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Alguns meses mais tarde, Charlles já conseguia andar. Falava com um pouco de dificuldade e já conseguia se alimentar e se vestir sozinho. Era uma grande melhora, se comparado ao estado dele quando entrou em colapso pela.

Já Kayara estava piorando à medida que Charlles melhorava. Era quase óbvio para quem tinha conhecimento sobre o ritual que Charlles havia feito. Aquela loucura mesclada ao sacrifício maior que qualquer um saberia que seria a maior falta de senso.

Marcelo não queria sair do lado da prima e naquela última semana, Rain também estava sempre presente. O ex-marido traidor estava com um remorso quase vistoso para os seres que viam além dos olhos mortos. Os dois homens estavam discutindo faziam algumas horas quando Kayara acordou mais uma vez.

— NÃO! MARCELO... NÃO VOU SAIR DAQUI! — Rain empurrava Marcelo, que o estava pondo para fora. Tudo tinha começado com um comentário de Rain sobre como Marcelo estava mostrando afetividade demais e ele estava inconformado com tudo aquilo.

— Você pisou nela todos os anos que ficaram juntos! A traiu de todas as formas que posso imaginar. Não merece estar na companhia dela! — Marcelo sussurrava de forma gritante, até que conseguiu derrubar Rain no chão e o pôs para fora.

— Eu a amo! — Rain falou enquanto se levantava e ficava de cara com Marcelo, que bufava feito um búfalo.

— Não! Quem ama não destrói como você fez. — Marcelo bateu com o dedo indicador contra o peito de Rain — Não trai, não pisa... não magoa. Você fez tudo isso e mais um pouco! Como espera que eu aja perante isso? — O primo voltou a empurrar Rain para mais longe ainda do quarto.

Kayara se sentou na cama. Ouvia os dois discutindo e se sentia um alvo de coisas demais. Coisas que ela não queria mais em sua vida. Estava sentindo dor no peito, a boca seca, os olhos melados, suor demais, ondas de frio e de quentura extremas. Tentou falar e não conseguiu. Tentou fazer barulho e também não conseguiu.

Acontece que nos últimos seis meses, após uns dias de melhora, acabou piorando muito mais do que no início. Suas cordas vocais definharam juntos com alguns outros músculos. Estava magra demais. Fraca demais. Nunca, em hipótese alguma, alguém imaginou que Kayara teria dias como aqueles. Logo ela, que sobreviveu à criação, ao pai, aos tios e tias abusivos. Sobreviveu ao governo de Kyra, sua mãe. Sobreviveu ao mar de Tru e ao Mar de Areia. Sobreviveu aos filhos que perdeu, aos traidores que amou. Sobreviveu demais para perder naquele momento. Com raiva, ela levantou.

— VOCÊ A AMA, MARCELO? — Enquanto ela refletia, Marcelo admitiu que a amava.

— Muito mais do que você já conseguiu amar! — Rain recebeu um belíssimo soco e Marcelo balançou o pulso, mostrando que o soco tinha ido com tanta força que até o machucou.

— Desgraçado! — Rain voou pra cima de Marcelo e os dois se atracaram no chão. Eram dois generais de exércitos reais que estavam brigando como duas crianças e para ser pior, um deles era rei.

Finalmente conseguindo dar um passo, Kayara caiu e enfim os dois marmanjos notaram que ela estava acordada, eles se soltaram e foram amparar Kayara. Ela movia os lábios. Queria água. Queria sair dali. Queria sua vida de volta.

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Semanas mais tarde, Kayara estava lutando para voltar a andar. Já dava alguns passos sozinha e já balbuciava algumas poucas coisas que não pediam esforço demasiado de suas cordas vocais. Notou que Rain se recusava a sair de perto dela, assim como Marcelo. Sentia falta de algo. Alguém. Na verdade, não conseguia lembrar de muita coisa antes do sacrifício do anjo.

— Onde eu estou? — Ela perguntava a cada hora, para Marcelo, que estava ficando preocupado com essa situação não convencional.

— Kayara, você está em casa... no castelo. No reino. Como se sente? — Ele punha a mão sobre a testa dela, percebendo que não estava mais com febre — Sua febre sumiu. Isso é bom... logo, logo poderá ir lá fora novamente.

— Eu preciso ir buscar elas. — A rainha resmungava, quase chorosa.

— Não, prima, não precisa fazer nada agora, entendeu? — Marcelo a fez deitar na casa para se sossegar e tentar dormir um pouco mais — Precisa focar em melhorar e ficar bem.

Rain, que estava perto da janela, olhando a vista para o mar, sabia bem a quem ela estava se referindo. Notou o esquecimento constante sobre coisas que ela consideraria importantes como nomes, lugares, pessoas ou lembranças inteiras. Infelizmente ela se lembrava dele e suas poucas lembranças não eram boas. Parecia se lembrar só dos momentos ruins. Seria punição?

— Ela está se esquecendo de nós, Marcelo. — Rain começou seu monólogo — Está esquecendo as coisas boas que já viveu. Esqueceu-se de Charlles, de David, mas se lembra perfeitamente do dia que perdeu as filhas. — Eu nunca vi isso... já vi pessoas se esquecerem de tudo, esquecer-se parcialmente das coisas... mas só esquecer bons momentos? Não parece estranho pra você?

— Está tentando dizer que Balai veio do "Plano Escuro" só pra tirar toda a felicidade que ela tem e deixá-la pior até morrer? — Marcelo falou irônico, entretanto tudo pareceu se encaixar, mesmo que aquele não fosse o motivo certo.

— Eu pensei que Balai não pudesse mais voltar de lá... — Receoso, Rain fechou as cortinas e encarou Marcelo, como se a escuridão fosse ajudar a desvendar o mistério envolto à mente de Kayara.

Balai era irmão de Babel. Dois anjos da morte que estavam encarregados de todos os seres que mereciam punição e busca, pois não encontravam a "luz" sozinhos. Não eram gêmeos, porém nasceram no mesmo dia e hora. Em verdade, foram forjados de um pedaço da própria Morte. Ambos não possuíam noção do que era certo e errado, faziam de tudo para concluir sua missão, e às vezes, muito raramente, quando algumas almas escapavam da punição em morte, recebiam os castigos em vida. Era quase impossível de se acontecer.

— Balai não faria isso... não tem capacidade pra isso. Ninguém tem, só a Morte. A própria não sairia de seu império só pra punir ela — Marcelo passou a mão no rosto. Não fazia sentido —, o que teria de tão especial nela, pra despertar esse interesse repentino?

— Já viu tantas mortes assim, desde que Lenda assumiu, dois reis antes de Virta? — Rain ficou olhando Kayara, que já dormia.

— Mas Lenda matava por diversão. — Constatava Marcelo, buscando outra resposta em seu pensamento — Ela matou tantos por causa de um juramento à coroa. Foram guerras... eram rebeldes...

— Estou falando de antes disso. — O moreno olhou Marcelo dos pés à cabeça, logo voltando-se para encarar o corpo adormecido de Kayara, parecia fazer a mesma busca de Marcelo — Você lembra quantos foram?

— Incontáveis. — Respondeu o primo.

— A Morte recebe mais quando ela está frustrada, raivosa, com desejo de vingança. — Rain completou — É isso que está acontecendo agora.

— Recebe mais trabalho, se é isso que quis dizer. — Marcelo revirou os olhos, inconformado — Não é possível. Rain. — O guerreiro moveu o braço, balançando o membro lentamente para tentar livrar Rain daquela ideia louca — Ela parou há décadas. Está sóbria e agora tem mais responsabilidades do que nunca. Ela é boa!

— Tem certeza? — Rain, calmo, ergueu um dedo e apontou a ruiva, mesmo que naquele exato momento não estivesse com os olhos nela e sim em Marcelo.

Ambos olharam ela. Sabiam que o passado podia influenciar o futuro e que isso com certeza iria acontecer.

— O que nos resta agora? — Marcelo olhou Rain, que ainda olhava Kayara.

— Esperar... — Um longo suspiro se sucedeu em coro. 

Kayara - Livro 1 [COMPLETA]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora