivesse preocupada em ser morta, poderia simplesmente se soltar. Problema resolvido.

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