Kayara - Livro 1 [COMPLETA]

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(Pontos de Vista - Kayara - Parte II)

— Talvez eu deva admitir que amo você mais que tudo no mundo... — eu ouvia dele — ou melhor... no universo. — Aquela voz sussurrava em meu ouvido como uma música que te enche e te traz satisfação, prazer.

Era a voz mais perfeita que eu fazia questão de não só ouvir, mas escutar veemente tudo o que proferia. Nas minhas décadas de existência, foi a única voz que teimou em buscar meu afeto e conseguiu. As mãos grossas que percorriam pelas minhas pernas e subiam em direção à minha cintura me envolviam com uma névoa de felicidade tão intensa que quis que jamais tivesse um fim. Eu permitia que ele tocasse cada uma de minhas cicatrizes e que as beijasse também, que fizesse com meu corpo o que desejava. Aquela pessoa, melhor do que ninguém no mundo, sabia tudo que eu passei nas mãos do meu pai, nas mãos daqueles que se diziam me amar.

Naquela época, cerca de cinco anos depois da minha fuga do Inteiro, com a ajuda de Marcelo, eu havia ido parar no mar. Fugi para o mais longe que conseguia ir, de Fitgrell. Fui para o mais isolado dos mares e para o mais distante possível da terra em que meu carrasco poderia pisar, entretanto retornei com a notícia de que meu, naquela época, amigo, passava por apuros.

Contudo eu sentia ainda dores nas minhas costas e aquelas feridas grotescas ainda existiam, mesmo depois de cinco anos no mar, mesmo que fossem pequenas em comparação com os primeiros dias, infelizmente a dor ainda era a mesma, quase como se ainda estivesse passando pelo fatídico arranque de minhas preciosas asas. Não sabia se deveria de fato voltar, ficar em terra, sequer sabia o que havia acontecido após minha partida.

Ainda estava destruída por dentro e por fora, sentia nojo de me olhar fronte ao espelho ou qualquer vidraça e até mesmo da água eu me esgueirava, evitando minha imagem, mesmo depois de tantos anos tentando me livrar daquela memória, daquele dia... Tive um pouco mais de esperança quando recebi a notícia de um dos seres do Inteiro que meu pai estava atrofiando, provando de sua própria maldade.

Finalmente, sem mais delongas, me rendi ao seu pedido como um cão que volta para seu dono, covarde, abatida, fraca, completamente destruída e debilitada. Eu devia ter dito a ele tudo o que conseguia sentir, quando ainda conseguia. Aquele homem que marcou tanto a minha vida... ele... já se foi há muito tempo, devorado pelo insípido desejo de luxúria e egoísmo, assim como eu.

Sendo recebida com afeto, nunca me senti tão amada e desejada em toda a minha vida até aquele momento, em seus braços de amor, sua alma sedosa e seu perfume cítrico como as folhas que caem da Caektra Monã durante o outono. Ele me beijava com carinho, ternura. Acalentava minha alma com sua voz macia, tal qual o mais doce de todas as frutas que já pude provar.

Rain, o rei da cidade de jade, em Rorimir. O homem que me conquistou ao longo de anos e anos de Ministério, o ser que abalou meu mundo com a tal da felicidade, que naquela época, não cabia sob meu conhecimento existencialista e niilista. Ele me mostrou o que era ter um fio de esperança mesmo no meio das tempestades mais perigosas que poderia vir a enfrentar.

Eu o amava e essa parte da minha vida jamais poderei omitir à ninguém, pois todos viram a minha alegria, que vinha à tona cada vez que eu o via. Eu o venerava como... como se fosse a única coisa que me fazia sentir bem e de fato era. Charlles tentou me alertar sobre o mal que isso poderia me causar, porém, mais uma vez, não dei ouvidos para quem eu sabia que estava certo.

Dormimos juntos e consumimos nosso desejo por noites e mais noites, e devo admitir que foi inesquecível, pois meses mais tarde descobri uma gravidez indesejada por mim. Eu já havia feito um aborto antes, havia tirado o feto que em mim brotou após a noite de pesadelos com meu pai, o que seria mais um? Entretanto, pela primeira vez, pensei em como uma ação minha poderia afetar a felicidade de outro alguém, Rain ficaria feliz com a notícia de que tirei de mim o fruto de nosso amor, que até então parecia verdadeiro?