❈ ᴅᴏɪs ❈

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  Dulce vestia uma roupa formal, se sentia uma sardinha enlatada, a menina nunca foi de gostar de roupas acochadas, se acostumara com as vestimentas frouxas da prisão — o local era quente, não podia ter a mordomia de se enfiar dentro de uma roupa bem justa, com brilho, como se fosse para um baile, dançar com um príncipe e acabae sendo cortejada por ele no final.
 
  Serrou os lábios em uma linha reta, franzindo o cenho ao passar por uma porta larga de madeira.
 
  Gente exagerada.
 
  Dulce bufou ao topar nos próprios pés, parecia uma idiota, não sabia para onde olhar, principalmente depois que viu uma mesa enorme cheia de comida e um homem bem velho já esperando — não ousou pensar que fosse por ela.
 
  Abaixou os olhos, fitando as sandálias dos pés, tanto capricho só para jantar, não sabia como devia se comportar a mesa, já havia se acostumado com a cama do cativeiro ao qual ela fora obrigada a viver. Se segurou para não bufar outra vez, com vontade de sair correndo dali e se esconder em um quartinho qualquer, podia ser bem escuro, assim ela não teria noção do ambiente, diminuindo drasticamente sua vontade de chorar até dormir.
 
  — Vai esperar mais quantas horas para se sentar, menina? — a voz áspera fez Dulce mudar o apoio do corpo para o pé direito, ainda em dúvida se deveria correr para longe dali.
 
  Chego a dizer que não seria uma má ideia.
 
  Soprou baixinho, ainda olhando para o chão, viu sua perna se movimentar para frente, dando o primeiro passo.
 
  "Okay, é só um jantar."
 
  Coçou a garganta e levantou o rosto, apressando os passos até a cadeira mais perto, sentando-se ali. Sua cabeça girava e também parecia gritar, como se seus miolos estivessem em uma guerra entre si, colocou a mão na têmpora, sentindo-a latejar.
 
  "Mas que merda!"
 
  Mordeu a carne da bochecha, se concentrando em um ponto qualquer de seu vestido. A sensação do medo subiu por sua espinha, a fazendo enrijecer a coluna. Aquele velho que estava sentado à mesa com ela, poderia ser muito bem um tarado, estuprador, sequestrador.
 
  Fechou os olhos com força, as pernas inquietas indo de um lado para o outro. Ela deveria ter corrido, para o mais longe possível, embora soubesse que não iria correr nem quatro metros, parecia uma sedentária, até mesmo quando descia as escadas sentia sua respiração acelerar e o suor escorrer.
 
  — Não sabia que era tão calada. Parece a sua mãe, um animalzinho acuado.
 
  Quem ele pensava que era para meter a mãe de Dulce naquela história?
 
  Ela o olhou irado, se perguntando quem era aquele velho enrugado e, pelo jeito, nada amigável.
 
  Ela abriu a boca para falar, mas parou no mesmo instante que encarou as pupilas daquele senhor, ela reconheceria aquele oceano nebuloso em qualquer lugar, o tempo jamais apagaria aquela memória. A única coisa que ela conseguiu ver, há quase doze anos atrás, no meio da penumbra daquele cômodo que ela não sabia existir em sua própria casa, foi o azul escuro dos olhos do seu opressor que lhe empurrou dentro daquele quarto frio e a trancafiou ali, naquele cômodo escuro. Ele nem esperou a criança de sete anos absorver a ideia de que a própria mãe havia morrido.
 
  — P-pai — gaguejou aquelas palavras mentirosas, ele só houvera emprestado seu esperma, isso não o tornava seu pai.
 
  Desviou o olhar, sentindo um misto de desconfiança, confusão. Suas preocupações aumentando cem por cento, ele era pior do que qualquer mequetrefe que poderia existir.
 
  — É Jean para você, minha querida — pegou um copo de uísque e levou a boca.
 
  Espero que morra engasgado."
 
  Jean deu um dos seus muitos sorrisos malignos, como se pudesse escutar os pensamentos da filha, talvez ela tivesse mesmo murmurado baixinho seu desejo, mas, mesmo que não houvesse, os olhos de Dulce sempre foram muito expressivos, todos poderiam os ler. Ela se contorceu na cadeira, perguntando que diabos ela estava fazendo ali naquela sala, com aquele homem, enquanto poderia já ter comido e  saído dali feito um raio.
 
  Antes que tomasse coragem e questionasse o pai, escutou o estrondo da porta de madeira se abrindo, uma criaturinha pequena apareceu correndo, gritando, pedindo socorro, gargalhando alto, enquanto olhava para trás, fugindo de alguma coisa.
 
  O menino se virou de uma vez, parando no mesmo minuto, os olhos se assustaram, Dulce olhou na direção do terror daquela criança. Jean, seu pai, encarava o menino com um olhar assassino.
 
  — Meu Deus, Arthur. Onde você aprendeu a correr desse jeito? Nem teve pena de mim, seu tio já é um velho sedentário — anunciou um rapaz alto assim que apareceu ali.
 
  Dulce semicerrou os olhos, duvidando da veracidade daquelas palavras, o homem não parecia tão velho assim e tinha músculos o bastante para não ser sedentário.
 
  O homem se recompôs quando viu que a criança não houvera entrado na brincadeira, olhou para Jean, parecendo irritado com o velho por ele ter oprimido o menino.
 
  — Eu já lhe disse que não quero ver você gritando feito um maluco sem teto, desnorteado, parece um bastardo. Garoto, cadê sua mãe? — o velho levantou, parecendo que ia atacar Arthur.
 
  "É o quê?"
 
  Dulce já estava pronta para se levantar e meter a mão na cara de Jean, mandar o velho mal-educado procurar o que fazer e deixar o menino inocente em paz.
 
  — Deixa o menino, Jean — o homem falou, pegando a criança nos braços, parecendo acolhê-lo ali.
 
  Arthur o abraçou pelo pescoço, os olhos menos assustados. Dulce poderia jurar que o pai houvera contado de um até mil quando voltou a se sentar.
 
  Uma mulher entrou na sala sorrindo, os dentões brancos para fora. Olhou para Arthur, franziu o cenho e fechou a cara.
 
  — O que foi que você fez dessa vez? — interpelou com voz firme para o menino.
 
  PARA O M E N I N O.
 
  Não para Jean. Não para o cara que parecia querer arrancar o pescoço de Arthur e colocá-lo em exposição na porta de casa. Ele era só uma criança.
 
  — Nada, irmã. Deixe-o em paz, ele só estava brincando, só tem 6 anos, tem esse direito, pare de ser uma idiota controladora — disse o homem que abraçava o menino.
 
  "Pelo menos alguém com noção"
 
  Dulce prendeu o ar nos pulmões, vendo os dois adultos guerrearem com o olhar.
 
  O rapaz beijou a cabeça de Arthur e o sentou em uma cadeira, se colocando rapidamente ao seu lado. Dulce olhou curiosa, inclinando a cabeça — assim como um cachorrinho —, tentando encaixar o que estava acontecendo ali.
 
  Arthur e o rapaz pareceram saber que estavam sendo observados, como se estivessem combinado, olharam para ela no mesmo instante, a criança abriu um sorriso, já o rapaz fez uma careta de desgosto. Ela encarou as mãos de novo.
 
  — Deveria ter mandado banhá-la, parece uma escrava — o rapaz disse, não parecendo o mesmo homem que minutos atrás defendia uma criança das garras de uma bruxa.
 
  — Ela tomou banho, mas é tão imunda que a sujeira não saiu dela.
 
  A mulher gargalhou da piadinha sem graça de Jean.
 
  Dulce se contorceu, sentindo náusea, respirou fundo enquanto a risada sarcástica de Mariane se dissipava pela sala de jantar.
 
  — Ela cresceu tanto desde à última vez, mas ainda assim não perdeu as feições da mãe — Mariane falou com um tom de decepção.
 
  — Concordo, até o jeito desastrado, Sebastian vai ter que aguentar duro.
 
  "Sebastian?"
 
  Encarou o pai sem entender nada.
 
  — Ah, tadinha. Você ainda não disse sobre o noivado? — Mariane interpelou com escárnio.
 
  Dulce quase pulou da cadeira tamanha a surpresa.
 
  — Q-quê? — sussurrou a menina.
 
  — Você vai se casar, minha querida — a bruxa anunciou dando batidinhas no rapaz que brincava com Arthur a momentos atrás. — Confesso mesmo que você foi muito sortuda em pegar esse peixão aqui — outra batidinha nas costas largas de Sebastian. — Espero que trate bem meu irmão.
 
  Sebastian soprou, se derramando na cadeira, com o semblante cansado e irritado.
 
  — Não alimente a imaginação da menina, Mariane. É só um papel, nada mais — Sebastian disse, não parecendo acreditar nas próprias palavras.
 
  A mulher gargalhou outra vez, sem expressão facial nenhuma de tanto botox que ela houvera mandado aplicar. Dulce fez uma careta de nojo.
 
  — Eu seu, eu sei — ela disse ainda sem fôlego —, mas você viu a cara dela? Foi mesmo uma má ideia não tela soltado um ano atrás, eu teria me divertido à beça.
 
  Dulce mordeu a língua, sentindo o gosto de sangue. Teve vontade de gritar poucas e boas para aquela mocreia engessada.
 
  — Um senhor presentão no seu aniversário de dezenove anos.
 
  Mordeu a língua mais forte, se perguntando se alguém já houvera arrancado a língua depois de a mordê-la com tamanha força.
 
  — Deixe a menina, Mariane.
 
  — Já está defendendo a noivinha?
 
  — Cala a boca! — berrou Sebatian com a irmã que se contraiu, finalmente procurando um lugar para sentar.
 
  Liberdade?
 
  Casamento?
 
  Dezenove anos?
 
  Nada mais estava nos trilhos. Nunca esteve mesmo.

 Nunca esteve mesmo

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NOTA DA AUTORA

Ps.: Se vocês gostaram da história compartilhem, escrevam nos comentários o que acharam da mesma {assim eu me sinto mais motivada}.

Ps.: Não esqueça da estrela.

Amo vocês...

Em Um Cativeiro ®Where stories live. Discover now