Capítulo 35

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— Temos muito para fugir. Mais um pouco, sinhô Elói, necessito de mais réis.
— Cumprirei o que te disse, devo falar com Belarmino para entregar o restante das moedas.
O exterior está vazio de animais. No lado esquerdo estão Ilda e Belarmino. Ele está sentado em uma das cadeiras da casa, observa os pássaros piando. Entrega ossos de coelho para os cachorros de rua. Quando moradores de rua param para pedirem esmolas, ele lhes aconselha aos moldes dos provedores. A razão única de estar ali é para garantir o castigo da pequena, que deve permanecer com o rosto para a parede, não é permitido que descanse as pernas.
No momento em que parte para conversar com o amigo, Ilda pronuncia xingamentos subliminares, usa animais e frutas para ofendê-lo. Belarmino manda que se cale, ela bate o pé. Patro agacha-se, o ouvido do amigo é preenchido com informações que não estão em suas principais prioridades. Se reúnem para definir a questão. Chama pela pequena, um grito e pulo são realizados.
Patro retira as moedas de sua bolsa, senta no chão. Conta e separa quantas irão para Aru e Joabe. Cada moeda na ponta de seu dedo indicador esquerdo é um pedaço de seu objetivo sendo desfeito. Soluça, morde a ponta do lábio inferior. Sua intenção era dar-lhes metade, teme pelo futuro e por seus amigos, separa um pouco menos da metade.
O outro decide sem pensar na quantia a entregar. No corredor, Patro olha instintivamente para a porta do quarto de Armando, há uma sombra de um homem em pé. Cessa o andar, Belarmino pergunta, responde que irá visitar o animal débil.
Lentamente empurra a porta, o cheiro do quarto não é a usual mistura de fezes e urina, o odor é de respiração. A tensão pulmonar me faz compará-lo a um boi ferido em uma arena espanhola. Patro posta-se ao lado de Joabe, seu pescoço está esticado e suas sobrancelhas estão unificadas.
— Esta careta em teu rosto, qual male que te acomete? — diz Patro.
O pescoço trava ao querer ver o animal. Seus pensamentos são confusos e múltiplos, todos focados naquele que está deitado. A intensidade mental faz suas memórias tornarem-se físicas para mim, muitos fazem aquilo quando estão refletindo sobre decisões e ações estressantes e difíceis como a morte de um ente, um ataque a inocentes, um roubo que pode mudar tudo.
— Me acompanhe à sala. As moedas estão conosco, o objetivo dos dois poderá se concretizar.
Coloca a mão em seu tórax esquerdo para virá-lo à porta, é uma coluna de mármore e gesso. O magnetismo ocular continua. Patro põe perto de seus olhos o saco de moedas, o barulho fez o efeito desejado, sozinho deixa o quarto. O português pega um lenço sujo de pano, limpa a boca de Armando.
Aru e Belarmino conversam. Ilda está sentada e com a feição irritada. Ambos erguem os braços e mostram importunação. Aru puxa o companheiro para o seu lado, usa as mãos para fazer o gesto pedinte. Belarmino olha para o amigo e balança a cabeça em negação. Joga suas moedas para Joabe, a alegria é escondida no rosto, não no aperto ao saco de couro.
Patro entrega os seus bens a Aru. Ele cheira, joga e apalpa em ambas mãos. abre para ver o conteúdo. Vai a mesa, espalha as moedas, rodam pela madeira, pressiona as palmas naquelas que escapam,. Faz a contagem se comportando como uma criança jogando areia nos progenitores.
O verdadeiro morador da casa anda com a força da ponta de seus pés. Vê uma criança, não o reconhece. Percebe que se confundiu com a feição mudada de Aru. O barulho de moedas alegra o filhote. Corre, olha para o companheiro do pai e para o metal que realizará seu desejo, não escolhe em qual focar.
O forte fugitivo empurra as moedas para o compartimento. Estica o braço, pede a Patro que o cumprimente como os homens o fazem. Ambas as patas do leão pressionam a do coelho, profere um agradecimento. Patro aceita e se contenta com as saudações.
Ilda pede a Belarmino para sair da casa. Ele duvida do que ouve, gargalha com repreensão dos músculos vocais. A pequena lhe chuta, acerta o preponderante osso da tíbia, pula com uma perna e raspa a toga na ferida. Pega sua mão, deixam a casa sem um destino definido.
Rir é o que fazem. O chocalho de moedas é o que deixa a sala com aspecto vivo. Hermínio está calado, fica atrás de Patro olhando para sua nuca esperando que se vire. O português se incomoda com algo, visualiza a alegria do filhote, diz:
— Diga-me o motivo de teu contentamento, gajo.
— Galo é ocê! — O filhote vira a face, mira em Aru. — O hómi parrudo deixará minha casa, meu espírito dança, num quero dormir na mesma casa dele não. Esse hómi tem ruindeza no hálito e no andar, quando senta à mesa e o olho comendo sinto que irá me atacar.
— É sem cabeça, gajo. Em minha terra um leão novo não rugi perto dos leões grandes. Me julga por mal, o que fiz a ocê? Ou teu pai? Breve irei, terá tua paz.
Os olhos estão em Patro.
— Promete que o hómi não pisará em minha casa?
Ao iniciar a resposta algo aperta-lhe o pescoço. Passa os dedos, não há nada. A visão lhe revela a abscência de Joabe. Pergunta a Aru onde ele foi, ele também não sabe.
A aproximação do corredor traz um som de engasgo com característico tom infantil. Volta a sentir o inusitado aperto, tenta sugar ar, abana as mãos perto do nariz. Hermínio aparece a sua frente pulando e acertando suas costelas. A garganta é preenchida, se alivia, recomeça a andar.
O som de engasgo vem do quarto de Armando. Se mistura as pancadas de solados contra o chão. Joabe está sobre Armando, pressiona um travesseiro no rosto do homem-criança. A face agressiva e violenta estampa sua pele e músculos.
Filho e provedor usam a potência das cordas vocais. O filhote vai a frente, faz de seus punhos bolas de canhões europeias, mira no rosto e no tórax. Joabe larga o travesseiro, intenta segurar aqueles braços semelhantes as pernas de um labrador. O filhote desvia das mãos cheias de calos.
Patro olha para a confusão, impulsiona-se. Cobras cobrem o seu pescoço e seu queixo, os pés não tocam o chão. Agarra o membro superior, prensa os dedos forçando para baixo e para frente. A pele do animal é grossa, impenetrável, machuca os dedos do português. A resistência e dureza dos músculo do antebraço o faz compará-lo a uma casca de árvore.
Joabe segura os pulsos de Hermínio após três minutos. Patro enrijece o maxilar e estronda sem deixar o som sair. O agarro das cobras causa mais tensão no pescoço e no queixo.
O filhote de Armando é derrubado. Joabe retira o lençol da cama manchado de suor, quer amarrar nas mãos de Hermínio, a agitação do garoto é ardente.
A força das mãos esvai com a pressão no pescoço. A direita cede primeiro, os impulsos energéticos gerados por seu corpo para a outra mão não são suficientes para ultrapassar o pedaço de árvore. Usa as unhas, desfaz a ação imediatamente, se envergonha de tentar.
Vê Joabe render o garoto. Rasga uma parte do lençol, vai para as pernas. O menino continua lutando, acerta o rosto dele. Patro balança seu pescoço para todas as direções, molha as cobras.
Zanga as gêmeas. A sensação é de que o queixo está amassando, o osso queima. A entrada de ar é obstruída. Centenas de bolhas vermelhas, amarelas e pretas invadem sua visão. As pernas desfalecem, cai, escuta o próprio crânio bater no chão e depois quicar. Agora vê as longas pernas de Aru passarem perto de sua cabeça em direção a Joabe.
A perda da consciência é notada, contudo, começa um embate com ela para conseguir ouvir a aflição de Hermínio. E os sussurros dos agressores:
Ocê disse a mim que mataria o hómi sem ninguém olhar. Bateu com a cabeça na parede, foi? Se comporta como um javali com o dente nascendo.
— Todos estavam na sala, não me viam, o sangue fervilhou, minha mão tremia, não sou homem de guardá, Aru.
— Fez errado, agiu como cão! O que faremos se o outro portuga chegar? Matamos o padre e a menina?
— Vou matá o maldito! Não queria que o menino olhasse o pai morrê, mas, ele vai aprender sobre esta terra... — Patro nada ouve ou vê.
Cai de uma cama. Levanta-se. E cai. A cabeça dói, a visão escurecida começa a clarear.
Braços enlaçam suas costelas, é colocado novamente na cama. Belarmino está com ele, a feição o faz interpretar que ele vivencia uma mistura de sentimentos. Ao longe escuta a voz de Ilda no lado de fora batendo na porta, xinga a todos.
Os dedos gelados são postos no rosto de Belarmino, o dedo indicador esquerdo entra no olho do mais velho. Patro detém a lacrimação, a voz chorosa pergunta o óbvio.
O amigo o conduz apoiando a mão esquerda em suas costas. Quando passam a porta, o pesar jovial adentra seus ouvidos, assim como gritos de negação, pedidos de ressuscitação, clamor a Deus e juras de sangue contra sangue.
Tudo se origina do quarto de Armando. Belarmino permite que seu corpo ceda ao duro chão. Deita-se e estica-se, aperta a cabeça com as mãos e empurra a testa para baixo. Oculta a face entre os braços, respira fundo, impedindo, negando, repelindo a mesma tristeza de Hermínio.

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