Capítulo 7

6 2 0
                                    

A recordação cessa para a minha surpresa.
O foco na resposta de Gêmeo pela primeira vez foi considerado por Patro. Olha novamente para a imagem transparente e desforme. Tenta se recordar da pergunta, muito pensa, não consegue se lembrar.
Uma voz em sua mente repete a pergunta, se assusta, esperava que fosse a voz criacional. Patro responde:
— Escolho a primeira.
Gêmeo nada fala, será que não era o que esperava? Será que bloqueou seu poder para não saber a resposta de Patro? Quando voltar vou perguntar.
— Uma resposta dita sem o uso da razão, mas não anulo a sinceridade dela.
— O que quer com minha pessoa? Foi enviado? Se sim, por quem?
— Não repetirei o que foi dito, não darei respostas. Farei mais uma pergunta.
Patro está compenetrado. Atenta-se ao que Gêmeo dirá em seguida, acredita que sua reflexão lhe dará outra resposta correta.
— O que é ser humano? Seria sonhar sobre o melhor para si e posteriormente sua família e concretizar tudo? Ou. Seria sobreviver a imposição de outros humanos, a natureza ao redor e aceitar que o tempo é o vencedor?
— Admiro a primeira — A rapidez da resposta não foi esperada por Gêmeo, acho que fui respondido, mesmo assim estou curioso para ouvi-lo —, porém, é proibido constituir família enquanto membro dos Provedores da Nova Cruz. Então, substituirei família por amigos e irmãos.
— Você é exatamente o que pensei. Suas atitudes no navio compõe a personalidade que me mostrou. Vou te ajudar.
— Como o fará?
— Não me indague. Minha decisão será finalizada após eu lhe dizer o que você fará como sua parte.
— Estou amedrontado.
— Não há motivo, Patro. Seu tempo está parado, a vida de um humano jamais tem seu fluxo interrompido, você é o único com o privilégio de não ter tempo para se decidir. Por isso, lhe digo, que para ser salvo, você denominará seu primogênito homem com o nome que eu escolher. Será o equivalente a uma afirmação de compromisso e me mostrará que você aprovou. Ao nomeá-lo, eu lhe darei uma dádiva.
Patro não consegue responder. Ao ouvir a palavra "filho", sua mente o priva de pensamento pleno.
Gêmeo o chama, a mente desperta, os pensamentos e as imagens estão confusas, não se sente normal.
Relembra-se dos provedores e suas obrigações, jamais descumpriu seu compromisso durante os doze anos que vive com eles. Mas, se tornou provedor com a quebra de regra de seu salvador.
Pensa novamente na palavra "filho", a tensão treme as essências de seu âmago.
— Serei obrigado a ter um filho se aceitar?
— Apenas rainhas tem obrigação de terem filhos.
— Esta é a condição única para eu ser salvo, posso dizer que sou obrigado!
— Essa é a condição para eu lhe salvar, sim. Não estou lhe obrigando a aceitar e se salvar, Patro.
Novamente a sensação de choro.
— A... A... Aceito.
— Prosseguirei com a parte prometida.
— Posso saber qual é a dádiva que citou? É para mim ou meu filho? — Está transtornado.
— Não terá esse conhecimento.
— Qual será o nome dele?
— Um nome surgirá, não aguarde ansiosamente, cumpra sua parte. Apazigue.
Um som agudo e longo invade sua mente. O mar se movimenta com velocidade extraordinária, as ondas chacoalham seu corpo, percebe que sente a água novamente, sente o sabor salgado, sente o frio da profundidade oceânica em sua pele. A figura desforme e transparente não está na sua frente.
Não tem controle sobre suas ações, mas pode mexer os olhos. Um navio rapidamente navega em sua direção. O coração dispara, de repente para, sua cabeça está avista, torce para que alguém o perceba.
A embarcação para próximo dele. Uma corda é oferecida, nada sem comandar completamente o corpo. Vê borrões de aves devido a velocidade imposta, agarra a corda.
Se aglomeram em seu entorno, crê que são humanos, a velocidade faz com que pareçam deformados, aberrações. Mexem a boca, mas não ouve o que falam, todos estão acelerados, parece sons de abelhas aglomeradas, impossível acompanhar o ritmo dos lábios, não consegue ver os dentes e as faces.
Muitos saem e entram nos conveses, oferecem-no uma manta, cobre-se. A sensação de fome é rápida, lhe trazem leite quente em uma caneca de aço, engole rapidamente. Observa o céu da tarde, está faminto novamente. Pede mais leite, algum pão ou sopa, enchem outras vezes, perde o controle das pedidas, não sabe em que momento sente a fome.
Avista o horizonte, o sol se punha. Anoitece, não se atenta para a falta de luz natural, acompanha perfeitamente a beleza do acontecimento que acredita ser obra de seu criador. A lua erguia-se no céu estrelado na velocidade de uma flecha.
Cobertas são deixadas no chão próximo de seus pés, estica-as, forma um leito, enrola a manta para apoiar a cabeça, os olhos fecham.
O sol o acorda com sua presença quente, não sente que dormira, um piscar de olho foi o tempo que permaneceu inconsciente em sua percepção.
Anda até a borda do navio, olha para baixo e vê animais marinhos tão rápidos quanto o navio.
A chuva começa, a trupe tem urgência. Os pingos separados aglomeram e formam uma cachoeira, agora é uma tempestade. Os homens guardam os caixotes e cuidam das velas, o navio balança, madeira briga com mar para se manter equilibrado. É noite novamente, a natureza se acalma.
Perde-se nas trocas de luz e escuridão, confunde-se com o andar de um homem oferecendo comida e café após a tempestade. Sua cabeça dói, o incômodo sara e logo retorna. Posiciona sua boca no mar, vomita, sente-se tonto. Uma ave grande bate a asa esquerda em seu rosto, olha para frente, avista tendas comerciais, depois contempla as cruzes que representam o deus dos cristãos. Suas pernas cedem.
Aportam, sente a brisa marinha em seu corpo. Se levanta, olha para seus pés, consegue ver o movimento sem a aceleração de antes. Volta para o canto em que dorme, pega um copo com água e joga no rosto, limpa os olhos, sente a unha arranhar a pele.
A rampa é posta para que descessem, olha novamente para os pés, acompanha perfeitamente o ritmo dos passos e se controla. Finalmente pisa no chão de Lisboa, olha suas mãos, escuta as vozes, seu mundo retorna.
Percebe o mesmo com os mercadores e os marinheiros que o salvaram, toca em um deles, que diz para que o solte. Escuta perfeitamente, respira e sente o ar adentrar seus pulmões, regozija, cai no chão, adormece, as pessoas param e observam-no.
Algo molhado acerta seu rosto, atrapalha seu sono, o susto o faz realizar um impulso semelhante a um gato. O objeto cai em seu pé direito, é um peixe. Um homem fedido e com hálito de miasma o amaldiçoa. Responde-o fazendo sinal de perdão com as mãos.
Patro olha para sua vestimenta, põem as mãos no cabelo, balança o crânio, intenciona tirar a toga apressadamente, se enrola no tecido, o joga no chão.
O frio do dia do ataque dos extremistas o fez vestir dois casacos velhos por baixo de sua vestimenta provedoral, assemelha-se a um homem comum. Corre, cessa o movimento. Vira o pescoço para encarar o homem fedorento, tem uma pergunta:
— Em que dia estamos?
— 15 de fevereiro. — O fedido corta peixes.
— Impossível!
— Por que espanto?
— O senhor viu crianças, mulheres de vestidos verdes com aventais pretos e homens com togas vermelhas, brancas e pretas há cinco dias?
— Não. — Continuou cortando os peixes. Prende a faca no animal, volta a olhar para Patro. — É um provedor?
— Abaixe o tom. — Faz sinal de silêncio com o indicador. — Sim, meu amigo.
— Não vejo ninguém de tua seita há muito tempo. Os provedores sumiram, ninguém sabe... — Não completa a fala, vê Patro correr.
Ultrapassa o porto, depois um mercado duzentos metros à frente. Está cedo, tem poucos ombros para esbarrar, nenhum deles se assemelha aos extremistas, sua testa começa a esquentar com a recordação. Se apressa para ter tempo de ver o Segundo Ventre e a Ermida da União, não quis acreditar nas palavras do desconhecido.
Homens com aparências ameaçadoras estão próximos, os passos ficam mais lentos. Eles o encaram, não devolve o olhar. O pescoço vira de modo repentino, os homens somem, corre mais.
O suor acerta seus olhos, o vento frio faz seu rosto congelar, assim como os glóbulos. Uma recordação o paralisa, avista os extremistas, o ambiente escurece de imediato.
O olfato o retira da alucinação e lhe revela o cheiro da destruição. Olha para cima, fumaça cinza. Contém a tristeza que assola seu espírito, berra orações e pedidos na rua vazia, tropeça nos pedregulhos, não se atenta ao que está abaixo de si, olha constantemente para frente.
Atravessa sete esquinas, chega ao seu destino, a fumaça cinza indica o local do Segundo Ventre e alcança ao céu nublado. Se agacha para reunir ar nos pulmões, o peito contrai e descontrai rapidamente.
O pescoço pesa, a sensação é de que carregou pedras. A tristeza quer se transformar em choro, contém-se. Chega ofegante ao local, dizendo palavras de negação, puxa os fios capilares para cima.
Luta para ver a realidade do lugar que devotou seus cuidados. Ouve ecos das vozes daqueles que lhe são importantes. Sentia o aroma do pão que assava todas as manhãs para os provedores e para aqueles que ajudava.
Continua contendo-se, as imagens são vívidas, alegres. Mais pedras são colocadas, suas costas também pesam.
Os soluços acordam sua mente para a realidade. Tenta se levantar, seus joelhos não aguentam, bate-os no chão com todo o seu peso. Fecha os olhos, alguém aplica um tapa em sua testa.
Ele está de pé com uma criança cheia de sujeira no rosto segurando sua mão. Analisa o perfil do homem, reconhece a barba cinza levemente aparada e os cabelos pretos volumosos e precisando de um corte. Principalmente, repara no sorriso largo da boca rosada com os dois dentes da frente faltando. Sua mente me revela que a pessoa se chama Belarmino.
Alegria e tristeza o corrói. Se levanta como se sugado por um furacão. Os braços se alongam nas costas do homem como as asas de um albatroz, Belarmino o segura e o ergue, o tamanho de seu corpo é mediano.
O mais velho segura a face de Patro, aplica leves tapas em sua bochecha, o abraça novamente. Nota com atenção a pequena menina de cachos ruivos, sardas próximas nos olhos, os incisos central e lateral são separados, o nariz muito empinado, pode-se ver os pelos das narinas. Na sua mão esquerda segura um pedaço mordido de pão de ló.
Vira o pescoço para ver o Segundo Ventre queimado, fecha os olhos imediatamente, sente um aperto em sua mão. Encara Belarmino, os olhos denotam seriedade, sua boca simula um sorriso, a testa confirma que ele não está em seu estado usual. O puxa para o lado direito, em direção ao prédio queimado. Tenta desvencilhar o agarro do companheiro pesando seu corpo, Belarmino puxa-o com mais agressividade.
De repente o solta, cai no chão tendo amortecido a queda com suas mãos. Sua nuca é puxada, as faces estão próximas, sente o ar saindo do nariz de Belarmino atingir sua boca. Ele se manifesta:
— Não se pode correr das tristezas da vida, correr te fará sofrer mais. Devemos encarar as dores, não sabemos o que o Criador do Ser quer que sentimos, ou o porquê de sobrevivermos ao ataque, porém, respeitaremos o desejo dele. — Ajeita o agarro na nuca de Patro, que tenta se libertar.
— Te peço com humildade, não quero ver, temo a maldade. O local é desolador, o que pode ter nele me faz agonizar. — O fedor de seu hálito o incomoda. Ele não o solta.
— Não te direi para confiar nos planos do Criador do Ser, não o questionamos. — Encara com veemência os olhos de Patro, não mira ali. — Venha, também sinto pesar em ver ações perversas. A força está na superação e supressão da dor.
Belarmino o puxa, Patro se ergue com o movimento dele. Suavemente seus pés o posiciona de forma ereta. Os dois andam lentamente, suas solas adentram o pátio. Em sua mente ouve os sons do passado: várias crianças berrando, caindo, lutando e sorrindo.
Cinzas das madeiras queimadas entram entre os seus dedos do pé, as unhas tornam-se pretas. Olha para trás e vê as pegadas dos três, nota que não ouviu o som dos passos. A poeira espalha e suja suas pernas e roupas.
Param na entrada, a porta está pendurada, praticamente quebrada, as partes metálicas são as mais danificadas. Patro e Belarmino a empurram, cai.
A luz solar entre as nuvens adentra o buraco deixado pela porta, tinham visão clara do ambiente. O cheiro de madeira queimada teve um acréscimo na parte de dentro, não é agradável, a criança se afasta com as mãos no rosto. Belarmino bloqueia a entrada das narinas e desvia dos objetos no chão, Patro imita o gesto.
Há muitos adultos no ambiente, as queimaduras tornam a maioria irreconhecível, correntes e relógios estão grudados na pele. Encontram uma companheira com a feição intacta, se agacham, apalpam seu rosto, a pele está amolecida, acidentalmente a puxam em seus dedos, limpam em suas roupas.
Patro resolve tentar reconhecer o máximo de provedores e amas de leite. Vira os corpos que estão de bruços, vê os contornos dos ossos, as faces queimadas, mãos grudadas nos rostos. Vomita, parecer esvaziar o estomago. O ar parece deixar seus pulmões, tenta encontrá-lo, fecha os olhos, a respiração retorna ao normal.
Mira outros corpos, quase perde a firmeza das pernas. Se dirige a eles, nota o tamanho de alguns, vira o rosto e cerra os olhos. Balança o pescoço para a esquerda e para a direita. As pernas são menores, os dedos, as cabeças e os troncos também. Não consegue se aproximar, as mãos tremem.
A imagem à sua frente se assemelha a uma montanha pelada com solos pretos e folhas cinzas. Pequenas pedras e terras amontoaram-se uma sobre a outra formando um cume.
A montanha tem aproximadamente um metro de altura, seu pescoço trava, assim como o seu caído maxilar. Atrás de si surge Belarmino. Os olhos marejam ao ver o mesmo que Patro, apoia a testa nos ombros do mais jovem, choram, choram, e, choram.
O resgate das almas dos adultos será feito por mim. Mais trabalho em terras portuguesas me são oferecidos pelos humanos e sua selvageria, em milhões de ocasiões são iguais as hienas e os leões. A capacidade de raciocinar, estranhamente, faz com que eles percam a semelhança entre si.
A mente de Patro se silencia, vira-se para a saída iluminada pela fraca luz solar. Belarmino o vê sair como um senhor com as costas gastas pelo esforço de décadas.
Decide o seguir, fez o que intencionava no local, não esperava o impacto espiritual da verdade.

AVENÇA IMORTALWhere stories live. Discover now