Capítulo 16

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A circulação de sangue das pernas de Belarmino não está normal. Os ombros estão dormentes, assim como as palmas de suas mãos.
Ilda reclamou por duas horas consecutivas. A voz some conforme fala, inicia o choro, durante quatro horas saia água de suas glândulas lacrimais.
Patro está com as nádegas doendo, todos necessitam levantar-se.
Felipe Dente de Cavalo para a carroça abruptamente, Ilda bate a cabeça, o choro retorna, mais barulhento. Belarmino reclama com o condutor, que finge não o ouvir. Pede que todos desçam com rapidez.
Ilda cessa o choro imediatamente, pula como se estivesse brincando em um jardim, corre para os lados sem razão aparente. Os dois provedores se esticam, observam que estão em uma pequena vila. O dor de estrume é diversificado. Porcos e galinhas andam juntos de crianças, que rastejam ao lado dos animais. Patro tem vontade de tirá-los dali, por experiência própria sabe que irão ter algumas doenças.
O condutor da carruagem aplica um tapa forte nos ombros de ambos os homens, resta segui-lo. Entram em um edifício de dois andares. No primeiro há um pequeno balcão vazio, três cadeiras quebradas em volta de uma pequena mesa de madeira com cor escura. Há uma poltrona rasgada e velha perto da única janela, um homem está deitado nela, ele é alto, a pele é escura.
Os provedores se entreolham, há muito tempo não avistavam o que pensavam ser um habitante de Angola, ocorre em ambos uma sensação estranha. Patro se aproxima, Belarmino tenta impedi-lo, não quer que o homem acorde. Segura sua manga, ele se solta. Está perto, vê manchas de sangue em sua camisa que parece ter sido costurada com fiapos. Sua boca está com um líquido amarelo seco. Seus olhos estão cheios de remelas. Em sua mão esquerda faltam dois dedos.
— Acho que o inútil é um fugitivo, creio que tenha sofrido punição. Este não tem muita inteligência, quando o encontrarem desejará que seu pai não tivesse bolas — Felipe Dente de Cavalo não esconde a risada.
De baixo do balcão, um jovem de dezessete anos aparece. Ilda o vê e solta um grito fino, incomoda ambos adultos. Felipe Dente de Cavalo se assusta devido a aparição do jovem. Ele põe as mãos nos ombros dos provedores e diz em seus ouvidos:
— Ouçam, não tenho moedas, é tudo para mim e meus filhos. Gabriel me pagou para levá-los até a Capitania, estou fazendo um favor a todos ao pedir que repousemos aqui, a estrada a noite é perigosa.
— Não há muito conosco. Tudo foi perdido em Portugal. Pergunte a ele o valor da estadia — responde Patro.
Felipe Dente de Cavalo vai ao balcão. Logo retorna.
— Cada um de nós deverá lhe dar um vintém.
Patro olha o que tem. Nota que é a primeira vez que vira se tinha moedas. Sacode o alforje, ouve o bater delas, quando abre vê que são apenas duas. Belarmino observa seu saco de pano, não há nada.
— Agora me escute, entregue ao garoto o que ocê tiver, diga que é o suficiente, o fiz em diversas outras estadias, as pessoas aqui são menos sábias que pardais. Se conhecessem o tio dele, concordariam comigo. — Ele empurra Patro.
O provedor olha seriamente para Felipe Dente de Cavalo, que aponta para o garoto no balcão. Parece estar apressado, suas costas doem, apenas pensa em se deitar em uma cama.
Patro não consegue tocar ou abrir seu alforje, olha para o garoto magro esperando. Belarmino não emite opinião. Felipe Dente de Cavalo olha para ele impaciente, nada diz.
O jovem provedor deixa o local, calado e claramente enfezado. Os pés se movem rapidamente, avista e deita-se em um banco, fecha os olhos. Ilda o segue, bate em sua barriga, puxa sua calça. Olha para o rosto de Patro, continua sisudo, respirando de maneira pesada. Ela desiste.
Minutos depois Belarmino o cutuca. Lentamente abre as pálpebras, desejava que tivesse demorado mais um pouco, sentiu que estaria dormindo profundamente. Ele se senta, permite que o amigo fica ao lado dele. Sua percepção volta aos poucos. Percebe a agitação das mãos de Belarmino, massageia o rosto constantemente. Agarra seu antebraço, assusta-o.
— Vamos entrar, dormimos durante quase dois meses no chão, merecemos descanso — a voz de Belarmino está baixa.
— Não temos réis para dar ao garoto, você me ouviu.
— Eu disse que temos, eu vim buscar as moedas... — Ele vê Patro quase cair com o movimento para se erguer.
— Tu não ousaria, não preciso lhe ensinar sobre nossos costumes, o que fez é mesquinho.
— Acho muito duro para uma criança dormir em um banco ou carruagem, temos a oportunidade de podermos lhe entregar uma condição melhor, pensa nela.
— Não é a primeira vez que tu quebra nossos códigos, Belarmino. O que há contigo? A idade lhe fez cansar de seguir nossa crença por inteiro? — O tom de voz se eleva como uma nota musical.
— Não aponte dedos para mim, Patro, as situações que vivenciamos moldam minhas ações. Olha para Ilda, pequena, sofrendo, não devemos repetir histórias dolorosas.
Patro olha para a menina. A face dela está indiferente, não está escutando a conversa, admira um besouro lentamente se mexer. Abre o alforje, entrega as duas moedas para Belarmino, ao fazê-lo volta a se deitar.
— Entendo que não queira ir, mas, e o condutor?
Patro respira fundo, nada responde, pensa em fazê-lo. Quer, não o faz, as palavras são muito agressivas.
Belarmino volta para o edifício sem encarar o condutor. As moedas escorregam de suas mãos enquanto grita o nome da criança.
Felipe Dente de Cavalo põe os braços no balcão. Pergunta se ele conseguiu. O provedor revela que apenas os dois poderão dormir nos quartos, se desculpa. Pega a mão de Ilda para subir as escadas.
O condutor olha para o garoto que nada fala. Ele pisca incessantemente enquanto encara Felipe Dente de Cavalo. Bufa, tira de seus pertences uma moeda obtida do pagamento de Gabriel Lima. Em seguida joga no peito do garoto, que arregala os olhos observando o homem pisar firme na frágil escada de madeira.
Patro no lado de fora não consegue relaxar, o calor é forte mesmo a noite, não há ventania para conter o aquecimento que sente na pele e nos fios de seus cabelos castanhos claros. A sede começa a incomodá-lo, decide procurar por algum poço.
O corpo não está nas melhores condições, sente dores nas coxas e nas costas, tem que parar em curtos períodos para não incomodar. Com as paradas pode reparar nos detalhes daquela vila silenciosa.
Vê sete homens de diversificadas regiões africanas deitados ou apoiados em muros de pequenas casas, algumas feitas de pedras, madeira e palha, outras de tijolos, nenhuma pintada. Aparentemente estão fracos, respiram pela boca. O som do ronco de alguns é forte, alto. Pálpebras não estão fechadas inteiramente. Analisa aqueles que mais precisam dele.
Esquece-se do que iria fazer. A dor some. Os passos são em direção do mais próximo de si. Se agacha para pôr a mão direita na testa do adormecido, a pele está quente, ele treme em intervalos pequenos. Olha ao redor, não há ninguém próximo para o auxiliar.
Encontra a força para correr. Repousa a palma sobre a testa de outro adormecido. Sente que a temperatura é aproximadamente a mesma do primeiro, não apresenta outros sintomas semelhantes. Patro se levanta e anda para ver a condição de um homem próximo que não respira de maneira normal. Seu pulso é agarrado, pedidos roucos e consecutivos de ajuda são clamados pelo doente. Patro segura sua mão, promete que o ajudará, mas há um homem que não respira plenamente.
Patro encaixa em seus braços o adoecido que não consegue falar, pede para que respire fundo e tente soltar o ar vagarosamente. Ele tenta. Mais uma vez. A saída de ar pela garganta e narinas não está normal. O provedor não sabe o que fazer por aquele humano decadente. Estica seus fios do cabelo até o limite da raiz capilar, percebe que por ele talvez não possa fazer nada, corre.
Vai em direção do estabelecimento em que dormem seus amigos. A luz se apaga, acelera. O suor cai em seus olhos. Bate o ombro na porta, cai no chão com abertura forçada, fita o balcão vazio. Bate na porta com o punho, o braço balança, a mão sofre cortes por estar acertando a madeira rachada.
Se assusta ao ver que o garoto e um homem levantam-se do balcão, pensa que deve ser o tio que Felipe Dente de Cavalo havia citado. Realmente é ele. Imediatamente grita por água, muita água. O adulto careca e barbudo pergunta-lhe a razão. Patro fala rapidamente, praticamente inaudível. Tem que se repetir, fala com mais sutileza, o suficiente para convencer o simplório homem.
O tio lhe entrega um balde com água até a metade. Patro fita o balde, fecha os olhos e balança a cabeça negativamente. Está para sair, para, se recorda de que precisará de toalhas ou panos. Pede para o tio, que pede para o sobrinho encontrar qualquer fiapo que absorva água.
O garoto olha para o chão, pega o pano usado para tirar poeira do balcão, timidamente entrega a Patro. Pede por mais um pano, o tio sobe as escadas. O provedor grita por pressa. Escuta os passos pesados, se dirige para a escada gritando. Uma toalha é jogada em seu rosto, é fedorenta, repugnante. Patro a joga no balde.
Com velocidade acima do que normalmente alcança, chega no primeiro homem que tentara socorrer. Se preocupa com a temperatura de seu corpo, o rosto inteiro está quente. Patro põe o pano empoeirado na testa do homem, pede para que segure, ele não se movimenta. Percebe que está desmaiado, bate em seu rosto, balança a face, não desperta. Os olhos não mexem, o corpo está mole por inteiro, porém respira.
Corre em direção do outro homem com febre. Está desperto, nitidamente com melhor disposição do que o anterior. Patro se alegra, pega a toalha mefítica, tenta rasgá-la, a água a deixa mais resistente, consegue separar uma pequena parte.
Coloca o pedaço molhado sobre a testa do homem febril. Ele tira a mão do provedor de sua testa para apertar a toalha e molhar seu rosto. Ele agradece a Patro, que pede para que ajude o outro doente. Lentamente o baixo homem de braços compridos tenta realizar a ordem.
Vai ao terceiro homem, aquele que não conseguia respirar, se vira para alcançá-lo. O doente está de bruços, completamente esticado, há saliva em excesso próximo de sua boca. Patro está imóvel, respira de maneira pesada. Puxa os ombros do desmaiado, tenta virá-lo, sua força não é o bastante para realizar a ação. Se empenha, põe a mão em sua boca, não sai ar, não crê. Coloca uma mão sobre seus lábios e outra sobre as narinas, não consegue ter certeza se respira.
Junta as mãos como uma bola de canhão, bate em seu peito. A situação me faz recordar de um mamute pisando firme no chão. Patro se entrega ao auxílio daquela vida, encontra sua energia, seu suor cai no rosto e no peito do desmaiado. Grita, quer escutar o som do nascimento de uma vida. Impetra, pede que o Criador empreste seu poder para as suas mãos.
O cansaço o faz diminuir o ritmo, a descida do braço ao peito relembra-me uma folha elíptica caindo. Repousa a mão na barriga do doente, muda sua própria posição, os ouvidos estão na região do coração, não há batimentos. A sensação da noite no barco em Portugal retorna, se sente encostado no timão. A mente entra em um eclipse, a visão está sem foco, está tão vivo quanto o corpo do homem ao seu lado.

AVENÇA IMORTALWhere stories live. Discover now