As vozes dos alunos dentro da biblioteca não me incomodavam tanto quanto os filmes faziam questão de apresentarem, não sei explicar ao certo, mas era quase como se fosse uma necessidade dos alunos se expressarem e se soltarem ali, os livros, mesmo que pela maioria intocados, ainda eram lidos ou folheados por alguns, outros desses felizardos eram levados pra casa e entregues um tempo depois, mas em suma, a utilidade daquele lugar era de fazer com que os alunos se descontraíssem durante os intervalos, algo que eu aprendera a abrir mão de tentar mudar.
– Você nem se atreva a entrar aqui com essa coisa! – Minha voz se fez ouvir desde a entrada do lugar, uma garota trazia consigo um geladinho em mãos, ela acenou com a cabeça e voltou afim de terminar sua degustação primeiro.
– Ethan hoje parece que acordou do lado errado da cama. – Um jovem de cabeça completamente raspada surgia ao meu lado.
– Não é bem isso, mas é isso sim.
– Então, isso é um livro novo pra esse lugar empoeirado, é? – Ele apontou na direção do livro que eu tinha sobre o colo.
– Não, digamos que esse aqui é um presente especial.
Depois disso os diálogos entre os alunos se seguiram sem muitas interrupções, um momento ou outro eu erguia minha própria voz no meio da multidão, e vez ou outra algum engraçadinho tentava retrucar algo a respeito disso.
– Falem baixo!
– Baixo.
– Altura vocal e não a palavra, ou essa matéria foi difícil demais pra você, maternal?
Esse havia se tornado o meu jargão pessoal, e mesmo que a maioria conhecesse, os mais engraçadinhos ainda pareciam gostar de me ouvirem mandar eles calarem a boca com meu nível padrão de educação.
Assim que o intervalo se foi e o silêncio voltou ao ambiente eu pude enfim voltar a minha leitura do livro, haviam coisas ali contidas que eu sentia a necessidade de compreender, tanto pela minha segurança quanto do coletivo, e isso incluía Noah e as meninas, eu não queria ter que presenciar novamente cenas como aquela, não queria ver mais ninguém sofrendo com as perdas de seus amigos ou familiares, e se aquele livro pudesse me contar algo mais a respeito do que pode ser essa Ordem ou mesmo do porquê de existirem as joias e como encontrá-las, eu precisava chegar a tal resposta, não importando o quanto isso demorasse.
Quando o primeiro período escolar terminou eu fechei a biblioteca e sai com mais pressa que o convencional, alguns colegas me perguntavam o que havia acontecido, mas eu simplesmente acenava como se dissesse volto logo, esperando que eles compreendessem a mensagem, ainda havia uma coisa que eu precisava fazer naquele dia. Olhei pra a tela do meu celular enquanto corria em direção ao local, eu precisava me encontrar novamente com aquela garotinha, eu precisava tentar dialogar com seus pais para tentar mantê-la um pouco mais segura, e acima de tudo, eu precisava tentar encontrar alguma relação entre quem, quando e onde as joias apareciam para seus donos, havia algo relacionado, eu tinha que tentar encontrar essa relação.
A jovem me esperava como combinamos assim que a deixei na entrada do colégio, confesso que era um pouco estranha a sensação de ter tão facilmente a confiança dela, não em relação ao que aconteceu, mas como aconteceu. E se, por um acaso, alguém mais também tivesse tido a mesma ideia? Um monstro não deveria aparecer do nada pra nos atacar, e se aparecia, como os outros não conseguiam presenciar aquilo? Como as outras pessoas realmente não pareciam notar aquelas coisas?
Eu e a jovem seguimos pra casa dela, no caminho ela vez ou outra me perguntava a respeito de algo relacionado aos seus poderes, e algumas coisas eu conseguia responder pelo conhecimento que tinha aprendido pelas noites em claro lendo o livro, e o que não sabia eu prometia que iria descobrir. Uma coisa interessante que eu percebi com aquilo foi que era inevitável os Guardiões não criarem vínculos entre si, sejam esses vínculos positivos ou negativos, todos pareciam se atrair uns aos outros ou se repelirem, aquilo explicava como nosso time parecia tão unido inesperadamente, e isso, em outras situações, poderia ser de uma valiosa necessidade ou mesmo de um grande perigo.
– É aqui! – Ela falou ao parar, apontando pra uma casa de cor azulada, quase verde, completamente murada.
– Acho melhor você chamar sua mãe antes que eu entre invadindo, seria um pouco assustador para ela.
E ela assim o fez, longe de mim querer fazer mal a alguém, mas a vida me havia ensinado uma coisa muito importante, se houver oportunidade pra você causar uma má impressão, evite ir adiante. A mãe da garota era uma senhora que eu julgaria ter por volta de quarenta anos, seu corpo e cabelo tinham um pouco do que parecia ser farinha, e ela tinha um avental verde com letras pretas que dizia se eu cozinhar, você lava senti uma profunda necessidade de ter um daqueles, mas contive meus surtos.
– Olá, boa tarde, em que posso ajudar?
– É, bem... – Eu tinha ido até lá tão perdido em meus pensamentos que sequer tinha bolado o que poderia dizer quando chegasse.
– Mamãe, mamãe, ele tem aquilo também.
A senhora me olhou um pouco atônita, tal qual retribui seu olhar, mas aí eu percebi o que aquilo significava e apenas acenei com a cabeça, ela olhou pros dois lados atrás de mim e me pediu pra entrar, com certeza esse tinha sido o convite mais estranho que já tinha recebido, mas frente a situação, nada mais deveria me surpreender. Assim que entrei ela me direcionou aos sofás da sala e seguiu para a cozinha pra se limpar um pouco, voltou com uma garrafa de café e alguns copos.
– Me desculpe pela forma que eu estava, é que eu faço encomendas de doces pra vender e você apareceu no momento que terminava.
– Também sinto muito por isso dona, ah...
– Enertina, me chame de Enertina.
– Então, dona Enertina, acho que pela fala de sua filha você já deve entender o porquê eu vim aqui, em algum momento da vida dela aconteceu algo estranho, não estou certo? E ela começou a fazer, coisas estranhas e anormais para uma criança tão jovem.
Apesar de seu olhar desconfiado, Enertina olhou pra filha que retribuiu o olhar com um sorriso e um aceno de cabeça, talvez tentasse passar a impressão que eu era confiável, a senhora então voltou o olhar pra mim e prosseguiu a conversa.
– Sim, uma certa manhã quando acordamos, o quarto da minha filha estava coberto por pedras esquisitas, ao primeiro momento achamos que alguém tinha atacado a casa, mas aí, bem, descobrimos que a causa era a própria Lílian, acho que ainda não é algo que eu e meu marido tenhamos aceitado.
– Entendo, mesmo que pareça estranho, eu não estou aqui pra assustá-la ou algo parecido, mas sua filha corre perigo, e eu não sei exatamente a que perigo se trata isso, mas posso confiar que está, pois eu e alguns amigos sentimos isso em primeira mão. Nós também, em um certo dia, acabamos com esses, ah, poderes estranhos, mas quero deixar claro que tudo que queremos é seguir nossas vidas bem. Eu vim aqui só pra pedir que tomem um pouco mais de cuidado com Lilian, e pra dizer também que enquanto estivermos por perto também faremos nossa parte para mantê-la segura.
– Isso é muito reconfortante senhor...
– Ethan, pode me chamar de Ethan, me desculpe a falta de apresentações.
– Não, só por isso eu vejo que você é um bom rapaz, nós tomaremos cuidado, e muito obrigado por sua preocupação por uma família de desconhecidos.
– Acho que eu quem agradeço por confiarem em mim.
Fiquei pensando a respeito do que a senhora disse, desconhecidos, mesmo que fosse uma verdade, não deixava de estar um pouco equivocada, acho que ninguém que passe por situações como aquelas era totalmente desconhecido uns dos outros, Lílian já era alguém muito conhecida pra mim.
– Eu tenho uma última pergunta antes de deixar que a senhora volte a seu trabalho, e me desculpe por ser completamente fora da questão, mas a senhora disse fazer encomendas de doces, eu gostaria de comprar alguns, o cheiro está me matando e eu não almocei.
Me senti constrangido da forma como ela riu da situação, mas era uma realidade, eu estava tão apreensivo e preocupado com a garota que sequer tinha almoçado, ela me apresentou alguns bolos e eu comprei alguns pedaços e segui de volta pra meu trabalho, deixando meu número pro caso ela precisasse me informar algo mais a respeito da filha.
Voltei com Lílian em meus pensamentos, não parecia ter qualquer conexão aparente entre nós e ela, nem mesmo o tempo era igual, nem idade, nada, poderia significar que era realmente inesperado e aleatório a forma como cada joia encontrava seus donos, mas isso não justificava muito o ataque das criaturas, talvez essa manifestação de poder tivesse alguma relação apenas com os monstros.
Pensar tanto me dava uma certa do de cabeça, peguei um pedaço de bolo e comi enquanto caminhava, era realmente gostoso, eu iria providenciar um pouco mais depois, acho que não havia sido de todo ruim tudo que aconteceu, mas eu me negaria a dizer isso em voz alta, não queria ter mais nenhuma outra situação inesperada caindo sobre minha cabeça.
– Se ao menos tiver um jeito de encontrarmos alguma ligação entre os ataques e os portadores, sinto que há algo que ainda estamos deixando passar.
Ao menos era essa a sensação que eu tinha.