(73) - Pergaminho

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"Por muito as razões foram questionadas e não em vão. As maravilhas do mundo a mim não foram feitas e quando desisti de lamentar e odiar, tornei-me sua centelha divina, Mãe. Enquanto se desesperaram por se verem abandonados por ti, a respeitei. As razões são tuas e de mais ninguém.

Tolos e mortais nunca carregarão o fardo real do conhecimento. Ânsia de saber é a condenação que abracei para resgatar a glória gallênica. Enxergar a verdade é a doença que consome a sanidade. Entre os awbhem que já contemplaram a Existência, fui amaldiçoado em ser o único capaz de suportar as verdades horrendas do mundo e da Aura.

Criar vida é uma habilidade em minhas mãos e sábios enganados hão de chamar de dom. Também são esses abençoados pela ignorância, a mesma que os torna obedientes. A submissão de tolos não me interessa, e sim dos seres que cunho com o barro, mas ímpetos selvagens não servem a mim.

Dobrar a vontade dos espíritos que habitam os corpos forjados é o segredo que jaz cada vez mais próximo. "

- Pensamentos de Bálshiba


O PERGAMINHO viera tingido. Sangue exalava o odor característico, invadindo as narinas do servo-branco. Na proa da nau, o agente entregara o texto vindo da Ilha Maior, usurpado da ave mensageira abatida por outro predador maior e mais rápido.

Além do sangue, o lacre tinha poucas avarias, conforme demandava o Sumo. O servo dispensou o agente e pôs-se a ler. Fora um instante decisivo em sua campanha militar em Á'Glah. Até aquele instante, as expectativas não o traíram, nem se decepcionou com o desempenho de seus seguidores. Imprevistos davam a graça a seu jogo, afinal. O último relatório que recebera de sua mais fiel espiã em Akanea, transcrito do pergaminho de Máyen, lhe satisfazia, pois, seus inimigos rumavam ao destino que desejava que fossem. Mas, o que agora lia lhe trouxe um sentido novo. Era um texto escrito diretamente por uma das almirantes rivais ao qual já tinha planos para lidar.

"Libertadora, quem se dirige a ti é Araný. Saudações honrosas não possuem espaço. O tempo findara. Escrevo esta mensagem ao mesmo tempo que esquadras dos Caídos nos perseguem no Mar Interior. (...)"

Enquanto o servo-branco lia em silêncio as linhas iniciais em kandhú, Bálshiba despertava da inércia. De seu simbólico trono de pedra, alheio a quaisquer conforto, ergueu-se e rumou aos confins do navio.

"(...) Eles cobrem os mares. Só podemos fugir, mas não se esconder. Á'Glah foi invadida e temo que já tenha sido tomada. Telä fenecera e as tribos se silenciaram. Centenas de milhares eles são. (...)"

— "Ghasda. Estiveras correta em adiantar a ação de teus antigos mestres. Mas erraras na intensidade." — A deidade do semblante mascarado entrara na escuridão do aposento que abrigava o casulo espinhoso.

Demonstração de sentimento, ira ou frustração não ocorria através do ícone sem feição. Séculos passaram e uma parte da Terceira Era teve Ghasda ao lado, suprindo-o de pistas para encontrar as próximas ruínas Asi'Kale para extrair conhecimento antigo. Orgulhosos, seus soldados morriam nesta tarefa, pois entendiam que trariam com isso a glória de seu Sumo. Ghasda jamais o enganara. Nem nunca tentara, pois Ele saberia disto. Ákera nunca confiaria em uma ferramenta Asi'Kale para favorecer as forças, porém ninguém nem nada trapacearia o Primogênito. Desde a Grande Mãe nenhum ser vivo conhecido fora mais poderoso que o próprio Bálshiba. Por fim, tinha certeza da honestidade da criatura espinhosa. Naquele momento os conselhos de Ghasda levaram a um desfecho que, pela primeira vez em sua governança, fizera Bálshiba provar do incerto.

"(...) A distância míngua a cada palavra. Os escravos em seus barcos remam como se o chicote lhes açoitasse o espírito. Trompas de desespero ecoam e crias saídas dos abismos nos perseguem, sibilando terror do fundo de suas gargantas famintas. (...)"

— A fonte latente é este chamariz. Ela se escondeu após se revelar e os antigos mestres seguiram o rastro. Estão famintos. Movem-se pela cólera final. O que resta dos Caídos se reuniu para seguir a última ordem. — Entre os espinhos, a criatura feminina deformada falava, neutra e sombria, para aquele que só em pensamentos se comunicava.

"Retornaram ao nosso mundo com uma pujança que há Eras não se testemunhava; uma hoste opositora final." — Mesmo na incrível conversa de pura neutralidade, uma tênue ira se desvelava. Não, ela não o enganara. Ele só não poderia admitir que errara, pois o Sumo de Surkhedon, do Império das Quatro Casas dos Filhos de Nährus não pode falhar. — "A desproporção de forças da balança é abismal."

Recebera relatórios de seus espiões espalhados pelo continente inimigo. Conforme os Caídos se manifestavam, traçava em sua mente o mapa de ação deles. Com o pergaminho roubado da ave mensageira, a vastidão das tropas Asi'Kale se formou por completo.

E era, até para ele, ameaçador.

"(...) Que o dia que a esperança dos awbhem acabar não seja este. Não em minhas mãos. Não em sob meu comando. (...)"

Servo ou adorador, agente ou soldado, nenhum dos seguidores do Primogênito compreendia por completo seus intentos. O Primogênito detinha um objetivo ao velejar do sul da Gállen até Á'Glah, um objetivo que fora se remodelando e engrandecendo. A oportunidade de completar seu maior anseio viera durante a caçada da lunno. Tão recluso e inacessível ele era, que Ghasda se tornou aquela que mais conhecia os pensamentos de seu novo mestre. Se Bálshiba representava o domínio sobre a Aura, Ghasda detinha o controle sobre os espíritos e o Vazio.

— Sendo mil ou um milhão, as hostes dos Caídos seguirão o mesmo caminho. — A criatura bestial continuou dizendo. — Cansados estão de esperar. Esgotados. Rumarão à fonte devastando mares e montanhas.

A mente de Bálshiba reorganizara sua logística de tropas. A onisciência que adquiria lhe trazia vantagens inigualáveis. Vira o potencial da ruína, mas também do sucesso. Pensara em todas possibilidades e inteligência trouxera a resposta.

"Esta será a armadilha e a ruína derradeira deles."

— Sabes que ao menos um dos Controladores marcha ao meio das hostes. Fora ele quem convocara o restante dos soldados dos Asi'Kales. Este tenente não será uma presa fácil.

"Algo desta batalha restará. Sendo uma ou outra, terei o que preciso para dar início à nova era."

"(...)Não fugiremos mais. Remamos e fugindo para o sul, mas nós nos cansaremos e morreremos desta forma. Ordenarei que a Armada Nórdica dê meia volta e realize a manobra ofensiva final. É o melhor que pode ser feito, o melhor proveito da energia que nos resta. Perdoe-me, Libertadora. Não poderemos nos juntar a ti. O novo rumo da guerra está em tuas mãos.

Glória à Matriarca."

Quinta Lua (Livro Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora