Capítulo 25

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Patro estava dormindo na cama que pertencia a filha de Donato. A gentileza foi oferecida após o acordo entre os dois, o chefe ficou contente. Havia tentado convencê-lo a oferecer a mesma gentileza aos amigos, foi ignorado.
O treinamento com Armando durou três semanas. Após a conversa com Donato, havia imaginado que o português iria ser um ajudante dele. O ensinava de bom grado, revelava seus segredos de liderança. Voz firme, olhar esbugalhado, testa próxima, ordens precisas, rápidas e convictas.
Mandava Patro realizar comandos ditos por ele. O português dizia muitas palavras graciosas, muitos "pois bem". Não gerava conflitos, não alterava seu tom, os contornos dos olhos sempre eram amigáveis, não se impunha.
A postura conciliadora o irritava, pegava em seu pescoço e apertava esperando reações energéticas, quase o matou em três ocasiões.
Focou em tentar torná-lo agressivo, ensinara gestos de mãos, braços, cabeça e peito. O colocou na ação em uma dia incomum, mentiu que estava doente. Patro tinha que resolver as mortes de dois bezerros, alguém havia falhado. Reuniu os oito responsáveis, os interrogou, não obteve resoluções.
Armando se zangou, o surpreendeu e reassumiu, revelando que não estava doente. Em sua cintura um facão estava pendurado. Balançava o objeto como um esgrimista, queria a resposta, Patro o olhava com incredulidade, saiu.
Armando irá ter uma reunião com o chefe na manhã de hoje. Patro não sabe.
Seu quarto é ao lado do escritório de Donato. Acorda pelo som dos pardais, se levanta para colocar sua roupa de trabalho. Escuta duas pessoas, reconhece uma das vozes. O mesmo tom que ele usa com os serventes, usa com o chefe.
Vestindo ceroula, põe o ouvido na fresta da porta, escuta barulho de tapa na mesa. Armando amansa a vociferação, profere o nome do filho sete vezes. Cita deus e as dívidas numerosas, revela que o dinheiro está escasso. Donato diz para se calar, é um ultimato. O servente deseja saber o porquê. As vozes se tornam baixas, não consegue ouvi-los.
Após oito minutos, um berro. Patro corre sem colocar os calcanhares no chão, volta para o quarto e se cobre. Ouve palavras malditas ecoando. Mantém o olho direito um pouco aberto. A porta de seu quarto é escancarada. Armando surge, o encara, respira sem intervalo, é audível. Arremessa a porta, Patro tampa os ouvidos, a maçaneta cai.
Espera ele partir. Tira a coberta e tropeça, se apressa. Donato está sentado bebendo um copo da água. Sorri e abre os braços ao vê-lo, inicia a conversa:
— Tu é minha nova engrenagem. Pelo amanhecer começará o trabalho, não falhe, isto tudo foi construído com grande contribuição daquele homem.
— Não pedi nada disto.
— E aceitou. Está arrependido? Se desejar, trarei Armando novamente, o touro foi ferido, porém, um touro ferido tem mais coragem.
Patro nada responde. Donato bate na mesa.
— Faça o que disse, traga o touro, senhor Donato.
— Não quer a mão de minha filha?
— Eu... Quero, porém, não gostaria de sacrificar o trabalho de um pai.
— Ficou um mês de boca fechada, não tem empatia por ele.
— Tenho meus motivos, mas não posso prejudicar a vida do outro.
— Esqueça-o, pense em teus motivos, pois hoje irá ver minha filha. Disse a ela sobre um interessado, não queria vir, a obriguei. E tu porá sorrisos em Dorina. — Joga o copo no chão.
Patro abaixa a cabeça para esconder o sorriso. Oferece a mão, se cumprimentam. Parte diretamente para a banheira, usará todas as ervas cheirosas.
Senta-se em sua cama após o banho, fecha os olhos, reconstrói a moça. Íris tão castanhas que na sombra parecem pretas. Lábios finos e vermelhos vívidos. Uma pequena mancha de nascença retangular na testa. Nariz fino e pequeno, levemente rosa na ponta e na base.
Não sabe quando ela chegará. Volta para o escritório de seu chefe, não está. Decide ficar em seu quarto lendo o livro que tanto aprendeu e continuava analisando para tentar ser melhor. Utiliza o dedo indicador direito para se deliciar lentamente com a escrita calma, direta, crítica e fluida. Se debate, não entende o porquê de poucos lerem ou quererem conhecer a disciplina provedora.
Se recorda das inúmeras ocasiões que jogaram pedras e frutas podres em seu rosto e corpo. Os insultos em várias praças e a noite que mais o feriu. Tantos querem feri-los, e ninguém os protegem. Todos deveriam ler esse livro, é o que pensa.
Ouve palmas batendo abaixo. Joabe grita, diz que a carruagem com a filha está estacionada. Fecha o livro com delicadeza, beija, repousa na cama. Põe um colete preto curto, camisa com longas golas, calça cinza e sapatos pretos. Decide não usar o acessório para a cabeça. Suor escorre do sovaco para os braços e as costelas, desce as escadas com calma.
Vê os serventes trabalhando. Um não está cuidando dos bovinos ou da terra, Belarmino o fita, está com a boca aberta, sinaliza com o braço para que se aproxime. Anda com maior rapidez. Escuta o amigo chamá-lo pelo nome falso, inclusive o verdadeiro por uma vez. O tom aumenta para gritos, Patro abaixa a cabeça e dispara os pés.
O mesmo cocheiro alto do enterro volta a abrir a carruagem. Antes de entrar, sente um familiar aroma de perfume doce. Senta-se à frente dela. Usa um chapéu amarelo-claro que cobre a testa. Está o encarando com olhar felino, Patro olha para os próprios pés.
Pensa no que irá dizer a ela, há muitos assuntos que gostaria de conversar, não quer ser desinteressante, mas, não sabe o que é um assunto atraente para uma moça.
Percebe que ela finge não o estar olhando, está séria, talvez entediada. Não sabe o que irão fazer, pergunta:
— Tem planos para o nosso passeio? — Não a olha diretamente, mantém a visão no assento.
— Como? Quem é o interessado? Deveria pensar em algo, não queria passear com ninguém.
— Está correta. Pois bem, poderíamos... Talvez... Beber chá, gosta de chá?
— Prefiro cachaça. Gostaria de andar.
— Bom, senhorita...
— Dorina.
— Me... Chamo Elói. — Brevemente lhe fita os olhos, muda para as próprias mãos. — Gostei de tua sugestão.
Patro diz ao cocheiro que pare. Não conhece onde estão, há uma ponte de madeira à sua frente. Dorina informa que ao atravessá-la irão à ilha que pertenceu a Nassau. Acredita que será um bom passeio. Oferece o braço para ser entrelaçado, pelo que observou é o que cavalheiros fazem. Espera o calor da moça, ela anda na sua frente.
Mantém uma distância de aproximadamente um metro dele. Patro olha discretamente para ela, mantém o rosto está direcionado para frente. Decide se aproximar e fazer uma pergunta:
— Nunca te vi na casa de teu pai, o que faz longe da fazenda?
— Cuidava de minha avó. — Se afasta.
— Tua avó esteve enferma por muito tempo?
— Meu pai me disse que o senhor é milagreiro — eleva o tom da voz —, conseguiu salvar o filho de Armando após muitos tentarem — retoma o tom normal —, curava outros em Portugal?
— Conheço muitas plantas medicinais de meu continente e de algumas terras africanas. Recuperei muitos homens com os mesmos sintomas em Moçambique, porém, se o miúdo não fosse forte, teria morrido.
— Poderia ter nos ajudado se seu navio atracasse meses atrás, foi um período difícil. — Olha para Patro pela primeira vez no passeio.
Atravessam a ponte, Dorina apresenta a Freguesia do Santíssimo Sacramento de Santo Antônio. Decide parar de andar por um momento. Fica na frente do mar e livra os pés suados. Patro fica ao seu lado, e distante.
Dorina põe a mão dentro do vestido na parte dos seios, retira um pequeno cantil, toma o líquido.
— O que está bebendo?
— Como conheceu meu pai? — eleva o tom — É dono de qual terra? Para ele achar que eu me interessaria pelo senhor, deve ser poderoso, arrisco que é dono de grande engenho.
— Por que não responde minhas perguntas?
— São intrometidas. — Outro gole. Agora olha seriamente para ele.
— Pois bem. Teu pai ajudou a mim e meu amigo. Disse a meu amigo que ajudou muitos conterrâneos no passado. Sobre mim, não sou dono de fazendas, não tenho engenho, não tenho dotes valiosos como ouro e réis. O que possuo é o ensinamento de homens devotos a uma crença que clama a bondade e a união.
— Damas e senhoritas no Brasil não se casam com homens sem dotes. Não entendo esta ocasião.
— Os dotes são o mais importante para você?
— Sim.
— Por quê?
— Porque os homens são valorosos quando tem dotes. Os que não tem em maioria são bebuns e bandoleiros.
— Terei dotes, sou homem de confiança e trabalho para teu pai, me esforçarei. E não bebo —tosse —, não serei o que vê com maus olhos.
— O que quer na vida?
— Ajudar aqueles que não pediram minha ajuda.
Dorina reflete a frase, não sente que a compreendeu. Aguardava uma resposta usual como patrimônios, filhos ou construir um negócio. Seu pai lhe havia dito que os homens de espírito valorosos ambicionam esses objetivos. Olha para o mar, não controla o riso, contém-se. Ouve uma pergunta:
— E tu, senhorita Dorina? O que quer?
Agora pensa se irá falar o sonho da vida. Por muito tempo esteve confinada cuidando da avó. Se vira para o mar novamente com os braços cruzados.
— Eu quero ir para a Itália ou a França — o tom é de animação —, levarei meus quadros e ... — Percebe a mudança em seu tom de voz e a empolgação.
— E? — diz Patro.
— É tudo.
— Pois bem. Que belo sonho, espero que eu ajude a realizá-lo.
Move o pescoço sutilmente para a direção dele. Lança os olhos para cima, vê o seu tímido sorriso. Ele percebe, depois olha para baixo. Anda para a esquerda na direção da ponte, uma ventania derruba seu chapéu. Patro o pega e devolve. Lado a lado e silenciosos refazem o caminho.
O cocheiro está comendo uma mandioca frita, a derruba ao avistar Dorina. Corre deliberadamente para a carruagem.
Ela chega primeiro na porta. A encarada que sofre o faz lembrar do seu patrão. Dorina a abre para si.
Patro a vê adentrando. A mão dela em seu peito é usada para empurrá-lo. Olha para o cocheiro, depois para ela, que diz:
— Irá usar teus poucos réis ou teus pés para voltar. Não quero tua companhia por nenhum segundo a mais.
Patro se sente quente, está surpreso.
— Poderei te ver em outra ocasião?
Ela olha para o céu, parece pensativa. É o que o português torce.
Tira a cabeça da carruagem, em voz baixa diz:
— Talvez.
Fecha a porta. Ouve batidas no teto. O som das rédeas e a pressa expressa na voz do cocheiro fazem os cavalos partirem. Poeira e areia acertam o rosto de Patro.
Caminha refletindo no encontro, não obteve sinais do interesse da moça, torce para que seja um péssimo analista de pessoas, realmente o é, principalmente quando se interessa por uma mulher.
Reflete sobre os ensinamentos provedores, sabe que não age corretamente. Para de caminhar por um momento, fita a água. Ergue o tronco e a cabeça, pensa em pular, talvez ele reapareça, é o que pensa. Deseja perguntar o porquê de estar destruindo o que ele é. Um homem sem dois dentes toca em suas costas e diz se está bem, responde que não está.
Se não estivesse olhando pela janela da carruagem durante o trajeto até a ponte, provavelmente teria que pagar um carroceiro para levá-lo, entretanto está sem réis. Reconhece rostos que encontra na estrada, alguns deles tampam as bocas com as mãos.
Avista a casa de Donato. Enquanto anda, vê um homem parado em frente ao portão. Veste roupas formais, sandálias e um chapéu de palha. Fuma olhando para frente, ou o nada. Patro se aproxima, imediatamente o reconhece, anda para trás alguns centímetros, respira lentamente esperando que não o tenha visto.
Armando ouve as pequenas pedras, então olha para a direita, aquele que quer ver se apresenta com feição de cachorro faminto, esperava aquilo. Joga seu cachimbo no chão, corre, o chapéu cai. O alvo não se mexe, fecha os olhos e protege o peito com os braços.
O derruba, Patro permanece sem encará-lo. Aperta-lhe o pescoço, abre as pálpebras, como deseja. Os punhos acertam-lhe dentes, bochechas, queixo, supercílios e testa. Está descoordenado, não são retos como os socos das artes marciais chinesas. A cada golpe grita, ruge, liberando sua dualidade, seu espírito verdadeiramente humano.
Patro sente seu sangue saindo da boca. Um soco espalha o líquido em seu olho direito, arde. Se protege com as mãos a frente do rosto. As agressões agora são no peito, não são doloridas na região, continua bloqueando.
Tenta se virar, Armando cai. Não firma os pés para se levantar, seu pé esquerdo é segurado, depois puxado, o peito está no chão. O cabelo é agarrado, sente alguns fios saírem da raiz capilar, grita repentinamente e vorazmente. Ouve que seu rosto será desfeito pelas pedras, enrijece o pescoço, sofre tapas.
Algo pesado acerta a nuca de Armando, sente náuseas e dor de cabeça. Senta-se no chão, vê um homem correndo. Uma pedra acerta sua testa, deita-se no chão, vê a pedra com sangue ao seu lado, acha que escuta outra caindo perto de si. Alguém sobe em sua barriga, ergue os braços, não sente os movimentos do corpo firmes.Uma pedra grande com pontas está nas mãos do agressor. Lentamente ela desce, a sombra cobre seus olhos por duas, seis, dez, quinze vezes.

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