Capítulo 38

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Vejo sorrisos em dois rostos antes infelizes. A colheita de cenoura e batata está finalizada. Estão realizando a conferência dos alimentos, poucas poderão ser aproveitados, mas enche de orgulho ambos animais.
Patro passa diariamente os seus conhecimentos sobre a terra, essa colheita é de responsabilidade do filhote. Recolhem sete cenouras e vinte e duas batatas, muitas sopas poderão ser feitas. Ilda não irá gostar, Belarmino está com saudade de comer carne.
Pede para que o filhote recolha e ponha tudo em uma saca. Se levanta e limpa as mãos, observa o pedido ser obedecido, o rosto de Hermínio se destaca mesmo com o cansaço lhe distraindo. As bochechas estão caídas, os olhos parecem sonolentos, é a mesma feição de diversas vezes em que o viu sozinho na sala olhando para uma vela e clamando a oração da criação na Morada para o pai.
Distrair a mente de Hermínio não o faz esquecer. Patro lamenta não conseguir trazer calmaria ao espírito dele, a solução é sabida, a dor do filhote é compreendida por ele, está cravada, mas não quer falar sobre ela sem antes lhe oferecer aprendizado e experiências indolores.
O pensamento o faz criar um conflito interno. Se contar sobre a mãe poderá dar ao menino a força necessária para se superar, mas, não sabe se ele próprio quer falar sobre ela. Decide ao menos chamá-lo para se sentar e aguardar as palavras e a coragem surgirem.
O coração acelera ao escutar um relinchar repentino. Reconhece o alto homem e a pisada sem força da perna esquerda, Belarmino sempre ri ao vê-lo andar. O cumprimenta com a cabeça, Patro estica sua mão, é apertada.
— O sol marcou seu corpo todinho, ocê está sujo. Pediria que se limpasse, o tempo do senhor Donato é precioso a ele, ponha sandálias e entre na carruagem.
A face de Patro esquenta ao ouvir o nome do endemoniado, cogita entrar e trancar a porta.
— Qual o intento do senhor Donato? Nossa última conversa foi esclarecedora e teu desejo de não mais me ver igualmente.
— O tom do senhor Donato era alto quando a filha entrou na casa, os cavalos saltaram e poderiam ter soltado as rédeas. Não se mostrou ao dizer que eu deveria conduzi-lo a fazenda, iremos de pronto.
"Filha". É no que se concentra.
Lamenta que Dorina não o ouviu, não supôs que a malícia que tem em relação ao pai é volumosa. A curiosidade se mistura aos seus pensamentos, também a vontade de revê-la, mas há o obstáculo.
Patro explica que não pode ir. Belarmino trabalha na construção de casas. Ilda e Hermínio estão sozinhos.
O cocheiro puxa sua gola da camisa ao vê-lo se direcionar a casa. Esbanja uma careta preocupada e pálida, suplica para que o acompanhe. Não obtém resposta diferente, chuta o solo para que force o funcionamento da mente.
Patro contempla a dança bizarra e a perna esquerda que o faz parecer que cairá. Reflete por consideração. Pede que se acalme, sugere que ele zele pelas crianças enquanto vai até o pai e a filha. O cocheiro não quer ficar, não tem opção, aceita.
As marcas das rodas e das solas são nítidas para Patro, o solo continua igual após quase dois meses sem realizar aquele trajeto. Os cavalos param, relincham pedindo que desça. O portão está escancarado. Escuta à distância o divertimento de seus antigos companheiros. Acima vê a cabeça dela ir e voltar na janela. A impressão é que o cheiro do perfume está descendo pela ventania.
Sobe as escadas olhando para baixo, os pés são trocados devagar. É surpreendido. Dorina se encosta na parede a sua direita, uma rasa movimentação de boca é o que ela lhe oferece. Não consegue sorrir ou falar com ela, a olhadela dura segundos, resguarda a energia para o endemoniado.
Está sentado, com o cabelo bagunçado. Olhos esbugalhados e cheios de veias minúsculas. O grande bigode esconde seu lábio superior.
Bate as palmas na mesa e com o apoio se levanta para andar até Patro. Executa um rápido movimento na face do visitante, os ossos da mão colidem contra o osso zigomático, ele cai perto de si. Pisa em seus dedos direitos, pressiona com a ponta do bico de seu sapato. Dorina o empurra, seu corpo não se mexe.
Vê a filha ajudá-lo a ficar de pé. Usa a mão esquerda para jogar o cabelo para trás, depois fala:
— Minha arma quebrou, o seu deus criador de pardal lhe presenteia com fortuna, filho do demônio de três cabeças! Eu queria atirar em suas partes por desonrar minha filha!
— Senhor Donato, te apelo que minha intenção não foi desonrar tua filha, meus sentimentos são sinceros por ela, não tenho arrependimento.
— Ouço bem ou estou louco? Sem arrependimentos! Terá muitos arrependimentos. — Acerta-lhe com um soco mais lento e pesado. Pega em sua mesa uma garrafa de uísque.
— Não tenho arrependimentos também, Donato — diz Dorina.
— Tu esconde a língua atrás dos dentes — Estende a mão esquerda, a aproxima do rosto da filha —, está vendo conversa de homens. Quieta.
— Não bata na senhorita, continue a bater em minha face, em minha barriga, o que desejar.
— Não! — berra Dorina. Ambos se surpreendem com a elevação de tom.
— Está a saber do outro erro que cometeste?
— Qual?
— Fale a ele!
— Tu será pai — diz Dorina com uma rápida dicção.
Imediatamente se recorda de Gêmeo.
— Torça para nascer um gajo, Elói. Um herdeiro é necessário. — Solta a garrafa enquanto se acomoda em sua cadeira.
Agora não há dúvidas, acredita no poder de meu igual de ver o posterior. Reflete, não é o poder de um anjo. Sequer nas palavras do livro sagrado dos cristãos existem citações sobre clarividência como dom de anjos, não entende o que Gêmeo é.
Dorina cobre sua mão direita, desloca-os para fora do escritório. Donato arremessa a porta, assusta ambos.
Ela entra na carruagem e pede que ele a conduza até a casa da avó. Patro se recorda do aviso de Gêmeo, coça os olhos e bate no rosto, se contorce com a dor, a marca feita por Donato continua ardendo.
Durante o trajeto pergunta sobre como ela tem vivido durante os dias de distanciamento. Dorina pensa em uma resposta, abre a boca, guarda as palavras ao sentir a barriga contrair, interpreta como um sinal. Resolve fazer um questionamento a ele, deseja saber sobre o que ele planeja a partir da revelação.
Seus pensamentos se apagam, não há nada planejado, a execução do acordo está quase completa, em nenhum momento pensou em sua vida após o nascimento do filho, tudo se resolve após o parto, é o que imaginou. Uma resposta elaborada não é possível naquele momento, pede desculpa por não ter elaborado um plano. Dorina muda de assento, cruza os braços e desvia os olhos para o teto.
Avista Eulália varrendo a calçada da casa, balança a mão direita em cumprimento habitual. Patro ajuda a senhorita a descer. As mãos se juntam, ela aperta seus dedos e novamente o conduz. Eulália o encara sorrindo, Patro evita o olhar, sente emanando da mulher uma energia repulsiva, o mesmo que sente ao estar perto de Donato.
A casa está igual. Pede permissão para subir ao quarto dela, Dorina belisca sua barriga, ele se afasta dela e ri, corre até a escada. Vê a cama arrumada com o mesmo lençol vermelho-claro com desenhos de cabeças felinas bordadas, recobra as sensações da noite da concepção. Atrás dele exala o perfume daquele dia.
Se recostam na colchão. Patro estira o pescoço para aproximar a face, Dorina desvia, sem contatar seus olhos, diz:
— Te farei um pai e nada pensou sobre nós, sobre o filho. Me entristece saber de tua lesa hombridade.
Retorna para a posição normal do pescoço, ergue as sobrancelhas. Dorina atenta-se a ele, o pressiona com a feição serena de sempre.
— Ao saber que seria pai pensava que tudo se resolvera em minha vida, não soube por ti que teria um filho... — Nota a careta de dúvida se formar, se cala, pensa no que falará. — Estou a me acostumar com tudo, saber desta notícia me fez confuso. Queria lhe falar algo belo, porém, não há beleza a ser dita. Terei que trabalhar muito, teu pai não me dará dotes.
— Dará, não por simpatia. Donato é um homem abastado de gados, alianças especiais e está a fazer e vender leite. Eu olhei a reação dele ao falar do neto, está contente em saber que nascerá, se for menino fará festança.
"Menino", "homem", as duas palavras circundam por sua mente. As palavras de meu igual.
— Rezarei para nascer homem — responde Patro.
— Tua fé ora pelos que esperam a vida unida as mães? Me ensine uma reza, pois desejo o mesmo, que seja homem, para não ter que viver uma vida em semelhança a minha e de minha amada avó.
Patro ouve o tom penoso do final da declamação de Dorina, puxa sua mão macia para sua boca.
— Este é o mesmo lençol daquele dia. Meus olhos estão corretos?
— Sim. Foi aqui e envolto a ele que nosso filho foi abençoado por Deus, não os tirarei até o dia em que nascer.
Patro segura ambas mãos da senhorita. Respira devagar, expõe uma careta séria, em demasiado. Dorina paralisa, seu coração também.
— Tudo que fizer, tudo em plenitude, diga a mim. Não se arrisque fora desta casa, não ponha o corpo na calçada sem necessidade. Poupe a mente e se distraia com felicidade, coma para ter fartura, durma sem pesar, me escreva se necessitar de minha presença.
— Não irá me controlar! — Separa as mãos. — Não permitirei dois Donatos em minha vida.
— Peço que não interprete minhas palavras como ordens de um ditador. Não é Pa... Não é Elói que está falando, é um pai que quer o bem do filho.
Dorina se cala. Oculta o rosto com as mãos, sorri. Recebe um abraço do antigo noivo, depois lhe é pedido que o acompanhe até a casa de Hermínio.
Patro pergunta se tem um chapéu e um guarda-sol. Ela não entende o questionamento, mas confirma que os tem e fala onde estão. Ele acha tudo rapidamente, agora partem.
Une as pálpebras para pedir a aparição de Gêmeo. Escuta os arredores, sente o vento e os raios solares. Abre-as, quase acerta um cavalo e seu dono, é amaldiçoado.
A dúvida sobre a nascitura sufoca seu âmago, nubla sua realidade, a cabeça lateja tanto quanto a ferida do ataque de Donato. Planeja dizer a ele que morará com Dorina para se tornar o guardião do filho sem destino iluminado.
Enxerga Ilda e o cocheiro. Ele aponta o dedo para a menina, que pula e agita os braços. São notados por ambos, o cocheiro se controla para evitar xingá-lo.
Dorina sai da carruagem, ambos se calam. Conhece Ilda em razão da tutoria de Eulália, mas não tiveram contato. Ao se aproximar dela e se agachar, a pequena corre para a porta da casa, então é fitada com a típica postura raivosa infantil: bico de pato e braços cruzados, com o acréscimo de uma cusparada no chão.
Patro olha para Dorina após testemunhar o gesto de Ilda, a negação da visão confunde sua ação. Agarra com firmeza o pulso da senhorita, ela se surpreende e reclama do aperto. Andam até a posição da pequena, ela pressiona as costas na parede.
Solta a provável mãe, requisita a mão de Ilda. Ela encara a fina e suada mão dele, depois a face, então ambos. A pequena estica a mão. Patro a direciona a Dorina, diz:
— Esta mulher que tu conheces ampara meu filho. — Leva a mão de Ilda, toca a barriga da senhorita. — Pedirei tua ajuda para zelar por meu miúdo. Dará banho, comida e o divertirá, será a irmã mais velha dele.
Ilda soluça, a voz é bloqueada. Dorina acaricia a própria barriga, a pequena se retrai, é pedido que continue a tocá-la, repousa a mão novamente.
Patro abre a porta, chama por Hermínio. Os passos são lentos, ele surge, desanimado e mal cheiroso, não fala. Repete o ato anterior agora com o filhote, diz:
— Meu filho dorme nesta barriga, esperando para ver os pais, e os irmãos. — Vê Hermínio fechar os olhos. — Tua ajuda será requisitada, tua bondade e amor que sentia e sente por Armando não precisará estar escondida em tua amargura e luto. Mostre a meu filho teu amor espontâneo, seja feliz, e faça dele um gajo feliz. — Hermínio seca as lágrimas na barriga de Dorina. Recebe afago dos dois adultos e um beijo de Patro.

AVENÇA IMORTALWhere stories live. Discover now