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(Adagmar)

Asarid se sentia desconfortável desde a última vez que vira Zatta, quando aconteceu um beijo fervoroso entre o casal improvável. Ela olhava a paisagem pela sacada de seu quarto, sentada em uma cadeira confortável. Segurava um livro, pois estava tentando manter sua concentração na leitura, mas tudo que conseguia pensar era em Zatta, no beijo, em tudo que disse e tudo aquilo que não teve coragem de dizer. Estava errada em sentir algo como aquilo.

Foi aí que ouviu uma voz conhecida, que a deixou melancólica, porém feliz. Era seu pai, que entrava no quarto escoltado por dois guardas reais. Ela o olhou da sacada e levantou, correu e pulou em Morgan, que ergueu sua menininha do chão e abriu um sorriso. Asarid se sentiu feliz e não queria mais que aquele abraço acabasse.

Morgan a colocou no chão e ambos se sentaram num sofá que havia ali, Morgan não aceitou nada de beber ou comer, pois parecia querer falar algo sério para sua filha, que estava mostrando ansiedade e curiosidade para saber o que ele queria contar.

— Precisamos conversar sobre uma coisa... — Parecia que o Grat estava se desfazendo num sentimento de angústia que já se arrastava de muitos anos.

— O que foi? — Por um momento, Asarid começou a hesitar, contudo parou e olhou para seu pai esperançosa — Eu posso voltar para casa?!

— Não, filha... não é isso, é outra coisa. — Uma pausa pesarosa — Algo que eu já deveria ter te contado há muitos anos, mas que agora parece o momento perfeito. — Morgan estava segurando uma caixa velha, de madeira bem antiga, com um pouco de poeira nas frestas.

— O que houve? — Asarid franziu o cenho e ergueu uma sobrancelha, tocando a mão do pai.

— Asarid... — hesitante, Morgan passou a mão sobre a caixa de madeira que guardara por tantos anos — eu preciso te contar como você apareceu para nós.

— Como?! Pai... sou grandinha, já sei como nascem os filhotes! — Ela riu, entretanto percebeu que o que ele estava falando era sério e logo fechou o sorriso.

— Filha, há 18 anos, eu e Iana perdemos um filho recém nascido. — O semblante de Morgan pareceu escurecer totalmente — Era o inverno mais rigoroso que já tínhamos passado aqui, em Adagmar. Ele morreu doente, pois não teve como manter a saúde dele com as chuvas, neve, vento frio que estava tendo... — uma forte lufada de ar se sucedeu, fazendo com que Asarid tapasse a boca com a destra, escondendo sua feição surpresa — sua mãe ficou devastada e entrou em um estado de tristeza profundo, sem comer ou beber. Eu fiquei paralisado durante dias, vendo o corpo dele dentro do berço... — Morgan fez uma pausa, suspirando e tentando não chorar — foi aí que veio o verão...

— Eu nasci no verão, pai. — A ruiva segurou o antebraço do Grat e o olhou com uma gota de esperança no semblante.

— Você surgiu no verão, Asarid... numa noite, sua mãe estava visitando o túmulo de nosso primeiro filho e eu estava em casa, não suportava ir até o cemitério. Eu ouvi baterem na porta, pensei que fosse sua mãe, então fui abrir. Me surpreendi quando vi uma mulher... — Ele parecia extasiado e nostálgico — Uma mulher de longos cabelos dourados, quase alvos, a pele dela brilhava como o sol, os olhos esbanjavam paz, amor e calmaria. Estava usando um longo vestido feito de um tecido fino que nunca vi antes! — O felino encarava o nada, como se estivesse tendo um flashback — Quase uma túnica... estava suja de lama e os pés descalços, visivelmente machucados, como se tivesse andado muito para chegar até nossa casa.

— Mas... — Asarid não conseguiu falar.

— Nos braços ela trazia um bebê enrolado em um grande pedaço de sua túnica branca. A criança estava com muita fome. Chorava forte. Eu vi o vermelho cortando o branco e ela pediu para entrar, falando que estava muito cansada e que viajava fazia dias... eu deixei que entrasse. — Com um longo e pesaroso, entretanto não amargurado, suspiro, continuou — Dei-lhe um copo de água, pão e sopa. Não conseguia parar de olhá-la e olhar aquele bebê, que chorava ainda. Ela acalentava a criança, beijava-lhe a testa e me olhava. — Morgan parou, passando a mão pela caixa — Eu sentia falta de ter meu filho em meus braços, e pedi para segurar a criança enquanto ela descansava um pouco. Iana chegou, vendo aquela cena e perguntou o que estava acontecendo. — Pausou, como se buscasse a lembrança em seus pensamentos — Viu a criança em meus braços e fora olhar, vendo a menininha chorando. Ela tomou o nenê em seus braços e prontamente lhe deu de mamar, sabendo somente pelo choro que a menina sentia fome... — o pai de Asarid a encarou — era você... a menininha mais linda que já vimos, o bebê que curou a tristeza de ambos no momento que te vimos. Era como se um buraco finalmente estivesse sendo tapado...

— Ela era minha mãe? — A ruiva falava vagamente, como se estivesse buscando a visão de quando era recém nascida.

— Não. Não tinha como ser... quando sua mãe levou você para o quarto para dar de mamar, a mulher se levantou e me entregou essa caixa, falando que você era a criança mais especial que poderia existir nesse mundo. — Explicava, tocando o rosto da moça e lhe sorrindo — Era um fruto proibido de um amor tão puro e tão verdadeiro que sequer a morte poderia te levar, não tão cedo... era também renascida de um milagre, que trazia consigo uma luz tão forte que... — Asarid sorria, segurando a mão de seu pai, que ainda lhe acarinhava a face — depois de um tempo não poderia mais ser contida. Depois disso, ela foi embora, apenas deixando claro uma única coisa: seu nome... Asarid, a revivida, a cria do Pai, Refugiada da Vida. — Com o orgulho inundando seus olhos, Morgan retirou a mão do rosto de sua menininha.

— Pai... — Asarid estava à beira do choro, todavia não seria por tristeza e sim por alegria. Ela era muito agradecida pelos pais que teve, mesmo que Iana não fosse a mãe mais perfeita do mundo.

— Ela deixou isso para você, dando o recado de que só quando estivesse pronta poderia ter isso em mãos, pois o passado dói e é muito cruel quanto ao futuro. — Ele estendeu para ela a caixa, que foi aberta rapidamente. Lá dentro havia um espelho, um vidrinho com um pó escuro e a manta onde ela fora entregue ao casal.

Ela olhava o espelho, sem entender nada daquilo. O pai levantou e a ergueu, dando um abraço forte nela, como se aquela fosse a última vez que se veriam.

— Pai... — Ela não queria que o abraço terminasse nunca.

— O passado pode doer, filha... — a voz do homem era errante e incerta perante suas emoções — ele machuca... — forçou-se a dar uma pausa para então conseguir continuar — mas nunca deixe de buscar pelo seu futuro, pois nele pode haver coisas novas e principalmente, sua felicidade está lá... — Morgan beijou a testa dela e a deixou, indo embora rapidamente.

— Pai! — Quando deu por si, Asarid tentou ir atrás dele, porém não mais o viu no corredor. Ele não estava mais lá.

Agora dependia somente dela saber o que mais seu passado estava escondendo, mas, como?

Kayara - Livro 1 [COMPLETA]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora