Capítulo 42

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CECÍLIA

São Paulo, abril de 2023
Estúdio

Depois da festa, não comentamos muito sobre os ocorridos.

Confesso que voltar para o escritório depois de todos me verem alterada daquele jeito foi vergonhoso, mas as pessoas foram tão naturais com aquilo que acabou sendo tranquilo.

Na verdade, todos voltaram a trabalhar com tanto foco que talvez nem tenham tido tempo para pensar a respeito.

Cada um ficava em sua mesa, interagindo somente nos horários de almoço e nas reuniões (que eram cada vez mais frequentes).

Eu vivia 90% do meu dia naquele estúdio com Jão.
Ele na mesa de som, com seus instrumentos e composições, e eu no sofá que tinha ali.

Era bom trabalhar ao seu lado. Me ajudava a ter inspiração — e acho que vice-versa.

Claro, havia dias em que eu o deixava trabalhar por si só. Ele também queria que parte do álbum fosse uma surpresa para mim.

Hoje, Jão dedilhava seu piano incansavelmente procurando alguma melodia que pudesse funcionar.

Eu estava sentada com minhas pernas cruzadas e um caderno imenso sobre meu colo.

Em algum momento, ele atingiu seu pico de estresse e se afastou do instrumento.

— Nada disso funciona. Eu não tenho letra nenhuma!

— Às vezes você só ta sobrecarregado, gatinho. Descansa um pouquinho — eu falei tentando acalma-lo

— Não posso. O álbum já vai lançar em agosto — ele falou inquieto

— Respira fundo, vai dar certo — eu disse enquanto tirava meu sketch book de meu colo para poder ir até um gaveteiro que tinha ali para tentar ajudá-lo

Desde a produção de Me Liga, meu diário tinha ficado naquela sala. Eu não sei se devido a um esquecimento ou se eu sentia que ele poderia voltar a ser útil.

Abri a segunda gaveta do móvel e a primeira coisa que eu vi foi aquele caderno antigo.

— Amor, você começou sua história como cantor na faculdade. Desde então, a maioria das músicas vêm contando sobre a história que aconteceu a partir de lá — ele assentiu, ouvindo atentamente minhas palavras — E se você contasse de antes? E se você fechasse o ciclo de elementos voltando pro início. Toda a história tem começo, meio e fim. Qual é o seu início? Quem era o João antes de ser o Jão? O que te levou a ter todo esse fogo que te ilumina? — eu levantei o diário para que ele ficasse na altura de seus olhos — Tudo aqui é no meu ponto de vista... Mas é todo seu, caso precise de uma viagem no tempo para se lembrar

Ele encarou aquele objeto e, em seguida, fixou seus olhos em mim.

— Estar com você é uma viagem no tempo — ele respondeu

Eu sorri e apertei-o com força em um abraço.

— Acha que tem mais algum versinho por aí? — ele falou em meu ouvido

— Talvez... — eu disse me desfazendo do abraço, enquanto abria em uma das páginas da época em que ele tinha ido embora — Depois de você ler esse diário eu é que vou ficar com fama de sofredora. O drama que eu faço da minha vida nessas páginas renderia uns 20 álbuns

Ele riu e pegou o diário para ver os versos que eu tinha escrito.

"Foi em qualquer outro dia comum
Que você me deixou

Não sabia o que queria
Mas sabia que não estava aqui
Nessa cidade que te afoga
Mas, de algum jeito precisava ir

Naquele novembro, eu corri até a sua casa
Mas não encontrei mais nada"

Completa com a sua versão. Faz dela sua história — eu disse a ele sobre a música — Muda a letra, adiciona coisas. Vai ficar lindo

— Não me canso nunca de dizer que você é incrível

Ele voltou a se sentar à mesa e passou meus versos a limpo em uma folha de papel, rabiscando por cima do que anotava adicionando mais palavras.

...

Aquele dia passou.

Semanas depois, eu estava trabalhando com em uma das salas do escritório, porque Zebu vinha ficando no estúdio com Jão e eu queria dar liberdade para que os dois musicistas trabalhassem juntos.

Eu desenhava um chapéu vermelho no topo da cabeça de um dos trajes que eu estava fazendo para o cantor, quando ouvi uma batida na porta.

— Cecí? — João colocou a cabeça para dentro da sala

— Oi! — eu falei levantando a cabeça

— Você tá livre? Pode ver um negócio?

— Posso, sim, chefe — respondi me levantando

Ele me guiou até o estúdio com um sorriso enorme no rosto.

Cumprimentei Zebu assim que entrei na sala. Ele também parecia animado.

— Cici, eu quero que você seja uma das primeiras a ouvir — meu namorado disse antes de posicionar o mouse em cima do botão de play no computador — Conheça minha nova música: Maria

Ele clicou no botão direito do mouse dando inicio a sua melodia.

Reconheci na hora minhas palavras. Era nossa música.

Ele tinha mesmo colocado novos detalhes. Sua carta. Sua versão da história.
Ele parecia falar comigo ali.

Não era uma longa composição. Porém, as palavras ali valiam por milhares. Era profundo.

— Maria... — eu disse paralisada — É sobre você.

Ele assentiu

— Não dava para colocar João e dar de bandeja toda a história. Aí bolamos essa ideia

— Ficou incrível! Vocês são incríveis! Não tenho nem o que dizer — meu olho brilhou em meio a lagrimas — É... lindo. Esse álbum vai ser lindo. Mal posso esperar para ouvir

Rádio | JÃOWhere stories live. Discover now