Capítulo 17

0 1 0
                                    

O sol raia, o faz despertar, mas não somente a luz. A mão de Belarmino balança seu ombro direito. Patro não havia sentido o sono abatê-lo. Olha para o lado, o homem continua ao seu lado. Imediatamente se levanta, não olha para o amigo, não nota as presenças de Ilda e Felipe Dente de Cavalo a sua frente.
Se dirige até onde estavam os outros dois que ajudou. Encontra somente um, aquele que pediu para ajudar o outro doente. Nitidamente está melhor, agradece apertando a mão de Patro. Devolve o pedaço de toalha, diz que vai tentar pegar comida em algum milharal. Lhe deseja sorte na busca.
— Meu amigo, vejo que não pôde ter uma noite tranquila, lamento, porém, precisamos ir para chegarmos antes do anoitecer.
— Belarmino, pelos espíritos dos entes que vagam ao Criador do Ser, me ajude a enterrar este homem, não consegui salvá-lo quando lutava pela vida, então na morte pretendo honrar teu corpo.
— O faremos com pressa, não demoraremos. Tenho que pensar em Ilda.
Sua mente pensa em violência. Encara Belarmino, nesse ínterim segura sua toga, estão muito próximos, podem sentir o cheiro do hálito um do outro.
— Olhe para aquele homem caído no chão. Não sei o nome, não sei o que fazia aqui, não sei como viveu, apenas conheci tua morte. Ele sofreu, falta de ar era um dos seus sintomas. Tu viu a morte, mais do que eu, certamente sabe o sofrimento que causa.
— Patro... — Belarmino tem seu tronco pressionado para baixo, ele encara o falecido.
— Peço com humildade. — Lágrimas aparecem entre seus jovens olhos.
Belarmino agora foca no homem caído. Recorda-se.
Andam lado a lado três homens com aparências carrancudas. Portam materiais típicos de trabalhadores rurais, eles os observam. Belarmino se posta a eles com o sinal da oração do zelo, solicita por alguns minutos suas pás.
Olhares desconfiados agrupam-se. Um deles volta a andar, diz que não quer se atrasar. Ao olhar para trás, os companheiros entregam suas pás aparentemente sem sequer serem convencidos.
Belarmino entrega o objeto a Patro, agora o amigo sorri, timidamente. Felipe Dente de Cavalo não está contente com a ação, resmunga consigo mesmo, está se enfezando com os dois estúpidos homens. Ambos pedem para que informe se há um cemitério na vila, diz que sim, acompanha os provedores até o local.
O condutor faz o que lhe foi pedido e parte para a carruagem. Patro e Belarmino juntos iniciam a escavação. Não conversam, não se olham, lutam contra a terra para montarem a morada final do homem que não sabem o nome.
Ilda quer ajudar, lhe é negada a permissão, contudo, ela não obedece. Utilizando suas mãos, cava pequeninos buracos, capazes de entrarem vermes e formigas. Belarmino joga um pouco de terra em seu vestido cinza sujo. A insuportável pequena não gosta, revida, os provedores obtém uma fagulha de felicidade.
Após quase quinze minutos é cavado um buraco não tão fundo, preciso e aconchegante para o corpo e para a saída do espírito ao encontro da morada do Criador do Ser, como os provedores costumam dizer. Patro e Belarmino vão buscar o falecido.
Uma família composta por uma mulher magérrima com longo vestido e três pequenas crianças com roupas velhas os observam carregar o morto. São olhos que descrevem a curiosidade com a ação, não deixam de acompanhar onde os dois desconhecidos estão levando o corpo.
Com dificuldade chegam à cova, que está sendo vigiada por Ilda. Com cuidado repousam o homem. Patro joga a terra por cima dele ao mesmo tempo em que profere a oração do abraçamento. Belarmino o acompanha, a pequena também.
Atrás deles, a família ouve tudo. A mulher tenta aprender a oração, acha a sonoridade das três vozes bela. Sente-se aliviada, quente. Sem entender, recorda-se dos abraços sinceros dos pais quando eram vivos.
Os três portugueses unem-se em um abraço para começar a caminhada até a carruagem. Belarmino presta atenção na família, principalmente na mãe. Clama palavras de conforto no modo dos provedores. Ela agradece com um sinal de despedida, pede que as crianças façam o mesmo.
Felipe Dente de Cavalo olha para o céu aguardando. Fuma um cachimbo com tabaco para se distrair. Percebe a chegada dos três passageiros. Joga o cachimbo no chão um pouco distante deles, entretanto é facilmente possível ver o ato.
Belarmino e Patro se entreolham, decidem relevar o que viram, pedem que o condutor siga com o caminho, nada ouvem como resposta. O único som é do jumento expressando sua dor após o chicote lhe acertar.
A carruagem continua. O vento é leve, não balança sequer poeira, não seca o suor de suas faces, não suaviza o calor sentido na pele. O cantil de Felipe Dente de Cavalo está vazio. Os portugueses sofrem com a natureza única daquele local, pois não há nada ao redor para admirarem. Restam-lhes conversar para fazer a mente esquecer que tal temperatura está sobre suas cabeças.
— Naquela vila sempre se acomodam tantos homens em condições miseráveis? — diz Patro.
— Muitos crioulos vão para lugares distantes ou para a mata. Onde estamos não há tanta mata para que se escondam. Diz a lenda que formam fortes entre as árvores e os animais, uma comunidade apenas de crioulos selvagens, os misteriosos quilombos.
— Ninguém os ajuda? Mesmo na condição de escravos?
— Não responderei. — Felipe Dente de Cavalo ri.
— Esta terra precisa do nosso amparo. — Patro repousa a mão no ombro de Belarmino.
— Se querem fazer algo por aqui devem ser especiais. Também nasceram de mães virgens? — Felipe Dente de Cavalo ouve algo do seu lado direito.
Dois homens atravessam as sombras geradas pelo sol que deixa o céu. Eles rendem o condutor, estão com machados ensanguentados.
Ilda grita, não consegue controlar. O coração dispara. O ar dos pulmões continua a passar por sua garganta. Belarmino põe as mãos na boca da garota e se deita em cima de seu corpo.
Patro não consegue se mover. Observa os homens ameaçando Felipe Dente de Cavalo, não ouve nada. As bocas espumam saliva como cães quando estão presos com cordas apertadas. Os machados balançam perto do topo da cabeça, falam próximo do ouvido do condutor. Um deles sobe em suas costas. Torce seu braço esquerdo, o outro procura algo em sua calça. Depois abre seu alforje, encontra os réis.
Felipe Dente de Cavalo não expressa nenhum movimento facial brusco. Socos atingem seu rosto, marcas roxas surgem próximas aos olhos e boca. Sangue colore o lábio inferior. Nada faz, não sinaliza dor. Patro não acredita.
O próximo movimento do selvagem homem é repousar o machado no pescoço do condutor. Felipe Dente de Cavalo abre a boca, o reflexo do grito é calado pelo sangue formado na garganta. Patro se esconde no compartimento.
O assassino se levanta com velocidade. O cúmplice o acompanha, cada um está em umlado da carruagem, veem as togas, os machados são erguidos. Escutam alguém gritar, olham para trás alertas. O som é contínuo, percebem que está no compartimento. Conseguem ver um braço de uma criança em meio aos corpos e roupas dos homens. Recuam, somem.

AVENÇA IMORTALWhere stories live. Discover now