Capítulo 54: Orfanato.

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Não voltei pro apartamento aquela noite, mesmo que Júlia tivesse me ligado e me mandando milhares de mensagens, assim como Bernardo. Eu não queria conversar com ninguém, porque tinha certeza que não seria a melhor ouvinte e nem saberia o que dizer sem soar grosseira ou magoada. Aqueles dois estranhos no andar de baixo continuaram a discutir e gritar um com o outro, até a madrugada chegar e o silencio cair, sufocante e tenso.

Não dormi absolutamente nada, encarando aquele quarto que pertencia a uma criança que não existia mais. As roupas esquecidas no armário que não me serviam. Os ursos de pelúcia que eu ganhei de tanto berrar e espernear e não porque eles queriam me dar de fato. Tudo ali era uma mentira. Mas eu sempre tive medo de deixar essa mentira aparecer e ir embora, porque não sabia quem eu poderia ser sem nada disso. Sem essas pessoas que deveriam ser meu porto seguro, mas não eram nada além do meu pesadelo.

Quando amanheceu, também não fui pra aula. Eu vi Heitor Campos enfiando as malas dentro do carro e então ir embora. Minha falsa mãe bateu na porta do meu quarto algumas vezes e até me ligou, mas desistiu quando não teve resposta nenhuma de mim. As 11:00 em ponto, ela saiu também, batendo a porta da frente com tanta força que as paredes tremeram. Eu ainda estava jogada na cama quando isso aconteceu, mas me obriguei a levantar e fazer alguma coisa em relação a eles pela primeira vez na vida.

[...]

Júlia encarou o meu quarto naquela casa por longos segundos, enquanto me ouvia contar todas as coisas que havia escondido pra ela esses anos, com uma expressão surpresa. Falar que eu sou adotada e que meus pais são horríveis tirou um peso enorme dos meus ombros. Diogo também pareceu surpreso, mas conseguiu disfarçar isso enquanto trazia algumas caixas de papelão vazias até meu quarto, que ele havia pegado no deposito do mercado.

Os dois me ajudaram a enfiar todas as roupas, ursos e brinquedos dentro das caixas, evitando falar dos meus pais enquanto tentavam ao máximo deixar o clima mais leve. Tenho certeza que eles notaram meu rosto inchado por ter passado a noite toda chorando e o tremor na minha voz quando contei que era adotada.

Júlia, para o seu credito, também não perguntou sobre Bernardo. Mesmo que meus pensamentos estivessem muito ligados a ele ainda, não queria lidar com isso agora. Um tijolo de casa vez, então a casa vai ficar forte é perfeita. Fiquei repetindo isso na minha cabeça o tempo todo, porque não queria dar um passo para trás e falhar.

Quando o quarto estava limpo de todas as coisas que eram minhas, levamos as caixas para o carro do pai de Diogo. Peguei a copia da chave que eu tinha daquela casa e joguei por baixo da porta da frente depois de tranca-la, indo embora de lá sem ter a intenção de voltar. Dei o endereço do orfanato que eu tinha vivido até os 4 anos para Diogo, sentindo que alguma parte minha havia ficado para trás, mas que eu jamais poderia recupera-la.

Quando chegamos, Júlia e Diogo me ajudaram a pegar as caixas e levar pra dentro. Eu pude ver as crianças correndo e brincando no pátio da frente, provavelmente esperando para serem adotadas também. Tenho certeza que nem todos os casos de adoção acabam da mesma forma que o meu. A maioria deve ter sorte de encontrar uma família boa. Infelizmente eu não fiz parte disso.

—Boa tarde! —Uma senhora de meia idade se aproximou de nos três. Não havia percebido que havia parado no meio do caminho e ficado olhando para todas aquelas crianças. Júlia e Diogo tinham parado também, observando o mesmo que eu. —Posso ajuda-los?

—Olá. —Abri um sorriso sem graça, sentindo meu coração apertar, enquanto meus dedos seguravam a caixa com força. Era estranho estar em um lugar que havia sido a minha casa, mas que eu sequer me lembrava. —Meu nome é Manuela. Eu morei aqui antes de ser adotada. Eu e meus amigos trouxemos algumas roupas e brinquedos pra doar.

—Ah, isso é muito bom! —Ela pareceu animada, porque abriu um sorriso muito grande. Só aquilo já me fez ter certeza que aquilo era a coisa a certa a se fazer. —Estamos sempre aceitando doações. Nós e as crianças ficamos muito agradecidos.

Ela gesticulou para que a seguíssemos, mostrando onde podíamos deixar as caixas. Nós três havíamos tomado cuidado para deixar tudo separado nas caixas e bem organizado. Eu sentia que aquele era um passo importante demais pra mim pra ser feito de forma desleixada. Depois que descarregamos tudo, Júlia e Diogo foram brincar com as crianças, iniciando um pique-esconde que deixou todas elas animadas.

—Quem são seus pais? —A senhora indagou, chegando ao meu lado. —Eu costumo me lembrar das crianças que foram adotadas.

—Marta e Heitor Campos. —Falei, vendo ela parar e pensar por alguns segundos, antes de assentir, como se realmente se lembrasse.

—Sim, eu me lembro deles e me lembro de você. —Ela sorriu pra mim, enquanto eu sentia um nó se formar na minha garganta. —Era uma criança quietinha, que preferia brincar sozinha e passava mais tempo com a gente do que com as outras crianças. Chamou a atenção dos dois no momento que eles pisaram aqui. É bom ver você. Normalmente nunca temos a chance de rever uma das crianças que viveu aqui e saber como ela está agora.

Eu não me lembrava de absolutamente nada da época do orfanato, porque era pequena demais pra isso. Mas de uma coisa eu tinha absoluta certeza, eu fui mais feliz ali do que quando fui adotada.
Como se soubesse que estávamos falando dela no momento, meu celular tocou e o nome da minha mãe apareceu na tela. Ela deveria ter voltado pra casa e encontrado a chave no chão, assim como o quarto vazio.

Recusei a ligação e bloqueei o número, fazendo o mesmo com o do meu falso pai. O que quer que ela pudesse querer, eu já não fazia questão nenhuma de saber.



Continua...

Todos os "eu te amo" não ditos / Vol. 1Where stories live. Discover now