Capítulo Dez (O devaneio febril sobre a menina morta)

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My lover's gone,His boots no longer by my door

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My lover's gone,
His boots no longer by my door.
He left at dawn
And as I slept I felt him go

— My Lover's Gone, Dido.


🎭


Roseville, 2008

Roseville tinha desvanecido com o tempo, anuviado-se, como se um sopro da névoa que surge no início da manhã não tivesse se dispersado ao longo do dia, deixando uma réstia de sombra cinza encobrindo o que havia restado. Estávamos só na metade da tarde e o Sol se estendia pelo infinito de verde que se perdia de vista do lado oposto da rodovia 321.

Ao longe, ainda era possível ver os campos de algodão florescendo. Os capulhos formavam uma camada branca e grossa como neve fora da temporada, cobrindo o topo de flores silvestres esbranquiçadas ao lado dos maquinários e das colhedoras de fuso rotativo que produziam um chiado incômodo. Um oceano de nuvens cuja maré provocou um recuo e exibia, em retorno, velhos navios naufragados corroídos pela ferrugem.

Os dias insossos se arrastavam lentamente junto ao calor típico de maio.

A cidade ficava na divisa entre dois estados, na ponta sul do condado de Cotton-Cape, entre o Alabama e a Flórida. Existia um grande questionamento territorial e político de não pertencimento desde sua fundação. Todos os nascidos em Roseville até o início dos anos 60, durante o período pós-guerra, eram cidadãos do Alabama. O restante de nós, herdeiros dos baby boomers, éramos citadinos do estado da Flórida. Cotton-Cape pertenceu ao Alabama por mais de meio século até ser declarado território do estado vizinho, bagunçando uma geração inteira geograficamente. Uma disputa silenciosa e intensa que começava entre os governantes e terminava entre os cowboys e homens de meia idade com camisas floridas erguendo suas bandeiras mescladas.

Roseville era potencialmente uma raridade. Pais e mães repetiam orgulhosos aquela frase emblemática de programa de TV dominical. Ficava em uma área privilegiada entre a zona de plantio de algodão, dos gigantescos pomares de laranja ao leste da Flórida e se estendia em direção à riviera de Cotton-Cape, na pequena curva em formato de vírgula na ponta saliente do estado. Olhando o mapa, era necessário uma lupa para encontrar a localização exata da cidade pintada com linhas verdes no meio da imensidão azul do atlas escolar, decalcando o apogeu da zona algodoeira, no sudeste do país. E lá estávamos nós, perdidos no meio de dois grandes estados, e aqui, nessa cidadezinha irrisória, nos confins de lugar-nenhum, está toda a minha história.

Taehyung e eu costumávamos sentar nas pedras da ponte sedimentada que se estendia em direção ao mar, observando a maré subir e a rebentação quebrar nos rochedos que seguiam abaixo das falésias, gritando para as balsas e navios cargueiros que vinham do porto de Canaveral pela rota marítima do Golfo do México. Tentávamos adivinhar os nomes das embarcações a léguas de distância e acenavamos para os pequenos pontos em movimento no convés superior das plataformas, que vez ou outra, acenavam de volta. A baía de Salt Heirs se animava somente durante os dias de verão, mas se enchia de amantes durante a madrugada, fugindo de olhos curiosos em busca de privacidade barata e imediata, na manhã seguinte, peças íntimas surgiam carregadas pela maré até a orla marítima e viravam parte da exposição orgulhosa nos achados e perdidos dos quiosques.

BADLANDS • JK.Onde as histórias ganham vida. Descobre agora