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(Webbabuio - Oriente de Téritis)

— Kayara! — Berrava Caim, machucado. Suas asas estavam vibrando com a cor vermelha e buracos lhes passavam, em carne viva.

A ruiva estava dentro do casebre, já tinha conhecido a bruxa que vivia ali e foi recebida com muito carinho pela mesma, o que era muito estranho, já que as bruxas normalmente queriam outras mulheres bem longe de suas moradas. Ela saiu de dentro da casa às pressas ao ouvir a voz do anjo, usava uma roupa que condizia com ela e já parecia muito melhor do que quando era jovem. Era o milagre que as Vilenes podiam fazer com um ser vivo.

Na chuva que ainda não tinha passado desde o beijo que dera em Zurik, mesmo ele estando como "monstro", ela correu para acudir aquele velho conhecido. Kayara parecia muito diferente do que se poderia lembrar da Rainha Raposa.

— Oh, por Askari! Caim?! O que faz aqui? — O aparou antes que caísse. Estava realmente enfermo. Sangrava por buracos feitos por armas humanas e flechas trespassava seu peito, braços e asas.

Zurik saiu da casinha em seguida, indo ver o que estava acontecendo. Kayara ainda não podia ficar saindo e se comprometer com a saúde, já que ainda se recuperava da dosagem de "humanidade" que recebera fora de Téritis.

O anjo, sendo cortado pelas gotas frias e pesadas, tocou o rosto da ruiva e soltou algo sobre ela. Uma carta. Um pacote. Era uma entrega que poderia custar a vida de Caim. Ela caiu aos poucos na chuva, segurando o anjo malfeitor, o acusado do crime de traição ao deixar a pequena Deusa ser estuprada. Acalentou-o.

— Tudo vai passar, Caim! Tudo há de melhorar mais cedo ou tarde! — Kayara o sacudia na esperança de mantê-lo acordado enquanto a bruxa, que não tardou a vir atrás daqueles dois que saíram tão apressados pelo escarcéu, já buscava folhas de Vilene para que o anjo comesse pura, para ter um efeito rápido e vantajoso — Vai passar... eu juro...

— Kayara — sorriu, cuspindo sangue. Falava enrolado, provavelmente pela queda brusca —, eu demorei anos no silêncio para aprender que tudo o que temos aqui, em Téritis, é valioso demais para não vivê-lo... — a tosse foi ouvida e Zurik observava atentamente ao redor, buscando por quem teria ferido o anjo — por uma tentação, por um atazano momentâneo, deixei meu único propósito para recorrer ao nada...

— Pare de falar, não gaste as forças, Caim. — A ruiva tentava fazer com que ele não desistisse de viver, ela odiava despedidas.

— Eu o fiz... — prosseguiu — condenado fui a viver no exílio mais cruel de todos: minha própria companhia. Mas aprendi nesse tempo... aprendi... — ele engasgou-se, tossiu e voltou ainda mais fraco — você precisa entender que é uma alma valiosa, não importa o que fez, importa só o que decidirá fazer. — A mão trêmula do anjo acariciava o rosto da raposa, que fechava os olhos para não chorar — Se estiver disposta a mudar, terá uma nova chance... Kayara...

— Caim... — Sussurrou-lhe, embargada.

— Volte para casa, Raposa dos Multiversos... — E com a última frase dita, largou seu último e sôfrego suspiro.

Kayara apertou Caim. O sacudiu e bateu em seu rosto, gritou seu nome várias vezes... ele não acordou mais. Havia sido carregado por Babel, o anjo detentor das almas. Agora só restava sua carne. Sua carne que para nada serviria...

Pois, afinal, o que é um corpo sem uma alma? O que é um vivo que não possui essência? A carne não é nada... não significa nada. Representa somente o dom de estar vivo, carregar algo perfeito em um boneco imperfeito, indefeso...

Zurik olhava aquela cena, finalmente indo até ela e a afastando do corpo contra sua vontade. Ele levava vantagem pelo fato de ela estar triste, apesar de não estar entendendo a situação. O leonino a arrastou para o casebre mais uma vez e a abraçou com força, tentando evitar que ela visse o que a bruxa faria.

A mulher bem sabia o que acontecia quando um condenado da Justiça morria em solo Árush, entendia que era perigoso, ainda mais perigoso quando esse alguém era o próprio Ymõ, o traidor. A bruxa arrancou o coração de Caim. Estava escuro, duro, frio. Ele não batia mais há muito tempo. A mesma levantou, indo na direção do templo mais próximo, onde oraria por alguns dias e faria o sacrifício de entrega, tal qual deveria ser feito o quanto antes.

Kayara, vendo a bruxa ir-se, começou a se debater, tentando se soltar de Zurik e impedir. Na visão da ruiva, um homem deveria ser queimado, enterrado ou entregue nas mãos de Balai, independente de quem fosse. Kayara não entendia o que Caim era. Não entendia sua condenação.

Ou não queria entender...

— Kayara, não! — Zurik a segurava, caindo no chão com ela. Estava mais forte do que ele podia lembrar.

— ELA NÃO PODE FAZER ISSO! ELE NÃO VAI CHEGAR LÁ A TEMPO SE ELA FIZER ISSO! — Ela berrava, tentando chamar a atenção da bruxa.

— KAYARA! ELE PRECISA! — Zurik a virou para si e segurou seu rosto. Olhava no fundo de seus olhos — Ele precisa ir... não para o Sacro, como imagina. Não para o Éter, como pensa... ele precisa eclodir-se em trevas... explodir como castigo. — A abraçou mais uma vez, impedindo que ela saísse atrás da bruxa.

— Ele não merece isso... — começou em sussurros — NÃO MERECE! — Contudo acabara em gritos.

— Kayara, assim como você sabe que pecados são castigados, a Justiça decidiu que esse seria seu castigo... — insensato, ele a abraçou mais uma vez — por favor, para com isso!

— Ele me salvou... — Era a dívida dela com Caim: A própria vida — Ele me... salvou... — Ela parou de ir contra Zurik e o apertou com os braços, deixando que as lágrimas caíssem.

...Foi aí que a chuva passou...

Kayara - Livro 1 [COMPLETA]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora