03 - ÍRIS 火

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Olhava pra tela do meu celular quase como se tivesse algo mais ali que em algum momento fosse pular na minha cara, minha mente parecia viajar e eu só conseguia pensar que deveria ter ido com Noah e Ethan ao invés de ficar ali naquela aula. Química ambiental não me parecia muito agradável e ainda por cima ter aulas teóricas não ajudavam muito na compreensão do que deveria ser feito em laboratório.

Passei meus olhos em torno do lugar, uma sala cheia de pessoas concentradas na voz do professor, no quadro branco repleto de formulas, nos cadernos que eram riscados com conteúdo diversos, e eu ali, voltando a cada instante a olhar a tela do meu celular, era estranho pensar que eu estava me sentindo tão desconfortável em ter um dia comum.

Contudo, não era um dia comum, nem era realmente um dia especial ou importante, tudo se resumia em uma característica simples que me atormentava bem mais do que parecia atormentar aos outros, a memória. Alguns felizardos simplesmente não conseguiam ter uma memória tão afiada ao ponto de lembrarem de datas, lembro-me de Ethan ter comentado que era mais fácil ele recordar o rosto de uma pessoa aleatória que ele viu na rua em um dia e tendo reencontrado ela sete anos depois do que lembrar de uma data especifica, acho que podemos dizer que eu era o contrário, datas me incomodavam, datas me faziam ficar alerta, datas me atormentavam por relembrar de diversas sensações, e aquela data, era mais um dos meus mais diversos incômodos.

– Íris, você tá bem? – Amanda, minha companheira de todas as horas de chatice, parecia preocupada comigo, ela já me conhecia a tempo suficiente pra saber até quando eu piscava errado.

– Pra falar a verdade, não.

– Camila?

– É, ela mesma.

Amanda deu um aceno com a cabeça, deixou o lápis que tinha na mão sobre a carteira e a enfiou na mochila atrás de si, e então puxou de lá uma cartela de remédios, algo que fez um certo barulho na sala, mas ninguém parecia se importar muito com aquilo, e então lançou um olhar para o professor como quem estivesse prestes a dizer o motivo por sair da sala e só queria garantir que não teria uma falta nos próximos minutos, o que pareceu ser uma conversa entre olhares quando ele apenas revirou os olhos e Amanda se levantou me puxando pelo braço, como sempre, eu não tinha sequer chance de discordar das ideias dela quando bem queria fugir da sala, ela sabia muito bem quando eu mesma queria fugir.

Saímos pelo corredor a procura de um lugar só nosso, um lugar que mais ninguém se incomodaria de ficar naquele momento, esse canto era sempre nos fundos do pavilhão logo à frente do nosso, uma área com grande vista de puro verde que durante o dia ficava deserto, já durante a noite se tornava quase que um recanto pra drogas e sexo, o puro suco da liberdade universitária, não que eu estivesse sabendo disso por segundas intenções, só aconteceu de descobrir, eu tinha tanta vontade de ter essas reuniõezinhas quanto tinha desejo de ir as festas dos amigos de Jessy, a minha colega de quarto, ­e receber cantadas de garotos.

– Vai, já pode me contar o que foi que aconteceu! – Amanda era sempre tão direta quanto um soco no estômago, fico me perguntando como eu não tinha a apresentei pra Jessy ainda, tenho certeza que as duas juntas fariam estragos na minha vida.

– Não é o que aconteceu, mas o que está pra acontecer.

Olhar aquele extenso matagal me fazia pensar que alguma criatura pularia a qualquer momento em nossa direção, isso me deixava um pouco tensa e ao mesmo tempo com aquela sensação eufórica de poder, e mesmo que eu estivesse fazendo um favor aos funcionários se tacasse fogo em todo aquele mato, achei melhor não apresentar pra Amanda minhas capacidades incendiarias daquele jeito.

Contei pra ela o que havia acontecido, ela já sabia muito bem da minha história com Camila, minha namorada do ensino médio e que acabou vindo comigo pra faculdade, e que jamais deu certo de verdade entre tantas términos e recomeços tóxicos, e ela sabia mais do que ninguém como isso havia me deixado propensa a evitar qualquer investida de outras pessoas, mesmo que desejasse ter o conforto delas. Amanda foi a primeira pessoa com quem fiz amizade logo ao entrar na faculdade, e embora não tenha sido no mesmo nível de vinculo que criei com Jessy, que surgiu pouco depois e passamos a dividir a casa, – e que esquestra e usa as minhas peças intimas com caras aleatórios por aí – eu a considerava como uma verdadeira melhor amiga, quase como se fossemos primas distantes que adoravam quando se encontravam.

– E o que seria isso, Íris?

– Camila me ligou algumas noites atrás.

– Como é que é? – Ela ergueu o tom de voz mais alto do que deveria, estávamos atrás de um pavilhão, e mesmo que as turmas tivessem aulas apenas no segundo andar, acho que o pavilhão inteiro a ouviu.

– Calma, eu não atendi, eu reconheci o número, mas não atendi!

– Pois devia ter atendido, me dá o celular, eu vou dizer umas poucas e boas, qual é o maldito número!?

Eu bem que queria deixar, mas envolver mais alguém nessa confusão minha não era uma boa escolha. Algumas pessoas dizem que as desgraças nunca vem sozinhas, e depois de ter presenciado um pouco do meu passado, o ataque de Anna, seu estado de coma e ainda descobrir que Antunes havia sido morto, uma coisa atrás da outra, eu tinha aprendido da pior forma como isso era real. Mesmo que quisesse continuar com minha animação e euforia, eu ainda me sentia triste com tudo isso que aconteceu, tive tempo suficiente pra processar durante esses últimos dois meses, mas Camila era uma situação completamente diferente, algo que eu não queria lidar agora, ela ter me ligado foi o estopim pra que eu me sentisse novamente horrível.

Amanda percebeu minha viagem interna e tocou uma das minhas mãos.

– Você não acha que devia só esquecer? Olha, não me entenda mal, eu não posso descrever como você se sente em relação a tudo, mas não acha que o melhor é dar um fim oficialmente?

– E eu já não tentei? Vivemos indo e voltando mais vezes do que eu já troquei de roupa e mesmo assim não dá certo, parece que eu sou simplesmente um brinquedo que é usado quando ela quer.

– E você é?

– Claro que não!

– Então diga isso a ela, e se não conseguir, diga a você mesma!

– E se eu não conseguir nenhum dos dois?

Ela parou por um momento como se analisasse a situação em que havia se metido, não era incomum termos esse tipo de conversa as vezes, mas eu meio que sempre acabava trazendo à tona algo inevitável. Em se tratando de todo o resto eu poderia encarar numa boa, em se tratando dos meus sentimentos, eu era péssima, dessa vez ela simplesmente respirou fundo e desistiu, não de mim ou de me ajudar, mas de tentar achar uma solução fácil.

– Vamos só passar esse dia da melhor maneira, eu quero a minha destruidora de corações vivíssima porque, do contrário, quem vai me ensinar a matéria de química?

– A matéria que estamos perdendo? Vai nessa, se eu entendi muito eu não entendi foi nada.

– As provas da primeira unidade prometem.

– Sim, bomba!

Voltamos pra sala, no caminho Amanda foi até o bebedouro tomar seu remédio, eu queria pensar a respeito do que ela sempre me dizia, sobre deixar algumas coisas claras, mesmo que parecesse fácil falando, não era tão fácil pra mim, eu queria estar bem, não por qualquer pessoa, mas por mim, e agora que eu precisava ajudar as pessoas e tinha isso em mente, eu precisava me sentir muito mais do que bem, eu precisava me sentir livre dessa pedra no sapato porque a única pedra que eu precisava agora eu usava como meus anéis triplos.

– Sabe Amanda, tem alguma festa marcada para esse fim de semana?

– O quê? Não, eu não acredito!

– O que foi?

– Quem é você e o que fez com minha amiga? Espere um segundo Íris, juro que vou te encontrar enterrada no meio da grama!

– Idiota, eu falo sério!

– E eu também. Íris, você tá aí, garota? Quem é esse clone aqui? – Ela não gritava exatamente, mas queria fingir gritar, dei um tapa em seu ombro, ela se voltou pra mim. – Tem sim amiga, povo dessa faculdade sempre acha jeito de fazer festa.

– O que me deixa ainda mais incomodada no que estou querendo fazer.

– Palavra de amiga, no segundo que você disser que cansou, nós vazamos!

– Obrigada.

Acho que precisava ter um momento de socialização humana, talvez eu me divertisse um pouco se simplesmente tentasse, desde que me tornei Guardiã, era mais fácil me arrepender de tentar do que me arrepender de não tentar, então que seja. Dei de ombros com esses pensamentos e voltamos pra aula, desejando que ela acabasse tão rápido quanto ela havia começado naquela manhã.

A Ordem / Fragmentos da Eternidade, Livro 02Where stories live. Discover now