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(Ilha fora do Mapa, semanas antes do Império Vermelho)

Estava lá a Deusa Mãe. Aurös. A criadora da vida. Havia escutado o choro, o pranto da cria desamada, deixada para trás. Não era físico, mas espírito. Não era hora ainda. Era cedo demais para ir-se embora. Os planos dEla eram muito maiores do que a morte para aquela menina, ia muito além do entendimento da entristecida mãe, que naquele momento, partia para seu cruel algoz com o peso de uma morte mais do que inaceitável, com o pesar do pecado contra o próprio sangue. Menina aquela que tinha vindo por um motivo muito especial, motivo santo, sagrado, almejado de boas esperanças para o futuro breve.

Contudo o anjo também estava lá. Babel. O ceifador. Curador das almas. Anjo infernal, dito cujo não amado por Ela. Queria levar aquela alma, que mesmo tão pequena, já tinha guardado para si um castigo imensurável pelos pecados que sequer tivera tempo de cometer. Eram tantas injúrias que não disse e ações que não fez. Tristemente Aurös via a Linha Lei daquela amada cria desfazendo-se no ar. Ela podia enxergar além daquele anjo, Ela podia ir além dele se quisesse.

A Deusa, espírito de luz abundante e celeste, esperou que a progenitora se fosse das redondezas da ilha, junto com sua guarda, o anjo de Jusho que deveria reencarnar a cada cem anos, não queria Ela que se demorassem mais, entretanto precisou esperar, precisou guardar a mágoa. A Mãe de Téritis cegara Babel e o impediu de levar a criança para o destino desleal, pois já a tomava em seus braços para prosseguir viagem. Tomou a morta dos braços do anjo e correu, correu pelo chão de terra molhada pelas lágrimas que caíam do céu. E cansada pela fuga feita de maneira impensada, caiu de joelhos, impondo-se para frente com a filha de sua última raposa no seio amável e calorento, se impondo ao Pai como nunca o havia feito antes. Mostrou-lhe Seu desejo. Sua santa vontade.

— Pai do Universo — iniciou sua prece, erguendo seu rosto para o céu, deixando que as lágrimas caíssem por seu rosto imaculado —, Supremo sobre Nós — a voz daquela imagem infinda de beleza e luz se enchia de um parecer amoroso e sentimental —, os Sagrados do Thríuns. — Sua primeira sentença se fez e, naquele momento, a pedido de sua filha mais amada, o tempo parou, desfazendo-se no vácuo de Askari — Livra essa pequenina da irmã Morte, não a deixe ser levada... — Aurös, apoiada sobre seus joelhos, ergueu o corpo da pequenina criatura morta. O queixo da deusa tremia e seus olhos brilhavam em contraste com o facho que desceu por entre as nuvens escuras e torrenciais — torne-a minha, Pai.

Era raro ver um dos Cinco Sagrados clamando ao Pai Supremo. Eram ocupados demais e normalmente não gastariam o tempo precioso com as criações mundanas, todas destinadas ao mesmo final: A Morte. Porém era o que Aurös fazia, dava-se para os filhos o quanto conseguia. Salvava-os deles mesmos, sem receber nada em troca. Os outros não entendiam aquela necessidade de Aurös, aquele dom tão especial dado para Ela pelo Pai. Jústhus condenava aquilo, junto com Öriun e Lughôs. Não queriam ver a irmã acabada com coisas que ela mesma criou para suprir meramente uma necessidade considerada humana, considerada chula; Apenas Morthús entendia aquele sentimento, pois via e convivia com os seres que sua irmã criava todos os dias, era a única que possuía uma opinião neutra sobre os apelos de Aurös. Mas, para os demais, bastava somente a criação do Pai, os seres Humanos, pensantes, que queriam se igualar aos Sagrados e ao Supremo à todo custo.

Todavia, o Pai, Askari, sabendo das necessidades da filha e compreendendo ela a ponto de se igualarem naquele quesito, estendeu sua mão piedosa, em forma de ventania e uma frieza soberana, sobre Ela e a criança, dando para Aurös a capacidade de reviver aquela morta. Apesar de as Linhas de Lei daquela criatura já terem se dissipado pela lâmina do anjo sem escrúpulos, Askari concedeu aquela benção. Para os demais, que sentiam quando o poder de seu Pai ia para o além vácuo, era a prova literal de que Ele faria qualquer coisa que Aurös desejasse. Era um afronte.

A Vida nunca ficou tão feliz com seu Pai. E no chão de terra e lama, buscou a sujeira com as próprias mãos, sujando suas vestes reluzentes e espectrais. Ela retirou a manta que cobria a criança e pôs o corpo na terra, em contato, de certa maneira, com Aurös e o Pai de Todos. As raízes das árvores mais próximas saíram do chão de maneira hipnotizante e se alongaram, muita luz veio das mesmas, como se estivessem a guiar o próprio Supremo. As raízes se instalaram no corpo do bebê, adentrando suas narinas, boca, nariz e rasgando sua pele, então a cria começou a mover-se lentamente, o osso quebrado estalou, voltando para o lugar e o corpo retrocedeu ao momento exato de morte, onde os danos estavam para acontecer. As raízes se retiraram do corpo da criança, agora carregando uma tonalidade escura e fétida, pois haviam sugado todas as mazelas daquela, agora, Divina.

Aurös encostou as mãos no peito da menininha e soprou o fôlego em seu nariz. Por onde passava o ar da Vida pelo corpo da pequena, se acendia uma luz. O mártir não mais viria acorrentar aquela alma, assim como a dor não mais deveria existir para qualquer vivente. A criança se movia, chorou tão alto e tão forte que as aves berraram e voaram para longe, era seu segundo primeiro sopro de vida, a Deusa sorriu e beijou a testa da menina, que não mais mera mortal, se tornou etérea, um ser deífico.

Entretanto, agora... merecia um nome digno de uma divindade, pois era isso que tinha se tornado. Vários nomes vieram na mente de Aurös, que pegava a cria do Pai nas mãos e a enrolava com o próprio véu de sumidades.

— Seu nome será... 

Kayara - Livro 1 [COMPLETA]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora