Capítulo 10

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Antes de partir, encarava os rostos dos falecidos. Revisitou o interior de sua mente para ver se havia visto aqueles homens no dia em que chegara em Lisboa com Ilda. Jamais cruzaram caminho.
Havia sangue em sua calça preta, se dirigiu a sua segunda vítima. Tirou-lhe a calça, suja de terra, mas sem manchas vermelhas. Olhou os arredores por cima do muro, crianças andavam com seus responsáveis percorrendo a outra calçada, ninguém o encarava ou prestava atenção na direção da ermida queimada. Olhou para trás e observa o casaco de Patro no chão, o vestiu, o vento congelou a pele.
Belarmino conhecia muitas pessoas em Lisboa, suas ações filantrópicas o fizeram uma pessoa respeitada e reconhecida em dez freguesias da região e outras dezenas ao redor do oeste do país. Confiava que sua influência pudesse fazer com que a verdade lhe fosse desvendada. Pensou em encontrar a filha de um dono de taverna. No local certamente haveriam comentários sobre o ataque contra os provedores. A julgar pelas armas que utilizaram deviam frequentar locais semelhantes.
Com rapidez chegou ao estabelecimento Copo do Viajante, administrado pelo pai de Roberta, a mulher que Belarmino conhecera por meio de beberrões da Ermida da União.
Estava quase anoitecendo quando adentrou o local, os cansados trabalhadores começavam a fazerem pedidos para Roberta e recebiam seus canecos ainda vazios. Belarmino andou até o balcão, a distância entre ele e ela era de cerca de um metro e meio, estava sozinha atendendo os clientes. Não havia com quem conversar, tirou de seu bolso uma moeda queimada, ficou brincando com ela esperando sua vez de ser atendido.
O balcão encheu em poucos segundos, jovens com roupas de qualidade melhor começaram a invadir o espaço. Belarmino observava as roupas com atenção, lembrava-se do relato de Patro sobre as vestimentas dos extremistas, havia pessoas de todas as classes no grupo. Usava os olhos com sutileza, mudou a direção de sua íris para o relógio acima da entrada dos banheiros quando percebia que alguns jovens o notavam. Analisara pouco, mas, não notou agressividade neles.
Oito deles carregavam as canecas cheias até as mesas juntas, cantavam enquanto derrubavam cerveja, não haviam sequer tocado na bebida. O balcão ainda cheio o fez não ter visão de Roberta, passou a se concentrar na moeda e continuar movimentando-a entre os dedos, a garganta começava a ficar seca.
Posteriormente o balcão ficou quase esvaziado, os olhos nitidamente cansados de Roberta fitaram o próximo cliente. A expressão extenuada modificou-se lentamente, provavelmente demorou a reconhecê-lo. Então andou até ele, parecia não tirar os pés do chão, desviava sutilmente o olhar numa direção desconhecida. Belarmino percebeu, mas não queria estar demasiadamente preocupado com o comportamento dela. Roberta toca em sua mão e lhe oferece um sorriso contido.
— Há quanto tempo não vê teus amigos beberem? Quase não me lembrava de teu velho rosto. — Roberta se virou e pegou uma garrafa de uísque escocês, depois encheu em um copo pequeno e com poeira para beber.
— Não venho aqui há mais de seis meses, estive viajando em nome dos Provedores da Nova Cruz por três terras portuguesas distintas. Cheguei a pouco tempo...
— Obviamente soube do ataque aos membros de tua seita — o interrompeu com voz firme, porém abafada. — O que quer? — Os globos oculares aparentavam saltarem.
— Meu Deus! Sabe de algo. — Belarmino apontava e balançava o dedo indicador na direção dela. — Sem muito pensar, quem quer nos matar está bebendo a cá?
— Poucos comentam o que ocorre, porém, ordens fortes sussurram a todos para denunciarem os provedores, todos. Voe como uma águia! — Apontou para porta.
Belarmino pegou sua moeda e passou entre os dedos, voltou a falar:
— Sabe muito, não sairei, me fale tudo, não estou apressado, e não tenho filhos para cuidar. — Ele cruza as pernas e os braços.
— Não sou tua esposa, não sou tua parente, não me importo com tua saúde, fique se desejar.
O provedor sentiu uma dor no peito. Braços e pernas estavam tensos. Encarava a saída, se levantou. Antes de sair pegou uma moeda e deixou no balcão. Roberta jogou em sua direção, ele pegou.
Belarmino deixou o estabelecimento sem fazer contato visual com ninguém. Parou na rua fria notando a movimentação de diversos homens entrando em outros locais, sociais ou não. Ele resolveu voltar para a ermida enquanto pensa em outra pessoa com possíveis informações privilegiadas.
Percebeu a pressa incontrolável que o acometia, não queria e não gostaria de se sentir assim, resolveu se acalmar e andar devagar. Algo em seu interior lhe dizia para olhar para trás, controlou o movimento do pescoço, mantinha o andar contínuo.
A rua estava quieta, os latidos dos cachorros eram os sons mais notórios da noite, homens e mulheres não circulavam em grande quantidade, entretanto, ouvia passos agudos e múltiplos. A vontade de virar o pescoço e o olhar invadiu-o novamente, não se conteve, movimentou o tronco para trás. Lhe foi revelado dezenas de homens jovens, alguns com palitos na boca, metade portavam garrafas ainda cheias, levavam a boca o restante da cerveja.
Belarmino ficou com a garganta seca, encarou o grupo, pensava em se virar, o fez, sutilmente, mantinha sua atenção nos homens. Iniciou o passo novamente, concentrou sua audição no que estava atrás de si, nos primeiros vinte passos nada ouviu a não ser os latidos. Cinco passos posteriores e ouviu sapatos pisando no solo, acelerou, o mesmo aconteceu com os que estavam em suas costas.
A sensação de ser perseguido o fez morder a lateral do lábio superior, não parou de olhar para trás. As faces dos jovens invocavam a má intenção de seus espíritos, as pontas dos palitos pareciam espadas. Olhava ao redor, alguns moradores de rua riam entre si, apontavam para ele.
Correu, pensou enquanto gastou o pouco fôlego armazenado. Centenas de rostos estavam sendo lembrados, tinha dor nos lábios, o frio congelava as narinas, o ambiente e seu corpo atrapalhavam a concentração. Olhou para o grupo novamente, nenhum corria, mas estão próximos, apenas aceleravam o passo, invejou a juventude.
A mente brilhou.
Belarmino virou cinco ruas, tentava encontrar a pequena delegacia da freguesia de Alcântara. Os jovens de feições maliciosas continuavam a perseguição. As garrafas estavam vazias, porém intactas. Tentava achar os homens de farda, não visualizou rostos conhecidos. O grupo se aproximou, podia sentir o calor da respiração deles.
Dez metros à frente foi possível ver a delegacia, um ar renovado adentrou seus órgãos, correu como um jovem Belarmino. Avistou dois guardas conversando, ficou mais veloz, esticou o braço direito, mirou no ombro de um deles. O cansaço atingiu-o, o ar não era sugado pelas narinas ou a boca, tocou o homem, o reconheceu, era um amigo. Virou-se, apontou na direção contrária, os dois guardas olharam para a direção que seu dedo indicava, não tinha ninguém.
Belarmino envolveu os braços e as costas do amigo com um abraço. Foi cutucado cinco vezes, entendeu, soltou o guarda.
Gabriel Lima era o nome do homem cumpridor da lei, Belarmino conhecera ele quando foi apreendido por estar ajudando um jovem delinquente que havia agredido um feirante. O carisma do provedor livrou o menino de uma bronca ou de uma punição física, desde aquele dia, Gabriel Lima ajudava-o em situações adversas e de fácil resolução.
O provedor suado e cansado explicou o ocorrido lentamente aos dois guardas, olhou em seus olhos, notou que não estava sendo compreendido. Sentou-se na calçada, inspirou e respirou, repetiu incontáveis vezes. Ergueu o pescoço e retomou sua explicação do ocorrido. Gabriel Lima olhava para seu parceiro, disse em tom baixo algo que o ouvido de Belarmino não escutou.
O guarda cumprimentou o homem que o acompanhava, caminhou em direção ao lado contrário. Gabriel Lima disse para o provedor acompanhá-lo, ele se levantou sendo ajudado, rumam para a Ermida da União.
O caminho era mais longo do que Belarmino desejava, suas solas do pé o incomodavam, seu joelho esquerdo também. De repente tem seu pescoço agarrado, não sabe quem o encurralou. Tentou agarrar um dos braços, ao mesmo tempo em que utilizava seu dedo para furar os olhos do agressor. Nenhuma tentativa funcionou, sua mão também foi segurada, os dedos foram esmagados, cedeu a força do agressor, entraram em uma casa abandonada.
— Recebi ordens para abater tua seita. Tua sorte em me encontrar se converterá no maior arrependimento — Gabriel Lima disse com olhar sério.
— Gabriel... Porque tem... Este olhar. Parece um assassino.
— Se precisar matar, eu mato. — Gabriel Lima tirou sua arma do coldre, a mão tremia.
— O que intenciona? — Belarmino agarrou o cano da arma, ao fazer o movimento uma lembrança de sua conversa com Roberta o acometeu. — Nos executa depois das delações?
— Eu... Não matei nenhum Provedor da Nova Cruz, sempre escapei das ordens, porém, estou sendo cobrado por isto. Recebi punições salariais, e físicas. Ao te rever, pensei que conseguiria, mas... Não.
— Tu lembra do bem que fiz a ti, por isso não nos ataca.
Gabriel Lima soltou a arma e se virou.
— Quem nos quer morto?
— Creio que são ordens superiores. Penso que as pessoas, ou a pessoa, que ordenou as mortes é muito poderosa. Meu chefe nos comunica as denúncias, carrega sacos com moedas em poucas ocasiões, não sei a quem as dá.
Belarmino apontou a arma para ele, Gabriel Lima levantou os braços.
— Gajo, estou muito surpreso que não saiba quem nos deseja mal. Conhece a razão deste desejo?
— Por que está apontando a arma para mim?
— Apenas responda. — O sorriso largo apareceu.
Gabriel Lima abaixou os braços.
— Tu está gozando.
— Talvez. — Belarmino soltou gargalhadas. — Porém a pergunta entonada era séria.
— Acho que usando a memória e se recordando de olhares de cardeais e padres, entenderá o motivo melhor do que nós que os matamos.
Belarmino se levantou com a arma ainda apontada para o rosto do amigo, se aproximou com ela erguida, ele continuou parado. Aparentava querer encostá-la na testa dele, colocou o dedo médio no guarda-mato. Gabriel Lima a pegou, sorriram.
Os dois andavam para a rua novamente. Belarmino se aproximou, intencionava abraçá-lo, ele o fez primeiro, colocou a boca perto de seu ouvido, pedia perdão. O provedor disse para que parasse, aconselhou que pegasse uma cruz e que rezasse, e que não cessasse até a culpa partir.
O movimento afetuoso foi mais intenso, a força do guarda machucava as costelas de Belarmino. Finalmente o solta. Quer lhe dizer algo, mas a voz não sai, o provedor diz para que solte as palavras. Gabriel Lima diz que ele precisa ir embora de Lisboa, pede para que o procurasse se decidir partir ao novo.

AVENÇA IMORTALWhere stories live. Discover now