(46) - Asas Rasgadas

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"Ao Norte se alonga ao céu o levante solar. Encantadoras são as melodias. Vozes se completam, vontades se desvelam. Chames de reino ou de terra, mas é ao lar que eles respondem. Vamos, bebas do vinho e proves do aroma. São mais empolgantes os contos quando um estranho fazemos conhecido. Desejes, velejes, honres a memória! Arrependas-te jamais se aos ancestrais fizer rir e sorrir. Olhes a tua volta, que privilégio maior há senão reconhecer rostos amigos?"

- Cântico nórdico


A TRANQUILIDADE era aproveitada em plenitude.

Pernas desnudas deslizavam umas sobres a outra com leveza, ondulando o lençol. Havia luz, mais do que antes, e seus olhos se esforçavam para se ajustar. A mente confortavelmente letárgica e o corpo preguiçoso — um conjunto de sensações quase nunca sentidas pela lunno.

— A última vez em que dormi foi ainda na Gállen. — Ela gozava ao máximo daquele momento. O ato e seu desenrolar sonolento era melhor que uma longa meditação restauradora. — Não esperava que acontecesse de novo tão cedo.

Da mesa central da cabine, a sywha ruiva em sua túnica veio até ela com suas mechas deslizando na roupa, e sentou-se aos pés da cama para admirá-la.

— Então fora a última vez em que esteves com alguém — Ákera presumiu. Seu tom era de curiosidade, não de intromissão, mas de uma amiga e companheira, ou mais.

— Hmmm, sim... — confirmou um pouco sem jeito e sem interesse de esconder o fato. — Minha primeira vez aos braços de outro, partilhando do prazer, fora com Thâmyr.

Yîarien começou a se ajeitar sob a coberta e cessou o movimento quando reparou que ainda estava nua. Um breve segundo lhe tomou de assalto com o susto e em seguida relaxou. Não, não tinham mais motivos para pudor, não ali, ao lado de Ákera.

— Aquele homem, o cavaleiro kaskre que a acompanhava no deserto, não é?

— Sim, era ele.

— Deve ter sido muito especial para ele então.

A lunno só conseguia pensar como as circunstâncias que levaram ela se deitar com Thâmyr e Ákera foram similares: a proximidade devido a missão, a atração física que aflorara no momento delicado e uma cura através do prazer. Talvez, cogitou, ela tivesse uma característica — ou um dom — semelhante ao de Ellêora. Ou meramente descobria outra característica das lunnos, o lado libidinoso delas.

— Especial? — perguntou quando após uma pausa desvencilhou-se do pensamento.

Ákera contagiou-se por um sorriso involuntário que lhe fez inclinar o rosto. Uma mecha ruiva escorreu pela face e com os dedos a afastou para trás da orelha pontuda, onde argolas prateadas perfuravam a cartilagem a embelezando; um detalhe discreto.

— Não é comum os humanos compartilharem seus costumes com awbhem, pois geralmente é o contrário. Poucos de nós se aventuram ao leste das cordilheiras, diferente deles, que habitam praticamente qualquer lugar. Até mesmo porque, nas cidades gallênicas, eles abraçam os nossos costumes para serem mais aceitos. — Virou-se para a lunno deitada e aconchegada por almofadas branquíssimas na extremidade oposta da cama, sentindo os pés dela repousados bem próximos de onde sentava-se. — Entre eles, a primeira relação de uma fêmea é a mais especial, quase uma dádiva. Consideres teu ato com o kaskre como um presente inigualável.

— Se eu soubesse disso antes... ah, mesmo assim nada teria mudado.

— Entendo. — Com sua experiência, Ákera conhecia o efeito que as lunnos causavam sob quaisquer criatura ao qual mantinham contato íntimo. A atração não obedecia a barreiras de raça ou gênero, uma das grandes belezas dessas fêmeas sagradas. — Não quero parecer que estou a julgando, de forma nenhuma. Apenas temo estar atrapalhando algum elo afetivo entre ti e o humano.

Quinta Lua (Livro Completo)Where stories live. Discover now